A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015.

PARTE I: A MUDANÇA DE VALORES: O ENFRAQUECIMENTO DO PROCESSO ÉTICO.

                                     Valentino Aparecido de Andrade

                                      Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

“O processo civil, com a sua estrutura contraditória em que a cada uma das partes se atribui a tarefa de sustentar as suas próprias razões, é essencialmente refratário a uma rigorosa disciplina moralista do comportamento daquelas. (…). Mas é certo também que a habilidade e a perspicácia devem ter um freio, não podendo ultrapassar certos limites que os costumes e a moral social impõem e que para os defensores são representados pelas exigências de ética profissional. É isso que quis dizer a lei, ao estabelecer o dever de lealdade e probidade”.

                   ENRICO TULLIO LIEBMAN, Manual de Direito Processual Civil.

                                      Quem se der ao trabalho de ler, com certa atenção, o texto da “Exposição de Motivos” ao Código de Processo Civil de 2015, notará o acentuado número de vezes em que a palavra “efetividade”, ou um seu sinônimo, aparece, como no seguinte trecho:

Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito.

“(…) Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo”.

                                      E se tiver o cuidado de comparar esse texto com o da  “Exposição de Motivos” ao Código de 1973, do insigne jurista, ALFREDO BUZAID, perceberá uma nítida mudança entre os valores estruturantes de nosso sistema processual. Com efeito, se no Código em vigor a preocupação é marcadamente pela efetividade, no Código de 1973 o valor nuclear era o da lealdade processual, a demonstrar que o processo civil, no Código de 1973, surge como uma construção ética, que não tolera abusos de direito ou a prática de condutas que violem o dever de lealdade.

         “Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever, da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça. Tendo em conta estas razões ético-jurídicas, definiu o projeto como dever das partes: a) expor os fatos em juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; d) não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito (art. 17). E, em seguida, dispôs que “responde por perdas e danos todo aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente” (art. 19). No art. 20, prescreveu: “Reputar-se-á litigante de má-fé aquele que: a) deduzir pretensão ou defesa, cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer; b) alterar intencionalmente a verdade dos fatos; c) omitir intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa; d) usar do processo com o intuito de conseguir objetivo ilegal; e) opuser resistência injustificada ao andamento do processo; f) proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; g) provocar incidentes manifestamente infundados”.

                                      Mas o aspecto que melhor pode assinalar a diferença entre as escalas de valores adotada em um Código e outro está no dever de lealdade, que no Código de 2015 não integra o rol dos deveres jurídico-legais de conteúdo ético que são impostos às partes. Ao Legislador do Código de 2015, pareceu mais conveniente impor, como se se tratasse de um dever de conteúdo ético, a obrigação de a parte “declinar, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, o endereço residencial ou profissional onde receberão intimações, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva” (art. 77, inciso V), em lugar de prever o dever de lealdade processual.

                                      Poder-se-ia argumentar que, malgrado não conste expressamente do texto legal, o dever de lealdade continuaria a existir em nosso sistema processual civil, enfeixado  no conteúdo do princípio da probidade processual, e que o inciso II ao artigo 77, ao impor o dever de não se formular pretensão ou de apresentar defesa, quando a parte esteja ciente de que seja destituída de fundamento, que essa tipificação corresponderia ao dever de lealdade processual, tal como constava do texto do artigo 14, inciso II, do Código de 1973.[1] Com todo o respeito àqueles que defendem essa posição, há que se considerar que o dever de lealdade processual não se circunscreve a esse tipo de conduta no processo, ou mesmo não a abrange diretamente, tanto assim que no Código de 1973, ao lado do dever de lealdade processual (art. 14, II), sancionava isoladamente tal conduta (art. 14, III).

                                      Com efeito, se cotejarmos o rol do artigo 77 do Código de 2015 com o do artigo 14 do Código de 1973, constataremos que o único dever jurídico que deixou de existir no novel Código foi exatamente o dever de lealdade. Aliás, a redação do artigo 77 é quase  que a reprodução literal do artigo 14, salvo que no Código agora em vigor introduziu-se o “dever ético” de obrigar a parte a declinar o endereço residencial ou profissional em que receberá intimação, e o de vedar que a parte pratique inovação ilegal no estado de fato de bem ou de direito litigioso (inc. VI), conduta que, no Código de 1973, configurava hipótese de atentado (art. 879, III), instituto – o do atentado – que como observaram CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA e GALENO LACERDA, sobre encontrar sólidas raízes históricas em nosso direito processual, tinha perfeita adequação e objeto próprio, não atendido por outro tipo de ação, ou mesmo pela figura da litigância de má-fé.[2]

                                      Como dizia FRIEDRICH NIETZCHE, a moralidade e a ética não são mais do que elas denotam: costumes e hábitos. Assim, quando o Código de Processo Civil de 2015 decidiu não incorporar a seu texto o dever de lealdade, fez interromper  um sistema que estava em vigor desde 1974, quando entrou em vigor o Código de Processo Civil de 1973, acabando com um costume que a comunidade jurídica já incorporara: a de se garantir o necessário a que exista um processo ético.

                                      Em um sistema processual civil como o nosso, em que sempre se mostrou bastante tímida a aplicação de sanções por litigância de má-fé –  e isso quando o Código de 1973 previa expressamente o dever de lealdade, erigido a um valor nuclear de um processo ético –,  o que ocorrerá agora que o Código de 2015 não incorporou a seu texto o dever de lealdade, deixando evidente que sua preocupação deixou de ser com o valor da ética, para se fixar apenas na efetividade do processo?

[1] Posição defendida por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, in Código de Processo Civil Comentado, 16. Edição, p. 444, RT

[2] Comentários ao Código de Processo Civil, v. VIII, tomo II, p. 571-584, Forense editora, 1988.