LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA: OS MOTIVOS

LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA: OS MOTIVOS
Valentino Aparecido de Andrade

Conquanto em algumas de suas regras o CPC/2015 tenha se utilizado do termo genérico “decisão”, abrangendo a sentença e acórdão, há hipóteses em que ao Legislador revelou-se necessário estabelecer aquilo que é próprio à sentença para assim estabelecer uma distinção em relação ao acórdão, fixando, pois, um regime jurídico específico a cada uma dessas decisões judiciais. Há, portanto, aspectos estruturais que justificam o discrímem, porque a sentença, segundo o que prevê o artigo 489 do CPC/2015, é formada por um relatório, seus fundamentos e a parte dispositiva, enquanto o acórdão (que, segundo o artigo 204 do CPC/2015, é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais) tem sua própria estrutura, integrada por uma ementa, segundo exige o artigo 943, parágrafo 1o., do CPC/2015, mas formando um texto único. (Vale lembrar que a ementa, que é um resumo do que foi decidido, tornou-se parte obrigatória na estrutura do acórdão a partir da lei federal 8.950/1994, que modificou a redação do artigo 943 do CPC/1973.)

Estamos a considerar a sentença e o acórdão em sua respectiva estrutura, e isso nos conduzirá ao Estruturalismo, mais propriamente ao Estruturalismo Francês, que, como disse MICHEL FOUCAULT, não é um método novo, senão que a consciência desperta e inquieta do saber moderno. Esperemos, pois, que o leitor, sobretudo os processualistas, de algum modo inquietem-se com o que pretendemos demostrar.

Tornou-se lugar comum em nossa doutrina e jurisprudência a afirmação de que somente a parte dispositiva da sentença é que pode produzir coisa julgada. A gênese desse equívoco está, na doutrina brasileira, naquilo que, em 1935, escreveu PAULA BATISTA em sua obra “Compêndio de Teoria e Prática do Processo Civil”, quando disse que “a autoridade da coisa julgada é restrita à parte dispositiva do julgamento e aos pontos aí decididos e fielmente compreendidos em relação aos seus motivos objetivos”. Curioso observar que o CPC/1939 não adotou essa posição doutrinária, tendo estabelecido de modo mais adequado que “todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão” da sentença, deveriam se considerar como decididas e submetidas assim à coisa julgada (artigo 287, parágrafo único).

Mas com a entrada em vigor do CPC/1973 a posição de PAULA BATISTA viria a consolidar-se em nossa doutrina e jurisprudência, como resultado de uma interpretação equivocada do que previa o artigo 463 do CPC/1973, que assim dispunha:

“Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”.

Como o CPC/2015 estatui em seu artigo 504 que “Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença”, daí a razão pela qual se tornou um truísmo afirmar-se que somente a parte dispositiva da sentença é que produz a coisa julgada. Não há, dentre os nossos processualistas, quem divirja dessa ideia.

Mas vamos tentar despertar a consciência, inquietando-a e começando por observar que não havia no CPC/1973, como não há no CPC/2015, nenhuma regra legal que estabeleça que a coisa julgada material produz seus efeitos apenas sobre a parte dispositiva da sentença. O que o artigo 463 do CPC/1973 estatuía é que não fazem coisa julgada os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, excluindo, pois, dos efeitos da imutabilidade os motivos, o que quadra com a doutrina e legislação alemãs, fonte da qual o Legislador brasileiro utilizara-se. O mesmo se há concluir do artigo 504 do CPC/2015. Mas, afinal, o que são os motivos?

LIEBMAN, grande estudioso do instituto da coisa julgada e seguindo os caminhos percorridos por CHIOVENDA (para quem não se podia confundir o pronunciamento sobre o mérito e a coisa julgada), afirma que os motivos com base nos quais uma sentença está alicerçada prestam-se apenas para “determinar com exatidão a significação do alcance do dispositivo”. Mas se têm mesmo essa importante função, os motivos não podem ser excluídos da coisa julgada, porque sem eles, sem os motivos, não se pode fazer a intelecção do que foi decidido pelo juiz, se são os motivos, como pensa o próprio LIEBMAN, que constituem o meio pelo qual se pode saber não apenas o conteúdo do que decidido na sentença, mas também seu alcance.

Se adotássemos a posição de LIEBMAN, estaríamos a “objetivar” a sentença, isolando-a de quem a elaborou. Como se alguém, que não o juiz, tivesse pensado e expresso esse pensar na sentença. Isso é o que explica o que subjaz no pensamento de LIEBMAN quando afirma que “a autoridade da coisa julgada não é o efeito da sentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se dos seus efeitos, quaisquer que sejam, vários e diversos, consoante as diferentes categorias das sentenças”. (“Eficácia e Autoridade da Sentença – e outros escritos sobre a Coisa Julgada, p. 6, Forense Editora).

É de se observar, em justiça de LIEBMAN, que, ao tempo em que ele escreveu sobre a coisa julgada, na década de quarenta, o Estruturalismo Francês estava ainda engatinhando, produzindo resultados que, se eram tímidos na Filosofia, eram de todo desconhecidos dos juristas, e aliás ainda hoje permanecem desconhecidos.

Com o Estruturalismo Francês, abriu-se a inédita oportunidade de a linguagem poder falar sobre si própria: sobre a linguagem, o que evidentemente também se deve aplicar à linguagem do Direito, ou sobretudo a ela, porque o Direito é essencialmente linguagem. Os estudos desenvolvidos pelo Estruturalismo Francês é que nos permitem que, nos domínios da Ciência do Processo Civil, possamos compreender por que LIEBMAN estava equivocado, como estão todos aqueles que pensam que é apenas a parte dispositiva de uma sentença que tem a capacidade de produzir coisa julgada, e que os motivos da sentença não podem estar submetidos a ela.

Importante atentar para uma especial característica do Direito e que constitui a principal (e talvez a única) a razão pela qual o Legislador pretenda imunizar os motivos que estruturam uma sentença, não os fazendo submetidos à coisa julgada, como faz o nosso CPC/2015. Como observa BARTHES, ao poder não interessa que se possa falar sobre a linguagem, porque isso abriria um caminho muito perigoso, porque estaria em causa o próprio poder.

O Estruturalismo ensina-nos que no terreno da linguagem as coisas não funcionam como o Direito quer que elas funcionam. Aquilo que o juiz pensou, e que constitui a razão (o fundamento fático-jurídico) pela qual ele decidiu de uma maneira e não de outra, ou seja, os “motivos”, como assim são denominados pelos processualistas e por nosso CPC/2015, não podem ser isolados da parte dispositiva da sentença, porque esta, a sentença, é uma estrutura. E como toda estrutura, a sentença só possui significado quando todos os seus elementos atuam em coesão interna, produzindo um sentido que é o resultado direto de todos os elementos que integram essa mesma estrutura. Um elemento que se tire, e o sentido será outro.

Donde se deve concluir que, em sendo a sentença uma estrutura (tanto quanto o é o acórdão), o sentido que ela produz é o resultado de todos os elementos que a formam, constituindo os motivos um elemento da sentença enquanto estrutura. Observemos que LIEBMAN, a despeito de sua posição, reconhece que são os motivos que se prestam a dar e a explicar o sentido daquilo que o juiz julgou na parte dispositiva, o que demonstra que, mesmo sem saber de que estava a operar com um ensinamento do Estruturalismo Francês, LIEBMAN, tomava-o como base empírica de seu pensamento.

Dominar é formalizar, como observa Barthes e como comprovam as regras dos artigos 502 e 504 do CPC/2015. Ao estatuir, pois, que a coisa julgada é a “autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”, e que “os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”, o que o Legislador está a fazer é estabelecer uma forma pela qual pretende seja isolada a parte dispositiva, única que poderia fazer produzir a coisa julgada. Mas, como vimos, todos os elementos de uma estrutura estão interligados e são indispensáveis para que essa mesma estrutura produza sentido. Assim, não se podem isolar os motivos, excluindo-os da coisa julgada.

Pela posição de LIEBMAN, a coisa julgada poderia ser equiparada a uma espécie de garrafa, dentro da qual o Legislador coloca a sentença, isolando a sua parte dispositiva. A figura da garrafa como similaridade ao caso da sentença permite-nos recordar do exemplo dado por UMBERTO ECO, quando se refere ao poder de interpretação do leitor, que, em se deparando com um texto dentro de uma garrafa, pode interpretá-lo à sua maneira, embora dentro de certos limites razoáveis. No caso da coisa julgada, isso não pode ocorrer porque, segundo o Legislador, a parte dispositiva, submetida à coisa julgada, não pode mais ser interpretada, como se ela pudesse existir e ser compreendida sem os motivos que alicerçam aquilo que o juiz decidiu.

Uma das táticas que o poder emprega para impor domínio é o de suavizar as palavras. Curioso notar que o poder, exatamente porque proíbe que se possa falar sobre a linguagem, é que trata de manipulá-la. Daí a razão pela qual LIEBMAN diz que a coisa julgada é uma “qualidade”. Em vez de dizer que a coisa julgada tem a finalidade de impedir que o leitor interprete a linguagem que o juiz utilizou na sentença, o Direito, exercendo seu poder de dominação, diz que é uma “qualidade”, impondo um conteúdo todo próprio a essa palavra “qualidade”, para a tornar ficticiamente um valor, quando, em verdade, a palavra tem aí um sentido diametralmente oposto a esse.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal afastou a coisa julgada material em um processo tributário de relevo, e o fez considerando a sentença e o acórdão como estruturas, estabelecendo, pois, que o sentido é aquilo que resulta de todas as partes que formam essas decisões judiciais, inclusive os motivos que o julgador terá explicitado e adotado para decidir de uma maneira ou de outra.