PLANO DE SAÚDE. REMÉDIO QUE NÃO POSSUI REGISTRO NA ANVISA, MAS QUE PODE SER IMPORTADO. DIREITO FUNDAMENTAL – ARTIGO 196 – CF/1988 – OPERANDO COMO IMPORTANTE MATERIAL HERMENÊUTICO NA RELAÇÃO JURÍDICO-CONTRATUAL. PROTEÇÃO MÍNIMA RECONHECIDA EM FAVOR DO BENEFICIÁRIO DO PLANO. OBRIGAÇÃO DE A OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE FORNECER O MEDICAMENTO

Processo número 1004604-22.2021
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital

Vistos.

O autor, (…), qualificado a folha 1, invocando a validez e eficácia de um contrato celebrado com a ré, (…), afirma que, em se tratando de um contrato de plano de saúde, deve-se considerar a cobertura contratual de modo que lhe propicie o melhor tratamento médico adequado a seu quadro clínico, observados os avanços da Ciência Médica, o que a ré, contudo, desconsiderou, quando lhe negou o fornecimento do medicamento denominado “Pomalidomida”, prescrito pelo médico que dirige o tratamento médico a que o autor submete-se em virtude de uma grave patologia de que acometido (é portador de neoplasia maligna de plasmócitos), buscando o autor, nesse contexto fático-jurídico, que se declare existir a cobertura contratual, para que então se obrigue a ré a lhe fornecer esse medicamento, não sendo razão para que a ré se desobrigue de o fazer o fato de o registro não possuir registro na ANVISA, aduz o autor. Adota-se o rito comum.

Concedeu-se a tutela provisória de urgência, cuja eficácia, contudo, cessou em razão de v. acórdão proferido em agravo de instrumento.

Citada, a ré contestou, defendendo a prevalência das cláusulas que expressamente excluem a cobertura médica, quando, como no caso, a ANVISA não tiver autorizado o registro do medicamento para comercialização no Brasil, de modo que se trata de um medicamento não contemplado no rol fixados pela ANS, afastando-se a cobertura contratual.

Réplica apresentada.

É o RELATÓRIO.

FUNDAMENTO e DECIDO.

A relação jurídico-material que forma o objeto desta lide é exclusivamente de direito, o que autoriza se proceda ao julgamento antecipado da lide. De resto, as partes assim o requereram.

Registre-se que não há matéria preliminar que penda de análise.

Quanto ao mérito da pretensão.

Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidos nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.

Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.

No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica do autor não estaria e não está sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevaleça a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca a exclusão de determinado medicamento, dado que, segundo a ré, esse medicamento não está incluído em rol estabelecido em ato normativo da agência reguladora (ANS), e de resto nem o poderia estar englobado nesse rol dado que se trata de um medicamento que não está registrado na ANVISA, e por isso não pode ser comercializado no Brasil.

Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem o autor e a ré.

A Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos e tratamentos terapêuticos, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.

A compasso, há que se reconhecer a acentuada remora da ANVISA no proceder ao registro de novos medicamentos, sobretudo aqueles destinados ao tratamento dos diversos tipos de câncer. Matérias jornalísticas têm destacado as infindáveis barreiras burocráticas que retardam, atravancam, senão que acabam por obstar que noveis medicamentos possam chegar aos pacientes no Brasil, diante da acentuada demora da ANVISA no registrá-los. Essas barreiras burocráticas acabam por colocar a esfera jurídica dos pacientes aquém de uma proteção jurídica mínima, como sucede neste caso, dado que o autor não pode contar com o indispensável medicamento que lhe foi prescrito por seu médico porquanto a ANVISA não o registrou, e como não há esse registro, a ré não estaria, por norma contratual, obrigada a fornecê-lo, se considerarmos uma interpretação das cláusulas contratuais apenas à luz do próprio contrato.

Mas como se cuida aqui enfatizar, as cláusulas do contrato que vinculam autor e a ré devem ser perscrutadas também, e sobretudo à luz da Constituição de 1988 e de seu artigo 196, norma constitucional que constitui um importante direito fundamental reconhecido em favor do autor e que atua na relação jurídico-contratual como um imperativo de tutela, atuando assim como importante material hermenêutico.

Também é necessário sublinhar que não se há confundir, nem equiparar no plano jurídico duas situações bastante distintas. Com efeito, o fato de a ANVISA não ter ainda registrado o medicamento, não significa que sua importação esteja ou seja proibida. O Superior Tribunal de Justiça, em recente julgamento, e explicitando o conteúdo e alcance da tese de número 990, fixada em incidente de recursos repetitivos, estabeleceu a necessidade de se distinguir, no plano jurídico-legal, a situação em que o medicamento, conquanto não registrado na ANVISA, pode ser importado, daquele caso em que o medicamento não pode ser importado. O julgamento a que me refiro ocorreu no Resp. 1.923.107.

Há, portanto, que se considerar essa importante distinção, e que se aplica ao caso presente, pois que não há impedimento à importação do medicamento, senão que apenas não há seu registro na ANVISA.

Outro aspecto a levar em considerar diz respeito ao artigo 16 da lei federal 6.370/1976, com a nova redação que lhe foi dada pela lei federal 10.742/2003. Com efeito, não se trata de declarar, “incidenter tantum”, a inconstitucionalidade desse dispositivo, senão que é de rigor fixar-lhe o conteúdo e o alcance, ajustando-os às normas constitucionais, sobretudo a do artigo 196 da Constituição de 1988, norma que, no caso presente, atua como material hermenêutico e cuja finalidade é a de garantir uma proteção mínima razoável ao autor quanto a seu direito à saúde. Destarte, a norma em questão (a do artigo 16 da lei 6.370) cuida apenas do procedimento administrativo de registro de medicamentos na ANVISA, e não causa, nem pode causar nenhum influxo quando se está a cuidar de um outro tipo de direito – o direito fundamental à saúde –, e o direito do beneficiário de um plano de saúde de contar com as técnicas mais modernas no campo do desenvolvimento e produção de novos medicamentos, que por serem mais eficazes, tornam-se indispensáveis aos tratamentos médicos, nomeadamente quando destinados a patologias tão grave como são as diversas patologias reunidas sob o nome científico de “câncer”. (São, com efeito, mais de cem patologias.)

Desse modo, não se trata aqui de aplicar o artigo 16 da lei 6.370/1976, porque, seja pela questão hierárquica (não poderia esse dispositivo de lei ordinária contrastar norma constitucional, ou fazê-la perder seu sentido e aplicação prática), seja porque o objeto regulado pelo artigo 16 está apenas no campo do direito administrativo.

Pois bem, enfatizando que a Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A intepretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.

O artigo 196 da Constituição de 1988 garante ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam o autor e a ré.

Destarte, havendo um novo medicamento que tem sido prescrito, comprovada sua eficácia, tanto assim que o médico que dirige o tratamento médico a que o autor submete-se prescreve esse medicamento, daí resultar que, desobrigar a ré de propiciar ao autor o acesso a esse medicamento sob o argumento de que se trata de um medicamento que não conta com registro na ANVISA, é colocar a esfera jurídica do autor aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar ao autor o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.

É certo que a ré quer se amparar em um ato normativo emanado da agência reguladora, para negar a cobertura contratual. Mas essa posição não subsiste. Duas ordens de argumentos devem ser aqui consideradas.

O primeiro argumento é de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais medicamentos e tratamentos médicos podem ou não ser excluídos automaticamente. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado remédio ou medicamento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções instituições são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.

O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo gerar, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como se enfatiza nesta sentença, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar a normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.

Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor do autor seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.

Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.

POSTO ISSO, ponderando os interesses em conflito, entendo que a liberdade contratual, na medida em que a ré a invoca, colocaria, se prevalecente essa medida, a posição jurídica do autor aquém de uma proteção mínima, e por isso, interpretando as normas contratuais, e as aplicando diante dos argumentos que foram mencionados, decido deva prevalecer a posição jurídica do autor, de modo que lhe reconheço o direito subjetivo a contar com a cobertura contratual para abarcar o custeio integral do medicamento prescrito, na quantidade prescrita e pelo tempo previsto na documentação médica apresentada pelo autor, JULGANDO PROCEDENTE o pedido. Cessa imediatamente a eficácia do v. Acórdão proferido em agravo de instrumento, de modo que, nesta Sentença, concedo a tutela provisória de urgência de natureza antecipada, acrescendo que se fixa, para a hipótese de recalcitrância, a multa diária fixada em R$30.000,00 (trinta mil reais), azado patamar a gerar na ré a convicção de que deva cumprir esta sentença, nomeadamente a tutela provisória de urgência de natureza antecipada, nela concedida. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 485, inciso I, do Código de Processo Civil.

Condeno a ré a reembolsar o autor do quanto ele tenha despendido com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária a partir do desembolso. Condeno a ré também no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, devidamente corrigido.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 3 de novembro de 2021.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO