LITIGÂNCIA PREDATÓRIA

LITIGÂNCIA PREDATÓRIA
Valentino Aparecido de Andrade

Há expressões que surgem no Direito não se sabe bem como, nem qual o sentido próprio que se lhes pode emprestar, dada a frequente desconexão entre a expressão e aquilo a que ela deveria corresponder. Tomemos o exemplo da “litigância predatória”, de que comumente se fala na jurisprudência brasileira e aplicada a variadas situações, quase a ponto de se ter tornado uma expressão de uso comum, dispensando aquele que dela se utiliza de explicar a razão por que a aplica. Se formos aos repertórios de jurisprudência constataremos que, na grande maioria das vezes, quase que em todas, o julgado singelamente refere-se à “litigância predatória”, sem explicitar no que essa figura consistiria.

Basta, pois, afirmar-se no julgado que há “litigância predatória”, e pronto: chega-se a uma indisputável conclusão de que o processo deve ser imediatamente extinto sem resolução do mérito da pretensão nele veiculada, aplicando-se contra o advogado as penas da lei.
Mas o que é “litigância predatória”?

Comecemos pelo vernáculo, buscando entender por qual razão se pode acoimar uma determinada litigância (que é o ato de buscar a justiça) como “predatória”. Vamos aos dicionários, como ao “Houaiss”, e encontraremos a palavra “predatório”, um adjetivo que possui o significado de algo relativo ou próprio de predação ou predador, algo destrutivo como faziam (e ainda) fazem os piratas ao saquearem os navios, o que, aliás, justifica que o adjetivo tenha tido origem nos navios de corsários, como registra outro dicionarista, CÂNDIDO FIGUEIREDO.

Assim, como já sabemos o que significa o adjetivo “predatório”, podemos agora analisar se um sentido lógico ou jurídico abona o emprego desse adjetivo, associado a uma forma de litigar, que poderia justificar o emprego da malfadada expressão “litigância predatória”. Em que condições, portanto, o advogado poderia ser associado a um pirata que saqueia bens de outros, como faziam os piratas?

Alguns julgados, bem poucos, tratam de explicar o que entendem por “litigância predatória”, que seria algo como a formulação de várias demandas contra o mesmo réu pela “técnica abusiva de fracionamento da pretensão”. Note o leitor que, sem explicitar o que é a litigância predatória, esse julgado ainda introduziu uma outra expressão tão enigmática quanto aquela, ao dizer que o advogado teria feito uso de uma “técnica abusiva de fracionamento da pretensão”, como se o CPC/2O15 vedasse esse fracionamento, quando isso não ocorre, considerando a prevalência do princípio da liberdade, que é um princípio imanente ao processo civil, na medida em que se trata de um princípio que está enfeixado no princípio do devido processo legal.

Já temos, pois, uma pista, uma pequena pista, mas uma pista. O advogado que fraciona demandas contra o mesmo réu age como um “pirata”, e por isso pratica a litigância predatória. Mas se formos rigorosos, há inúmeras ações individuais legitimamente promovidas contra o mesmo réu, como aconteceu há alguns anos em São Paulo, quando pensionistas tiveram que ajuizar cada qual sua ação em face do instituto de pagamentos, porque este se recusara a cumprir o que o provimento jurisdicional concedido em uma ação civil pública obrigava-lhe. Sem outra alternativa, cada um daqueles pensionistas tratou de contratar um advogado para litigar contra a a autarquia estadual, e como é comum ocorrer nesse tipo de situação, um mesmo advogado representou a vários pensionistas nas ações individuais. Foram mais de vinte mil ações. Pois bem, ainda não estávamos na era da “litigância predatória”, um conceito que surgiu não se sabe quando, onde e nem a razão pela qual surgiu, mas o fato é que aquelas ações foram ajuizadas na era pré-litigância temerária. Mas e se fossem ajuizadas hoje, quando já se sabe, ou melhor, não se sabe o que é a litigância predatória? Certamente, alguns advogados seriam tachados de “predatores”.

O tema ganha agora relevo depois que o Superior Tribunal de Justiça convocou uma audiência pública para analisar o seguinte tema: A possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo. Mas antes de se perscrutar se o juiz tem mesmo esse poder, seria indispensável conceituar o que é a “litigância predatória”. Espera-se, pois, que a audiência pública propicie aquele Tribunal o poder conceituar essa curiosa figura.