MILITARES E O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO POLÍTICA

MILITARES E O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO POLÍTICA

Gerou sobressalto na imprensa o fato de o Exército ter decidido não punir um militar em atividade, a quem se atribuía a prática de uma conduta que é proibida pelo Estatuto das Forças Armadas: a de ter participado de um ato de natureza política. A imprensa, contudo, como é de praxe, não considerou aspectos jurídicos que são importantes na análise dessa matéria.

O mais importante aspecto que é necessário destacar diz respeito ao fato de que o “Estatuto dos Militares” vem a ser a lei federal 6.880, editada em novembro de 1980, o que significa dizer que se trata de uma lei federal editada antes da reabertura democrática, ou seja, antes da Constituição de 1988. É certo que uma recente lei, a de número 13.954, de dezembro de 2019, modificou-lhe a redação em diversos pontos, mas nada que mudasse a estrutura da redação original de 1980.

Editada em 1980, dentro de um governo militar, era natural que a lei 6.880 encampasse os princípios e regras próprios desse governo e, particularmente, da Constituição de 1969, promulgada por esse mesmo governo militar, o qual tivera, em 1964, mais precisamente em março daquele ano a percepção de quão perigoso era deixar que os militares (especialmente os de menor patente) tivessem alguma participação política. Refiro-me ao episódio ocorrido no governo JOÃO GOULART, que, em 1964, enfrentando uma revolta dos marinheiros, decidira impedir que os militares amotinados fossem punidos pela cúpula das Forças Armadas. Aquele fato, aliás, foi o decisivo para que viesse a acontecer o famoso abril de 1964, com o golpe militar.

Destaque-se, outrossim, que a revolta dos marinheiros evidenciava existir uma polarização dentro das Forças Armadas, com grupos que eram favoráveis ao governo de JOÃO GOULART.

Tinham os militares no Poder desde 1964, pois, plena consciência dos riscos que poderiam advir caso deixassem os militares (sobretudo os de baixa patente) participar de atos políticos. Assim, a lei 6.680 foi editada por um governo militar com o evidente objetivo de proibir que os militares pudessem se expressar politicamente, tal como sucedera no governo civil JOÃO GOULART. Melhor prevenir, pensaram os militares, com uma cautela que lhes é natural.

Andando o tempo, veio a Constituição de 1988, a nossa “Constituição-Cidadã”, como muitos ainda hoje a denominam, prevendo e assegurando liberdades fundamentais a todos – inclusive aos militares.

Os juristas sabem (mas os jornalistas não) que, em face de uma lei anterior à Constituição de 1988 é indispensável perscrutar se essa lei ou um seu dispositivo ajusta-se ao texto constitucional que lhe é posterior. Chama-se isso, na técnica do Direito, de “fenômeno da recepção”, o que quer dizer que algumas leis anteriores à Constituição foram por ela “recepcionadas”, e outras não. Aquelas que foram recepcionadas, vigem, são válidas e eficazes. A não recepcionadas, não possuem esses predicados.

Destarte, antes de analisar se a decisão das Forças Armadas está correta ou não, quando absolve um militar em atividade por ter exercido seu direito à liberdade de expressão política, é necessário analisar se o “Estatuto dos Militares” é uma lei que foi ou não foi recepcionada pela Constituição de 1988, especialmente em face das liberdades fundamentais que o texto constitucional por seu artigo 5o. a todos assegura – inclusive aos militares.

Sem realizar aqui um juízo de valor quanto a essa questão (da recepção ou da não daquela lei, ou de partes dela), o que chama a atenção é que agora estaria a ocorrer um fenômeno inverso àquele que, historicamente, deu origem à lei 6.880. Com efeito, em 1980, os militares no poder tinham medo de que os militares falassem e expressassem a sua liberdade, sobretudo a de natureza política. Agora, se considerarmos que o governo Bolsonaro é um tipo de governo militar (tanto são os militares que compõem seu governo), teríamos o contrário do que ocorrera em 1964, pois que é agora a oposição (ou seja, os civis) que não quer que os militares tenham liberdade de expressão política. A História, como é costume dizer, repete-se, mas muitas vezes ao contrário.