PLANO MÉDICO. COBERTURA. DIREITO SUBJETIVO DO CONTRATANTE EM RECEBER O MELHOR TRATAMENTO POSSÍVEL. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE COMO IMPERATIVO DE TUTELA E COMO MATERIAL HERMENÊUTICO UTILIZADO NA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS NORMAS CONTRATUAIS. PONDERAÇÃO ENTRE OS INTERESSES EM CONFLITO

Doctor desk with documents and stethoscope

Processo número 1001309-39.2020
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital

Vistos.

A autora, (…), qualificada a folha 1, invocando a validez e eficácia de um contrato celebrado com a ré, (…), afirma que, em se tratando de um contrato de plano de saúde, deve-se considerar a cobertura contratual de modo que lhe propicie o melhor tratamento médico adequado a seu quadro clínico, observados os avanços da Ciência Médica, o que a ré, contudo, desconsiderou, quando lhe negou o custeio de determinado tratamento, denominado “quimioterapia intraperitoneal hipertérmica” (“HIPE”), que consiste na aplicação de medicamentos na cavidade intraperitoneal, eficaz, segundo estudos da Ciência Médica, buscando a autora, nesse contexto, fático-jurídico, que se declare existir a cobertura contratual, para que então se obrigue a ré a propiciar e a custear esse tratamento médico. Adota-se o rito comum.

Concedeu-se a tutela provisória de urgência (folha 31), cuja eficácia subsiste.

Citada, a ré contestou, defendendo a prevalência das cláusulas que expressamente excluem a cobertura médica, quando, como no caso, a Agência Nacional de Saúde não preveja o tratamento médico, havendo por se caracterizar nessa hipótese uma “despesa extraordinária”, e assim não abarcada na cobertura contratual (folhas 56/63).

Réplica as folhas 202/206.

É o RELATÓRIO.

FUNDAMENTO e DECIDO.

A relação jurídico-material que forma o objeto desta lide é exclusivamente de direito, o que autoriza se proceda ao julgamento antecipado da lide. De resto, as partes assim o requereram.

Registre-se que não há matéria preliminar que penda de análise.

Quanto ao mérito da pretensão.

Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidos nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.

Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.

No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica da autora não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevaleça a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca a exclusão de determinadas técnicas e procedimentos médicos, segundo lhe autorizaria fazer um ato normativo emanado da agência reguladora (ANS). Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem a autora e a ré.

A Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos e tratamentos terapêuticos, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.

A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A intepretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.

O artigo 196 da Constituição de 1988 garante ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam a autora e a ré.

Destarte, havendo um novo tratamento médico que tem sido adotado pelos médicos em geral, comprovado que esse tratamento tem alcançado uma significativa eficácia (como se dá no caso do tratamento prescrito à autora, tanto assim que prescrito por seu médico), desobrigar a ré de propiciar a autora o acesso a esse tratamento é colocar a esfera jurídica da autora aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar à autora o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.

É certo que a ré quer se amparar em um ato normativo emanado da agência reguladora, para negar a cobertura contratual. Mas essa posição não subsiste. Duas ordens de argumentos devem ser aqui consideradas.

O primeiro argumento é de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais medicamentos e tratamentos médicos podem ou não ser excluídos automaticamente. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado remédio ou medicamento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções instituições são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.

O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo gerar, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como se enfatiza nesta sentença, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar a normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.

Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor da autora seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.

Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.

POSTO ISSO, ponderando os interesses em conflito, entendo que a liberdade contratual, na medida em que a ré a invoca, colocaria, se prevalecente essa medida, a posição jurídica da autora aquém de uma proteção mínima, e por isso, interpretando as normas contratuais, e as aplicando diante dos argumentos que foram mencionados, decido deva prevalecer a posição jurídica da autora, de modo que lhe reconheço o direito subjetivo a contar com a cobertura contratual para abarcar o custeio integral do tratamento médico descrito na peça inicial, tal como ministrado pelo médico que atende a autora, JULGANDO PROCEDENTE o pedido, pois, e ratificando a tutela provisória de urgência, agora transmudada em tutela antecipada. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 485, inciso I, do Código de Processo Civil.

Condeno a ré a reembolsar a autora do quanto ela tenha despendido com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária a partir do desembolso. Condeno a ré também no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, devidamente corrigido.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 9 de março de 2021.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO