PARTILHA DE BENS EM UNIÃO ESTÁVEL. CERCEAMENTO DE DEFESA. PROVA QUE ERA PERTINENTE E INDISPENSÁVEL AO DESIMPLICAR DE QUESTÃO FÁTICA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE QUE SE MOSTROU MEDIDA DESPROPOSITADA. CPC/2015 QUE AMPLIOU AS HIPÓTESES DE NULIDADE DE SENTENÇA

APELAÇÃO. AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE UNIÃO ESTÁVEL, SUA DISSOLUÇÃO E PARTILHA DE BENS. SENTENÇA QUE ACOLHEU PARTE DOS PEDIDOS. CONTROVÉRSIA INSTALADA EM RECURSOS DE APELAÇÃO E ADESIVO CIRCUNSCRITA À PARTILHA DE BENS.
ALEGAÇÃO DA AUTORA-APELANTE DE QUE A SENTENÇA É FORMALMENTE NULA, POR TER INCIDIDO EM CERCEAMENTO DE DEFESA, ARGUMENTANDO QUE, INSTALADA CONTROVÉRSIA FÁTICA QUANTO À ORIGEM DO NUMERÁRIO DESPENDIDO NA AQUISIÇÃO DE UM VEÍCULO, REQUERIDA A PRODUÇÃO DE PROVA PERTINENTE, NÃO CABIA AO JUÍZO DE ORIGEM SENÃO QUE, SANEANDO O PROCESSO, FAZER INSTALAR A FASE DE INSTRUÇÃO, PARA A PRODUÇÃO DA PROVA.
APELO SUBSISTENTE. PARTES QUE HAVIAM DESTACADO, ACERCA DO PEDIDO DE PARTILHA DE BENS, A EXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA FÁTICA, ALIMENTADA POR DOCUMENTOS, E REQUERENDO, NO CASO DA AUTORA-APELANTE, FOSSE-LHE PERMITIDO PRODUZIR PROVA TESTEMUNHAL – PROVA QUE É PERTINENTE E NECESSÁRIA.
JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE QUE, NESSAS CIRCUNSTÂNCIAS, REVELOU-SE MEDIDA DESPROPOSITADA, DESATENDENDO-SE À GARANTIA A UM PROCESSO JUSTO, POR SUPRIMIR DAS PARTES, NOMEADAMENTE DA AUTORA, O DIREITO À PRODUÇÃO DE PROVAS QUE SE FAZEM NECESSÁRIAS. SENTENÇA QUE, DE RESTO, FUNDAMENTOU DE MANEIRA ALGO GENÉRICA ACERCA DA OPÇÃO PELO JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 QUE, POR SEU ARTIGO 489, PARÁGRAFO 1º., HARMONIZANDO-SE COM O CONTEÚDO E ALCANCE DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, AMPLIOU AS HIPÓTESES DE NULIDADE DA SENTENÇA.
RECURSO DE APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDO, COM O RECONHECIMENTO DE NULIDADE FORMAL DA SENTENÇA. PREJUDICADA ANÁLISE DO RECURSO ADESIVO. SEM CONDENAÇÃO EM ENCARGOS DE SUCUMBÊNCIA.

RELATÓRIO
Cuida-se de ação ajuizada por L. E. P. contra D. J. de G., em que, alegando ter estabelecido junto ao réu uma relação pública, contínua e duradoura entre janeiro e dezembro de 2019, pretende a declaração da existência e da dissolução de união estável, bem como a condenação do réu à restituição das quantias de R$80.000,00 (oitenta mil reais) que teria dispendido com a aquisição de um caminhão utilizado pelo réu, e de R$20.000,00 (vinte mil reais) referente a um empréstimo concedido ao réu, valores esses que, segundo defende a autora, não constituem bem comum a ser partilhado, pois teriam sido adquiridos pela autora em divórcio pretérito à união estável em questão.
A r. sentença, contudo, assinalando que a autora não se desincumbiu do ônus probatório acerca da origem dos valores investidos na aquisição do automóvel e a incidência de presunção “juris tantum” de esforço comum dos companheiros na construção do patrimônio em união estável, julgou parcialmente procedente a demanda, mediante o reconhecimento da união estável, a condenação do réu ao pagamento da quantia de R$55.000,00 à autora, por efeito da partilha de bens, e confirmou a tutela provisória cautelar de restrição do automóvel (…) de titularidade do réu para a satisfação de eventual execução (fls. 158/164)
Embargos declaratórios interpostos pelo réu (fls. 167) que foram parcialmente providos, com a integração da r. sentença, da qual passou a constar a determinação à autora para que restituísse os documentos pessoais ao réu (fls. 173/174).
Interpondo recurso de apelação, a autora sustenta que a r. sentença incorreu em “error in judicando” quanto a determinar a partilha de bens, pois que, segundo a autora, os valores despendidos na aquisição do caminhão e no empréstimo pessoal ao réu são originados da partilha de bens realizada quando do seu divórcio anterior e, portanto incomunicáveis, de modo que, considerando ainda que o réu nunca lhe prestou qualquer auxílio financeiro ou à entidade familiar durante a união, a presunção de esforço comum não pode prevalecer, devendo ser ressarcida integralmente pelos valores dispendidos (fls. 177/189).
Na oportunidade de responder o recurso principal da autora, o réu também interpôs recurso de apelação de forma adesiva, pelo qual pugna pela reforma do capítulo condenatório da r. sentença ao fim de que, ao invés de constar a quantia de R$55.000,00, a partilha passe a considerar o percentual de 50% do valor do bem (fls. 214/220).
Recursos tempestivos e contra-arrazoados (fls. 214/221 e 301/313).
Dispensado de preparo o recurso principal por ter sido deferida a gratuidade processual à autora (fls. 316); e quanto ao recurso adesivo, embora devidamente intimado (fls. 350), o réu deixou de efetuar o recolhimento complementar (fls. 352).

FUNDAMENTAÇÃO
Dentre os méritos que se há reconhecer ao CPC/2015, está o de ter incorporado como normas ao texto de nossa legislação do processo civil princípios de matriz constitucional, princípios que, durante a vigência do CPC/1973, ficavam algo esquecidos, tratados apenas como princípios. O Legislador, dando-se conta disso, e adotando uma ideia que o emérito processualista uruguaio, EDUARDO JUAN COUTURE, havia propugnado em doutrina e que implementara no projeto de um código de processo civil a seu país, ao introduzir uma série de princípios constitucionais, tornando-os norma de um código de processo civil, como a lembrar aos juízes que esses princípios existiam e deveriam ser aplicados. Dessa lição serviu-se, sem dúvida, o nosso CPC/2015, que assim incorporou às suas normas princípios como o da igualdade e do contraditório (artigo 7º.), os da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência (artigo 8º.), cuidando ainda de aperfeiçoar regras que estavam no CPC/1973, harmonizando-as com o nuclear princípio do devido processo legal, como ocorreu com as regras que cuidam das hipóteses em que a sentença deve ser declarada nula. Essas hipóteses foram significativamente ampliadas no CPC/2015, como se vê do artigo 489, parágrafo 1º.
A nulidade formal da sentença não se dá mais apenas quando se caracteriza um “error in procedendo”, senão que o CPC/2015 concentrou as hipóteses de nulidade da sentença no campo da intelecção que o juiz terá realizado na construção de seu raciocínio, quando, por exemplo, dispensa indevidamente a produção de uma prova, cujo conteúdo poderia, se a prova tivesse sido produzida, conduzir a uma conclusão algo diversa daquela a que o magistrado chegou.
Como se vê, o CPC/2015 projetou no campo da nulidade da sentença importantes efeitos vindos do conteúdo do princípio do devido processo legal, que, como se deve enfatizar, garante a um processo justo, que, em linhas gerais, é o reconhecimento do sagrado direito de que as partes obtenham um julgamento que tenha examinado, minudentemente, todas as alegações e fatos, do que é consequência o direito a que possam produzir todas as provas pertinentes, desde que requeridas a tempo e modo. A técnica do julgamento antecipado é de ser analisada nesse contexto.
O juízo de origem, quando decidiu adotar a técnica do julgamento antecipado da lide, não valorou bem como havia se instalado a controvérsia fática, sobretudo depois que as partes lhe haviam feito explicitar importantes aspectos fáticos, como se vê de folhas 128/130 e 150/151, peças nas quais ambas as partes, sobretudo a autora, haviam demonstrado o objetivo de que fosse autorizada a produção de provas.
A controvérsia, com efeito, instalara-se em especial quanto à origem do numerário utilizado para a aquisição de um veículo, alegando a autora que esse dinheiro proviera de verbas rescisórias que havia recebido, enquanto o réu afirmava que uma parte do numerário despendido com a compra do veículo (trinta mil reais) eram de sua propriedade. Nesse contexto, expressivo observar que, a folha 150, o réu afirmava que a alegação da autora de que ela havia adquirido o veículo com recursos próprios, essa alegação, segundo o réu, não havia sido comprovada nos autos, ratificando, assim, o que havia sustentado em sua contestação, pela qual se poderia lobrigar que havia significativa controvérsia fática. Também é de relevo adscrever que a autora havia produzido documentação extraída de seu divórcio, com o que buscava demonstrar que o dinheiro empregado na aquisição do veículo tinha determinada origem (folhas 131/149), mas a sentença em nenhum momento faz referência a esses documentos.
Ao suprimir da autora, e mesmo do réu, o direito à produção de prova pertinente ao desimplicar da questão fática, o juízo de origem desatendeu àqueles princípios constitucionais e normas do CPC/2015, causando assim cerceamento de defesa e desatendendo à garantia a um processo justo. Por tais razões, a sentença há que ser declarada nula, para que o processo retorne à fase de saneamento e organização, e nela o juízo de origem profira a decisão pela qual fixará as questões fáticas sob controvérsia, permitindo que as partes produzam as provas requeridas.
Por meu voto, dando-se parcial provimento ao recurso de apelação interposto pela autora, declara-se a nulidade da sentença, determinando que o processo retorne à fase em que o juízo de origem proferirá decisão de saneamento e de organização, identificando as questões fáticas sob controvérsia e autorizando a que as partes produzam as provas requeridas. O recurso adesivo interposto pelo réu está prejudicado.
Sem condenação em encargos de sucumbência, os quais somente poderão ser fixados quando uma nova sentença vier a ser proferida.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR