SUMÁRIO: 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO LEGAL DE PRESCRIÇÃO. REGULAÇÃO DO TEMA NO CÓDIGO CIVIL DE 1916. 3. 3. A PRESCRIÇÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002. 4. OBJETO DA PRESCRIÇÃO: A PRETENSÃO PROCESSUAL.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS.
Em escrito ainda pouco conhecido entre nós, revelou Carnelutti que embora tivesse encontrado no estudo da posse os elementos que lhe permitiram elaborar, com maior precisão, o conceito de lide, a análise da prescrição – um dos mais sugestivos institutos do Direito, adscrevia ele – rendeu-lhe a rara oportunidade de compreender a exata importância desse emblemático conceito (lide), verdadeira idéia-motriz do Direito Processual, que antes de constituir objeto da teoria geral do Processo, deveria estar abarcado pela teoria geral do Direito, em razão de seu acentuado contato com uma categoria fundamental do Direito, que é o direito subjetivo, em cuja noção pode-se encontrar o conceito de pretensão.1
Bastaria esse aspecto, com efeito, para além de desimplicar a gênese da mudança de rumo no labor científico do insigne processualista italiano, confirmar o quão relevante afigura-se o estudo da prescrição, figura que por localizar-se em área limítrofe entre o direito material e o direito processual, erige para o estudioso do processo sérias dificuldades, impondo-se-lhe uma tomada de posição “entre a visão do direito material como sistema suficiente em si mesmo para a criação de direitos e obrigações logo ao suceder de fatos relevantes (teoria dualista do ordenamento jurídico, ou ‘declarativa’) e a tese de que ele [ o direito material ] não tem toda essa aptidão, participando então o processo do iter criativo (teoria unitária, ou ‘constitutiva’)”.2
Destarte, da premissa que se adotar (radicada na opção entre as teorias dualista e monista), advirá influxo direto quanto ao objeto da prescrição, tema sobre o qual controverteram as escolas germânica e ítalo-francesa. Para a primeira, esteada no direito romano, o objeto da prescrição era a ação processual, subsistindo incólume o direito subjetivo material; para os adeptos da segunda corrente, formada quando a Ciência Processual havia alcançado uma consistência metodológica, o que prescreve é o direito material. Assim, para os dualistas (Chiovenda, por exemplo),3 a prescrição elimina a ação, sem daí causar a extinção do direito subjetivo, que continua a existir, embora não mais dotado de um importante predicado, que é a possibilidade de se exigi-lo por meio do processo. Para os unitaristas (Carnelutti, por exemplo),4 a prescrição atinge a pretensão material (ação de direito material), porque com ela se elimina a possibilidade de buscar sua implementação pelo processo.
Subjacente a este tema está, pois, a necessidade de separar-se o litígio do processo, tarefa iniciada, com sucesso, por Adolf Wach – que descortinou a autonomia da ação –, e à qual se dedicou o gênio criativo de Carnelutti, cujo mérito nesse campo deveu-se, entretanto, sobretudo à demonstração de como eram mais próximas do que se poderia lobrigar as relações entre o processo e o direito material, o que permitiu à doutrina processual contemporânea compreender que, em verdade, as teorias unitarista e dualista deveriam ser “relativizadas”, de forma que pudessem aproximar-se da realidade do processo e do conflito de interesses que é seu objeto.5
De fato, é equívoco acreditar que o processo seja auto-suficiente, como se ele pudesse, só por si, criar pela sentença, em todas as hipóteses, o direito material, como defendem os unitaristas. Mas também incidem em engano os dualistas ao desconsiderarem a existência de direitos materiais que apenas no e pelo processo podem existir. Destarte, o fenômeno da prescrição, a par de outros, comprova o desacerto de uma e outra teoria, porque demonstra a existência de situação em que o direito material, embora existente antes do processo, não pode nele ser implementado, devido a uma espécie de anteparo que se opõe à atuação da tutela jurisdicional.
Para bem compreender o que efetivamente a prescrição atinge (seu objeto), será necessário considerar a importância no plano do processo do direito subjetivo, cujo conceito, revelado pela teoria geral do Direito, concedeu à Ciência Processual a possibilidade de compreender que aquilo que os romanos chamavam de “actio” não corresponde ao nosso conceito de “pretensão”, de acordo com a tese vitoriosa de Windscheid.6 (A robustecer, outrossim, a afirmação de Michel Villey, no sentido de que a noção de direito subjetivo não foi objeto de elaboração científica em Roma.7)
Aliás, exatamente a partir da noção de direito subjetivo, patenteou-se, de um lado, a idéia de que o direito de ação é também um direito subjetivo (de natureza pública), que embora distinto do direito subjetivo material (normalmente de natureza privada),8 com ele mantém íntima relação, porque “somente juntos e unidos preenchem plenamente a vontade concreta da lei”,9 e doutro, a percepção de que o conflito de interesses (em seu estado pré-processual), recebe um novo colorido quando se transforma em objeto de um processo judicial, tomando a feição de lide, assim manifestada sob a forma de uma pretensão processual (a “anspruch” de que falam os civilistas alemães). Como é sabido, Carnelutti abjurara da sua posição inicial de considerar a lide como um conflito de interesses idêntico àquele que existia antes do processo, quando lhe foi obtemperado por Calamandrei de que o que configura a lide não é o conflito de interesses no plano sociológico, senão aquilo em que a lide transforma-se no momento em que se torna objeto da pretensão processual, veiculada em um processo judicial.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO LEGAL DE PRESCRIÇÃO. REGULAÇÃO DO TEMA NO CÓDIGO CIVIL DE 1916.
Ao tempo em que editado o Código Civil alemão de 1896, propugnavam os civilistas alemães, baseando-se no direito romano, a idéia de que a prescrição atingia a ação processual. Essa idéia, contudo, não vingou a ponto de estar contida na Lei Civil alemã, que segundo seu §194, estabelecia: “O direito de exigir de outrem uma ação ou uma omissão está submetido à prescrição”.10 A dizer: o objeto da prescrição, segundo a Lei alemã, ainda em vigor, é a pretensão (“anspruch”). Com isso, a Lei Civil Alemã de 1896, sobre adotar o que sustentavam nomeadamente os doutrinadores italianos – que lograram inserir no Código Civil Italiano de 1865 essa mesma idéia (artigo 2135)11 –, dava azo à possibilidade de interpretar-se de forma mais ampla o conceito de “direito” (“Recht”), contido em seu §194, para permitir se considerasse como objeto da prescrição além da pretensão, o direito subjetivo. (Interpretação que não pode ser excluída mesmo em face do que dispõe o §198, que fixa o termo “a quo” da prescrição.)
Mas se os civilistas alemães não conseguiram impor ao Legislador alemão uma “solução legal”, lograram fazê-lo no Código Civil Brasileiro de 1916, que em diversas passagens demonstra ter sofrido destacada influência da doutrina alemã. Assim se deu, por exemplo, com a posse, cujo conceito legal (artigo 485) quadrava tanto com a teoria de Ihering, quanto da de Savigny, diversamente da Lei Civil alemã, que a nenhuma dessas teorias filiara-se.12 Curioso fenômeno que se repetiu no caso da prescrição, que segundo o disposto nos artigos 177 e 178 do Código Civil de 1916, tinha por objeto a ação (artigos 177 e 178), e não a pretensão.
Cabe adscrever que à época da entrada em vigor do nosso primeiro Código Civil, a maioria dos civilistas brasileiros entendia que a prescrição constituía-se na perda da ação atribuída a um direito e de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do seu não-uso durante determinado espaço de tempo. Posição adotada por Clóvis Bevilaqua, que naturalmente acabou incorporada ao texto legal do Código de sua autoria.13 Carvalho Santos, outro eminente civilista, assim sintetizava essa linha de pensamento, alicerçada nos doutrinadores germânicos: “A prescrição diz respeito à ação e só como conseqüência atinge o direito”.14 Diretiva também esposada por Serpa Lopes : “Como já o havíamos sustentado na 1a. edição, não temos motivos para modificar o nosso parecer, contrário à opinião comum: a prescrição atinge a ação e não o direito”.15 Dos civilistas mais conhecidos, apenas Eduardo Espinola, baseando-se na doutrina italiana, ousava divergir para, com Lafayette, afirmar que a prescrição extingue o direito.16
Escusado dizer que àquela ocasião a ainda incipiente doutrina processual brasileira, capitaneada por João Monteiro, contentava-se com o conceito civilista da ação: “A actio pressupõe a existência de um direito em cujo exercício fomos molestados por acto de terceiro. Desde que na pre-existencia de uma relação de direito e sua violação, actual ou imminente, assenta necessariamente a idéia de acção, não pode esta ser direito autonomo”.17 O que evidentemente conduzia à idéia de que a prescrição atingia diretamente a ação, que nada mais era, segundo a concepção civilista então dominante, do que um instituto do direito material. Projetava-se, assim, também no campo da prescrição, a indevida simbiose entre direito material e direito processual, somente superada com a profícua permanência entre nós de Liebman, que além de dar ao público brasileiro o conhecimento do estágio da processualística italiana e nomeadamente das idéias de Chiovenda, contribui diretamente para que tivéssemos como clara a idéia da autonomia do direito de ação.
Consideremos, de passagem, que a prescrição aparece no direito romano quando nele impera um sistema de ações, e não de direitos. Por isso, afirma Michel Villey, e com razão, que o direito romano desconheceu totalmente a idéia do direito subjetivo, porque perante o sistema judicial romano o litigante não ganhava o processo porque possuía um direito, senão que ganhava o direito porque possuía ação. Nessa fase ainda embrionária, o direito romano contemplava o direito material à luz da ação (“Nihil aliud est actio quam ius quod sibi debeatur, iudicio persequendi”).18
Assim, a primeva doutrina alemã, ao sustentar que a prescrição atingia a ação estava, em verdade, a reconhecer que o que prescrevia era a pretensão material, porque possuir direito, segundo os romanos, era possuir ação.
3. A PRESCRIÇÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002.
Inovando no direito brasileiro, e inspirado, sem dúvida, na Lei Civil alemã de 1896 (§194), o Código Civil brasileiro de 2002 dispõe em seu artigo 189: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.
Segundo tal dispositivo, o que prescreve é a pretensão. Mas qual pretensão: a de direito material ou a processual? Enseja-se, assim, a mesma discussão que se travou em face do Código Civil alemão, que ao referir-se à “Anspruch”, impôs ao sistema processual positivo um determinado sentido, circunscrito às ações condenatórias, que seriam as únicas que prescreveriam. A processualística alemã, contudo, desde logo se deu conta de que o sentido da palavra “Anspruch”, contida no §194 do Código Civil de 1896, era muito limitado, porquanto não abrigava todos os tipos de provimento jurisdicional. Pontificava a respeito Lent:
“O efeito jurídico que constitui o objeto da decisão é o mais das vezes a pretensão (Anspruch), no sentido assumido por esta palavra no §194 do BGB: pensa-se na hipótese de uma demanda de condenação. Mas pode também não ser assim, como resulta da possibilidade de demanda de declaração (acertamento) e constitutiva. Quando o ZPO fala de ‘pretensão’ (por exemplo, nos §§253, 306, 307), não usa essa expressão no significado do BGB, mas naquele reclamado pelo autor ao juiz. Tal distinção é necessária, porque nem sempre com a demanda faz-se valer uma pretensão de direito privado em sentido estrito; no sentido que esta assume no direito processual, de fato, a pretensão não se dirige mais contra o réu; não a este último, mas ao juiz o autor pede a condenação: é de fato necessária uma pronúncia, cuja emanação não está nos deveres do réu (que é uma pessoa privada), mas dentre aqueles do Estado”.19
Do que se conclui: (I) que o Código Civil alemão (BGB) de 1896 define apenas a pretensão de direito material (ação material), emprestando ao conceito de “pretensão’ um sentido mais restrito do que aquele que o Código de Processo Civil Alemão de (ZPO) de 1879 prevê; (II) segundo o §194 da Lei Civil alemã, com efeito, a pretensão (material) é o direito de exigir de outrem uma ação ou uma omissão, alcançando, portanto, apenas a demanda condenatória, pela qual se veicula esse tipo de pretensão material, o que não exclui a existência de outros tipos de provimento jurisdicional (meramente declaratórios e constitutivos),20 que também podem ser objeto da pretensão, segundo o conceito processual de “pretensão” estatuído pelo ZPO (§§253, 306 e 307). Em bosquejo, são diversos os conceitos de pretensão material e de pretensão processual.
Justifica-se, assim, o fato de a prescrição ter sido historicamente dirigida para abarcar tão-somente as pretensões materiais condenatórias. É que o Código Civil alemão regulava-a como instituto de direito material (influência do direito romano), fazendo-a incidir apenas sobre direitos tendentes a um bem da vida que se pode conseguir mediante a prestação positiva ou negativa de outros (direitos a uma prestação, segundo a sempre autorização dicção de Chiovenda).21 Daí a afirmação que de ordinário encontra-se na doutrina, nomeadamente na doutrina brasileira, no sentido de que a prescrição abrange apenas as ações condenatórias. Com isso, entrementes, olvida-se: (I) que a Lei Civil alemã regula apenas a pretensão material, e não a pretensão processual, e principalmente (II) que o nosso Código Civil, tanto o de 1916 quanto o de 2002, não conceitua a pretensão material, diversamente, portanto, do que faz o BGB.
Assim é que se costuma afirmar que as ações declaratórias são naturalmente imprescritíveis, porque “não dão, não tiram, não proíbem, não permitem, não extinguem e nem modificam nada”,22 de forma que como não estão ligadas a uma lesão de direito, não podem ser objeto de prescrição.
Mas, com a evolução, sobretudo na doutrina alemã, do conceito de ação processual e com a identificação do que é, em essência, a pretensão processual, ressurgiu a questão relacionada ao objeto da prescrição, no bojo do que se perscrutou da possibilidade de ela alcançar outros direitos que não apenas os direitos a uma prestação. Opinando em favor dessa possibilidade, sustenta, com segurança, o italiano Vittorio Tedeschi, na esteira dos alemães Planck e Strohal, que a prescrição extintiva é limitada à pretensão material condenatória (segundo o conceito do BGB) não por sua inaplicabilidade orgânica a outros direitos, mas simplesmente porque não é prudente e oportuno criar um instituto geral da prescrição extintiva dotado de uma disciplina unitária.23
Razões de política legislativa, portanto, obstaram que os códigos civis em geral sobreexcedessem o campo das pretensões materiais condenatórias para a utilização do instituto da prescrição. Malgrado, algumas experiências foram produzidas, e sem nenhuma dificuldade de ordem prática, como se vê no nosso direito positivo, que ao regular a prescrição contra a fazenda pública, estatui, por meio do Decreto Federal de número 20.910, de 6 de janeiro de 1932, que: “As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originaram”. Abstraindo do equívoco em considerar-se como objeto da prescrição o direito, ou mesmo a ação, o certo é que a Lei brasileira prevê por esse vigente dispositivo legal que toda e qualquer pretensão formulada contra a fazenda pública prescreve em cinco anos, alcançando, por conseqüência, as ações meramente declaratórias e constitutivas, além das tradicionais condenatórias.
4. OBJETO DA PRESCRIÇÃO: A PRETENSÃO PROCESSUAL.
Se se reconhece – como Jaime Guasp, por exemplo –, que o fim do processo não é a atuação de uma pretensão, senão que a manutenção de uma paz justa na comunidade,24 e que o Estado, ao suprimir, salvo exceções, a justiça privada, naturalmente concebe em favor do cidadão um direito de ação, consegue-se, assim, compreender que a prescrição atinge a pretensão processual, e não a pretensão material, que continua inserida no direito subjetivo material, mas que em razão de um sistema jurídico-social que busca preservar a paz social, não pode mais validamente ser implementada no e pelo processo.
Da mesma forma como a Lei em geral proíbe a atuação direta da pretensão privada, isso se deve ao objetivo de evitar a quebra da paz social, na medida em que a atuação da força resultaria em numerosas ocasiões em tornar inócua a pretensão fundada, e subsistente uma pretensão infundada, de acordo com a força que pudesse ser empregada.25 Tal fenômeno é constatado no caso da prescrição, que atinge a pretensão processual, impedindo que a pretensão material possa ser protegida pelo direito de ação. A propósito, não à toa insistem os juristas na idéia de que a prescrição caracteriza-se pela não-afirmação de um direito violado ao tempo em que o direito subjetivo da ação poderia ser utilizado.26 Como observa Carnelutti, a pretensão (rectius: processual) não supõe o direito, tampouco este requer aquela, tanto que pode haver pretensão sem direito, e direito sem pretensão, o que dá azo a considerar-se – afirma o autor de o “Sistema de Direito Processual Civil” – como fenômeno inverso ao da pretensão infundada, o do direito inerte, que caracteriza a prescrição.27
Não elimina a prescrição a pretensão material de agir, apenas que esta não pode, em face da prevalência do objetivo de assegurar-se a paz social, atuar pelo processo. Por conta dessa característica, é que a Lei em geral exige para a grande maioria dos direitos, nomeadamente patrimoniais, a exceção, por meio da qual se argúi a prescrição.28
Daí que a prescrição atinge a pretensão processual, e não a pretensão material. Consideremos a seguinte situação, que é prevista pelo direito brasileiro: o titular de um crédito permanece inerte o tempo que lhe retira a possibilidade de promover a ação de execução, mas não lhe elide a possibilidade de buscar, pelas vias ordinárias, o reconhecimento do mesmo direito. Atingisse a prescrição, como sustenta a maioria da doutrina, a pretensão material, e mesmo o acesso às vias ordinárias seria obstaculizado. A comprovar que o que prescreve é sempre a pretensão processual, em cujo conteúdo se aglutinam o tipo de veículo processual utilizado (ação de conhecimento, de execução ou cautelar), e o tipo de matéria que por ele é levada ao exame do juiz, com os limites cognitivos que a Lei pode impor para alguns tipos de ação (caso do mandado de segurança, por exemplo).
Segundo boa parte da doutrina brasileira, capitaneada por Agnelo Amorim Filho, os direitos que podem prescrever são apenas os direitos a uma pretensão, não assim os direitos potestativos.29 Fosse assim, e mesmo a ação não poderia prescrever, porque, segundo Chiovenda, em que a doutrina em questão diretamente baseia-se, o direito de ação é também um direito potestativo.
Ao cabo, concluímos que: a prescrição, porque atinge a pretensão processual, é instituto que deve ser regulado pela lei processual, ao passo que a decadência como em geral atinge o direito subjetivo material,30 deve ser regulada por norma do direito material. Destarte, embora se reconheça o avanço no Código Civil Brasileiro de 2002, que melhor do que aquele que lhe antecedeu, optou por prever que a prescrição atinge a pretensão (e, de fato, é a pretensão que ela atinge, mas não a de direito material), melhor teria ido se deixasse à Lei Processual Civil a regulação do instituto, evitando as divergências de ordem legal que existiam em face do Código Civil de 1916, e que ainda medram mesmo diante do novel Código Civil.31
1 Francesco Carnelutti, Appunti sulla Prescrizione, in Rivista di Diritto Processuale Civile, v. X, p. I, 1933, p. 32-49.
2 Cândido Rangel Dinamarco, A Instrumentalidade do Processo, p. 264, RT.
3 Instituições de Direito Processual Civil, v. 1, p. 30, Saraiva, 3a. edição, 1969.
4 Cf. Appunti sulla Prescrizione. Vale observar que Carnelutti era adepto da teoria monista, para a qual o direito material não existe senão quando composto (declarado e reconhecido) no e pelo processo. Entende-se, assim, a afirmação de Carnelutti no sentido de que a prescrição atinge além da pretensão, também o direito subjetivo: “Sem isto que se põe como conteúdo da “Anspruch” existe o cadáver do direito não o direito”. É que se não há mecanismo para declarar e reconhecer o direito, este não existe, entende Carnelutti.
5 Cf. Cândido Rangel Dinamarco, A Instrumentalidade do Processo, p. 265.
6 O mesmo Windscheid que, refutando a idéia de que a prescrição pudesse atingir a ação, sustentava que ela atingia a razão, segundo o particular conteúdo que atribuía ao sentido da palavra “anspruch”.
7 Cf. Estudios en torno a la nocion de Derecho Subjetivo, Ediciones Universitarias de Valparaiso, Universidad Católica de Valpraíso, Chile.
8 Particularmente no Brasil, em razão da imensa maioria de ações que são promovidas contra os poderes públicos, as lides normalmente são de direito público, ou cada vez mais possuem esse tipo de direito envolvido.
9 Cf. Chiovenda, Instituições, p. 25.
10 Integrava a comissão encarregada de elaborar o projeto que deu origem ao Código Civil alemão de 1896 o jurista Planck, que na esteira da maioria dos civilistas alemães, defendia a tese de que a prescrição tinha por objeto a ação processual. Dessa mesma comissão, composta por onze membros, participou Windscheid, cuja idéia, como se vê, prevaleceu, a despeito de sua antecipada saída da comissão (em 1883). (Cf. Eduardo Espínola, Sistema do Direito Civil Brasileiro, p. 12, nota 12).
11 Idêntico dispositivo encontra-se no Código Civil italiano em vigor: artigo 2934 – “Todo direito se extingue pela prescrição quando o titular não o exercer por um tempo determinado pela lei”.
12 Cf. Darcy Bessone, Da Posse, p. 58, Saraiva, 1996.
13 Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, v. I, p. 435, Editora Rio, 7a. tiragem.
14 Código Civil Brasileiro Interpretado, v. III, p. 372, Freitas Bastos, 3a. edição.
15 Curso de Direito Civil, v. I, p. 560, Freitas Bastos, 8a. edição.
16 Sistema do Direito Civil Brasileiro, p. 621, Editora Rio.
17 Direito das Ações, Typographia Duprat & Comp., p. 10-11, 1905.
18 Fragmento que se encontra no Digesto, livro 44, título 7, parágrafo 51. Em vernáculo: “Nada mais é a ação do que o direito de reclamar em juízo o que se deve a cada um” (tradução por Dirceu Rodrigues, in Brocardos Jurídicos, p. 272).
19 Friedrich Lent, Diritto Processuale Civile Tedesco, p. 89, tradução por Edoardo F. Ricci, Morano Editore, Napoli, 1962.
20 Os provimentos mandamentais e executivo lato-sensu são derivações dos três principais: condenatórios, declaratórios e constitutivos.
21 Instituições, p. 11.
22 Agnelo Amorim Filho, Critério Científico para distinguir a Prescrição da Decadência e para identificar as Ações Imprescritíveis, p. 740, RT, 744, outubro de 1997.
23Lineamenti della distinzione tra Prescrizione Estintiva e Decadenza, p. 46, Giuffrè, 1948.
24 Concepto y Metodo de Derecho Procesal, p. 41-42, Editorial Civitas, Madrid, 1997.
25 Concepto y Metodo de Derecho Procesal, p. 42.
26 Carnelutti, Appunti sulla Prescrizione, p. 47.
27 Sistema de Direito Processual Civil, v. II, p. 31-32, ClassicBook, 1a. edição, 2000, São Paulo.
28 Código Civil brasileiro de 2002, artigos 193 e 194.
29 Cf. Critério Científico para distinguir a Prescrição da Decadência e para identificar as Ações Imprescritíveis.
30 A decadência em alguns raros casos atinge, a exemplo da prescrição, a pretensão processual. Veja-se o caso do mandado de segurança, que em nosso Direito somente pode ser impetrado dentro de certo prazo (cento e vinte dias), prazo decadencial que, superado, não elimina o direito subjetivo material, senão que apenas desloca o titular do suposto direito material à utilização de outro veículo processual.
31 A respeito, diz Barbosa Moreira: “(…) É curioso como a idéia de extinção reluta em sair de cena. O Novo Código Civil, que acertou em afastar a tese da extinção da ação, deixa entrar pela janela o que havia expulsado pela porta. (…)”. In O Novo Código civil e o Direito Processual, Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, v. 19, setembro-outubro de 2002, p. 115.