Independência Funcional e Amicus Curiae

 

                                    Valentino Aparecido de Andrade

Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

A ação que a Defensoria Pública da União ajuizou em face de uma empresa que optou por restringir o acesso a um programa de “trainee” a pessoas da raça negra, traz uma curiosa questão processual.

 

Com efeito, a lei que criou a Defensoria Pública da União, a exemplo do que se dá com o Ministério Público em geral, confere autonomia funcional a cada um de seus membros, o que legitima que um defensor público possa, em nome da instituição, ajuizar uma ação sobre tema para o qual ele, defensor público, possua atribuição funcional.

 

Mas essa mesma independência existe para todos os demais defensores públicos da União, o que significa reconhecer a possibilidade de um outro defensor, que também possua atribuição funcional para a mesma matéria, posicionar-se diversamente aos fundamentos jurídicos da ação ajuizada por um outro defensor, ou mesmo contrário à ação, entendendo que não ela devesse ser ajuizada.

 

Surge, pois, uma interessante e curiosa questão processual: a mesma instituição, no caso, a Defensoria Pública da União pode atuar, em uma ação por ela mesma ajuizada,  como “amicus curiae”, nos termos do que autoriza o artigo 138 do CPC/2015?

 

Importante lembrar que o novo CPC trouxe para os nossos sistemas processuais em vigor o instituto do “amicus curiae”, que já era aplicado em nosso Ordenamento Jurídico, mas sem que uma norma expressa o regulasse, o que suscitada questionamentos. O artigo 138 prevê que: “O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação”.

 

                           Destarte, diante da forma como está regulado o instituto do “amicus curiae”, não há dúvida de que a Defensoria Pública da União pode, invocando a especificidade do tema que é objeto da ação referida, e sobretudo a repercussão social da controvérsia,  requerer seja admitida como “amicus curiae”, sem prejuízo de se tratar de uma ação por ela mesma promovida.

 

Embora se trate de uma mesma instituição, é necessário considerar que a independência funcional concedida por lei a seus integrantes é aspecto relevante a considerar quanto à posição processual que essa instituição pode adotar em juízo, de modo que pode não ser única essa posição processual. Mas é óbvio que isso somente pode ocorrer em determinadas e específicas situações, como são aquelas hipóteses previstas no artigo 138 do CPC/2015.

 

Se a princípio parece estranho e contrariar a lógica, que, em uma ação, uma mesma instituição ocupe lados processuais distintos, é necessário considerar que, no plano jurídico, diante da conformação dada ao instituto do “amicus curiae”, essa situação passa a ser juridicamente possível, e aliás, adequada e necessária em certas e específicas situações, pois que, em um  Estado Democrático de Direito, é tanto melhor que o processo possa refletir as diversas posições jurídicas sobre uma matéria, para que o Poder Judiciário possa dar ao caso a melhor solução possível.

 

Quanto a uma mesma instituição figurar em posições distintas em um mesmo processo, tivemos no Brasil, durante algum tempo, situação em que isso ocorria. Com efeito, antes da criação da Advocacia Geral da União era o Ministério Público da União quem representava a União em Juízo, de sorte que era possível ocorrer que o mesmo Ministério Público estivesse no polo ativo e no polo passivo em uma mesma ação, o que ocorria quando a ação era ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a União Federal,  esta  representada judicialmente pelo Ministério Público. Tínhamos, portanto, dois procuradores da república em uma mesma demanda, em posições processuais opostas.  Poder-se-ia dizer, e com razão,  que o Ministério Público Federal não atuava como parte, mas apenas como representante da União, esta, sim, parte. De todo o modo, ainda que como representante da União, era o Ministério Público quem atuava no processo, praticando seus atos e decidindo sobre quais devesse adotar.

 

A sociedade, em se tornando mais complexa a cada dia, reclama soluções jurídicas inovadoras que busquem abranger essa complexidade. O instituto do “amicus curiae” é uma dessas engenhosas soluções, e que deve ser aplicado no caso em questão.

 

O tema certamente ganhará espaço em nossa doutrina e jurisprudência.