PLANO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. COBERTURA NEGADA PELA RÉ. RELAÇÃO JURÍDICO-MATERIAL QUE SE DISTINGUE EM FACE DE SEU OBJETO – A PROTEÇÃO À SAÚDE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 196 DA CF/1988 COMO MATERIAL HERMENÊUTICO. GARANTIA AO PACIENTE DO MELHOR TRATAMENTO MÉDICO POSSÍVEL. DEVER DE FORNECIMENTO RECONHECIDO. SENTENÇA MANTIDA, INCLUSIVE QUANTO À NECESSIDADE DE ATUALIZAÇÃO, A CADA DOIS MESES, DA PRESCRIÇÃO MÉDICA. RECURSO DESPROVIDO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS MAJORADOS.
RELATÓRIO
O autor, (…), representado por seu genitor, invocando a validez e eficácia de um contrato celebrado com a ré, (…), afirma que, em se tratando de um contrato de plano de saúde, deve-se considerar a cobertura contratual de modo que lhe propicie o tratamento médico adequado a seu grave quadro clínico (“esquizofrenia paranoide” – CID 10 – F20.0), o que a ré, contudo, desconsiderou, quando lhe negou o custeio de determinado medicamento, denominado “Clozapina”, prescrito pelo médico que dirige o tratamento médico a que o autor submete-se, buscando nesse contexto fático-jurídico que se declare existir a cobertura contratual, para que então se obrigue a ré a custear e a lhe fornecer tal medicamento.
Registre-se que após a apresentação da contestação pela ré, o autor manifestara vontade de desistir da ação. Diante da discordância da ré, o processo prosseguiu com o julgamento do mérito da pretensão.
A r. sentença, ratificando a tutela de urgência, julgou procedente a pretensão, reconhecendo o dever de a ré fornecer o medicamento para o tratamento do quadro clínico do autor de acordo com a prescrição do médico assistente. Registre-se que a r. sentença condenou a ré ao cumprimento da obrigação enquanto perdurar a necessidade do autor, fixando, outrossim, condição específica para a continuidade do tratamento, qual seja, a de que a cada dois meses se opere a renovação do respectivo receituário médico.
Recurso de apelação interposto pela ré, enfatizando que as cláusulas que expressamente excluem a cobertura do fornecimento do medicamento devem prevalecer, quando, como no caso, a Agência Nacional de Saúde não preveja o medicamento prescrito em seu rol, devendo assim se considerar não abarcado na cobertura contratual.
Recurso tempestivo, preparado e respondido.
A d. Procuradoria de Justiça apresentou r. Parecer nos autos, posicionando-se no sentido de que ao recurso negue-se provimento.
FUNDAMENTAÇÃO
Desprovê-se o recurso de apelação, mantida a r. sentença, inclusive quanto à condição que fixou.
Registre-se de primeiro que, conquanto o autor-apelado tivesse manifestado a vontade de desistir da ação, a ré não concordou com que se homologasse essa vontade, de maneira que o processo acabou por receber sentença em que o juízo de origem analisou o mérito da pretensão. Digno de nota que, parte da doutrina atual, alicerçada na concepção de um processo justo e équo, entende que não basta uma recusa pura e simples do réu à manifestação de vontade do autor quanto à desistência da ação, havendo necessidade de que essa recusa seja justificada e razoável, sem o que deve a desistência ser homologada. Em todo o caso, como o juízo de origem aceitou como prevalecente a recusa, ainda que desmotivada, e como o autor não se mostrou irresignável, é de rigor examinar-se o que o juízo de origem decidiu quanto ao mérito da pretensão.
A causa versa sobre um conflito entre posições jurídicas que se instalou no bojo de um contrato de plano de saúde, em que há uma particularidade que distingue esse tipo de contrato, que, conquanto regido por normas infraconstitucionais que formam diplomas legais como são o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e as normas de regulação emanadas da ANS – Agência Nacional de Saúde, é nomeadamente regido esse específico tipo de contrato por uma norma que possui matriz constitucional: a do artigo 196 da Constituição de 1988, de modo que ao julgamento de demandas em que se discute acerca da cobertura contratual em plano de saúde, a referida norma constitucional atua como um importante material hermenêutico. E sob esse prisma que se deve examinar o que decidiu a r. sentença, havendo por se reconhecer que correta a solução dada à lide, mas cuidando acrescer que se deve aplicar, como material hermenêutico, o que forma o conteúdo e o alcance da norma constitucional do artigo 196.
Com efeito, devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidas nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.
Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica do autor não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevalecesse a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca a exclusão do custeio de medicamento, dado que, segundo a ré, tal medicamento não está incluído em rol estabelecido em ato normativo da agência reguladora (ANS).
Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem as partes.
A Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos e tratamentos terapêuticos, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.
A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A intepretação de normas desses tipos de contrato também deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.
O artigo 196 da Constituição de 1988 garante, pois, ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam as partes contratantes.
Destarte, havendo um medicamento que tem sido prescrito, comprovada sua eficácia, tanto assim que o médico que dirige o tratamento médico do autor prescreveu-lhe esse medicamento, daí resulta que, desobrigar a apelante de propiciar ao apelado o acesso a esse medicamento é colocar a esfera jurídica do paciente aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.
É certo que a apelante quer se amparar em um ato normativo emanado da agência reguladora, para negar a cobertura contratual do medicamento prescrito ao apelado. Mas essa posição não subsiste. Duas ordens de argumentos devem ser aqui consideradas.
O primeiro argumento é de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais medicamentos e tratamentos médicos podem ou não ser excluídos automaticamente. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado remédio ou medicamento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções institucionais são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.
O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo geral, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como ora se enfatiza, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar a normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.
Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor do apelado seja tratado de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.
Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.
Destarte, correta a r. sentença na intelecção e valoração que levou a cabo quanto à situação material subjacente objeto desta demanda, quando impôs à apelante o dever de fornecer o medicamento prescrito ao apelado, reconhecendo o direito subjetivo desse a contar com o fornecimento do medicamento indispensável ao tratamento médico a que se submete, na estrita forma do que lhe foi prescrito, revelando-se, por fim, também irreparável a condição fixada pela r. sentença para que se opere a continuidade do tratamento (que a cada dois meses ocorra a renovação do respectivo receituário médico), seja porque não contrastada por meio de recurso, seja porque, de resto, revela-se razoável e consentânea ao cumprimento da obrigação pela ré.
Também deve prevalecer a condição adequadamente fixada na r. sentença quanto à necessidade de a prescrição médica ser revogada a cada bimestre.
Pelo meu voto, pois, mantenho a r. sentença para, assim, negar provimento ao recurso de apelação interposto pela ré.
Mantenho, outrossim, a condenação dos encargos de sucumbência tal como feita na r. sentença, cuidando apenas de, por força do artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015, majorar os honorários de advogado, agora elevados a 12% (doze por cento) do valor atualizado da causa.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR