PLANO DE SAÚDE. SITUAÇÃO DE URGÊNCIA MÉDICA. DIREITO RECONHECIDO AO REEMBOLSO INTEGRAL DE EXAMES INDISPENSÁVEIS A UM DIAGNÓSTICO PRECISO. LIMITE DA COBERTURA CONTRATUAL OBSERVADO, CONTUDO, QUANTO A HONORÁRIOS PAGOS A MÉDICO NÃO CREDENCIADO PELA OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE

Processo número 1003942-58.2021
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital

Vistos.

A autora, (…), qualificada a folha 1, invocando a condição de beneficiária em contrato coletivo de saúde, afirma, nesta demanda que ajuizou contra (…), que a ré indevidamente lhe negou o reembolso integral de exames e de despesas com honorários médicos, sobre o que controverte a autora, sustentando que, em tendo havido indicação médica para a realização de determinados exames, revela-se abusiva a negativa da ré quanto à cobertura contratual, objetivando, pois, que se declare a existência de relação jurídico-contratual que lhe reconheça o direito a ser reembolsada pela ré do que despendeu com os exames e também os honorários médicos, em valores integrais. Adotado o rito comum.

Citada, a ré contestou, afirmando que os exames a que a autora submeteu-se não têm previsão em ato de regulação emanado da agência reguladora e por isso não podem ser abarcados pela cobertura contratual, enfatizando que se há considerar o que preveem as cláusulas do contrato firmado com a autora, as quais fixam o que está ou não coberto, bem assim os limites de reembolso quando se trata de procedimento de urgência, o que foi observado no caso presente, inclusive quanto ao reembolso de honorários a médico não credenciado.

Réplica apresentada.

É o RELATÓRIO.

FUNDAMENTO e DECIDO.

A relação jurídico-material que forma o objeto desta lide é exclusivamente de direito, o que autoriza se proceda ao julgamento antecipado da lide. De resto, as partes assim o requereram.

Registre-se que não há matéria preliminar que penda de análise.

É parcialmente procedente a pretensão.

Com efeito, sobreleva considerar que o procedimento a que submeteu a autora destinava-se ao controle de uma situação de urgência médica, tal como bem descrito a folha 31, aspecto que é importante ao se estabelecer o limite da cobertura contratual quanto ao reembolso dos exames a que a autora como paciente teve que se submeter, exames que, prescritos, pressupõem-se como indispensáveis a um diagnóstico preciso do quadro clínico da autora. Não se tratava, portanto, de exames de natureza eletiva, mas sim de exames indispensáveis a um quadro de urgência médica.

Não tivesse a autora podido realizar tais exames, a sua situação clínica poderia agravar-se, dado que apenas pelos exames é que o médico, responsável pelo atendimento, poderia realizar um diagnóstico preciso. Esse aspecto é de fundamental importância quando se está a fixar o conteúdo e alcance de cláusulas de contrato de plano de saúde. Senão vejamos.

Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidos nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.

Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.

No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica da autora não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevaleça a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca a exclusão de determinados exames, segundo lhe autorizaria fazer um ato normativo emanado da agência reguladora (ANS). Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem a autora e a ré.

A Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos e exames e tratamentos terapêuticos, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes, o mesmo sucedendo com exames, que se tornam cada vez mais precisos, revelando-se como material indispensável à análise do médico.

A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos e exames, quando comprovadamente eficazes, ou quando se revelam indispensáveis, como no caso em questão, cabendo adscrever, uma vez mais, que era de urgência o procedimento a que a autora submetia-se, aspecto que tornava ainda mais indispensáveis os exames a que foi submetida.

A intepretação de cláusulas do contrato de plano de saúde deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.

O artigo 196 da Constituição de 1988 garante ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas, bem assim de exames, quando estes se revelam indispensáveis em uma circunstância concreta. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam a autora e a ré.

Destarte, como a autora estava diante de uma patologia grave e de uma situação clínica de urgência médica, mostrando-se indispensáveis os exames a que foi submetida, sem os quais o diagnóstico poderia não ser tão preciso, ou não tão preciso na velocidade que era necessária diante da urgência médica, desobrigar a ré de reembolsar a autora o que esta despendeu com tais exames é colocar a esfera jurídica da autora aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar à autora o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.

É certo que a ré quer se amparar em um ato normativo emanado da agência reguladora, para negar a cobertura contratual. Mas essa posição não subsiste. Duas ordens de argumentos devem ser aqui consideradas.

O primeiro argumento é de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais medicamentos e tratamentos médicos podem ou não ser excluídos automaticamente. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado remédio ou medicamento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções instituições são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.

O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo gerar, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como se enfatiza nesta sentença, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar a normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.

Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor da autora seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.

Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.

Portanto, é procedente a pretensão quanto ao reembolso integral de todos os exames descritos na peça inicial, de modo que a ré os deve reembolsar integralmente à autora, pagando-lhe as diferenças para aqueles exames que tiver reembolsado parte de seu custo.

Sobre o valor do reembolso, cujo direito subjetivo reconhece-se em favor da autora, incidirá correção monetária desde o momento em que a autora efetuou o pagamento, observados os índices da Tabela Prática do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo para o cômputo da correção monetária. Incidirão também juros de mora a contar da citação e calculados de acordo com o artigo 406 do Código Civil.

Mas é improcedente o pedido quanto a ampliar-se o reembolso de honorários médicos, porquanto em se tratando de profissional que não integra a rede credenciada da ré, esta agiu dentro do que o contrato prevê em termos de limite do valor que deveria reembolsar à autora, prevalecendo no particular a cláusula contratual, por não se tratar de uma cláusula abusiva ou desproporcional, não havendo razão para ampliar-se a cobertura contratual ainda que se tratasse de um procedimento de urgência médica.

POSTO ISSO, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido, declarando a existência de relação jurídico-contratual que garante à autora o direito de ser integralmente reembolsada pela ré quanto ao que a autora despendeu com todos os exames descritos na peça inicial, com a incidência de correção monetária e juros de mora. IMPROCEDENTE, no entanto, o pedido de reembolso integral quanto à restituição integral de honorários médicos. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil..

Sucumbência recíproca, dado que a autora sucumbiu em parte de seu pedido, o que é de ser considerado quanto à condenação em encargos de sucumbência, tal como determina o artigo 86 do CPC/2015, de modo que se deve observar uma proporção quanto aos valores que envolvem a taxa judiciária e despesas processuais. Assim, condeno a ré a reembolsar a autora em 60% (sessenta por cento) do que a autora arcou com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária a partir do respectivo desembolso.

Quanto aos honorários de advogado, observe-se que, segundo o parágrafo 14 do artigo 85 do CPC/2015, em havendo sucumbência recíproca, não se pode implementar compensação de honorários de advogado, de modo que devem ser fixados também honorários em favor da ré.

Assim, condeno a ré no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em R$2.000,00 (dois mil reais). Também sucumbente, mas em menor escala, a autora é condenada em honorários de advogado, estes fixados em R$1.000,00 (mil reais), com atualização monetária a partir desta data, e também se observando a regra quanto aos juros moratórios.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 2 de agosto de 2021.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO