ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. FAZENDA PÚBLICA. PRESCRIÇÃO

Processo número 09.000562-0

Juízo de Direito da 10ª Vara da Fazenda Pública

Comarca da Capital

 

Vistos.

 

Cuida-se de ação de restituição fundada na alegação de enriquecimento injustificado, ajuizada por (…), estabelecida nesta Capital, contra a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, alegando a autora que, em decorrência do que previam as Leis municipais – SP  10.209/1986 e 11.773/1995, a ré, em 1997,  publicou edital de chamamento aos interessados em obterem a alteração de índices e de parâmetros urbanísticos mediante contraprestação pecuniária, ao que a autora revelou interesse, manifestando sua proposta em 5 de dezembro de 1997, que foi aceita e homologada pela, ré, iniciando-se assim o procedimento administrativo que lhe permitiria obter aquelas alterações, desde que repassasse à ré, como contrapartida, a importância de R$285.000,00, do que efetivamente se desincumbiu, cumprindo assim todas as exigências, na aguarda de que, confeccionado o termo de compromisso, fosse convocada para firmá-lo, o que, entretanto, não veio a suceder, porque, em 15 de abril de 1998, a ré comunicou-lhe que o procedimento em questão fora suspenso em razão de medida liminar concedida em ação direta de inconstitucionalidade da referida legislação municipal, ação que havia sido proposta em novembro de 1997, e que acabou por ser julgada procedente, com o que o procedimento administrativo foi extinto por decisão da ré, que desconsiderou a ressalva feita no julgamento da ação direta quanto à mantença daquelas situações consolidadas antes de junho de 1998, o que abarcaria a situação da autora, que diante da decisão da ré, tratou, em 25 de setembro de 2003, de requerer da ré que ela lhe restituísse, com correção monetária até a efetiva restituição, o que havia recebido, cuidando  de ressalvar que a notificava de que aguardaria por quinze dias a contar daquela data, após o que exigiria a incidência de juros de mora, sendo que, em 24 de setembro de 2008, da ré recebeu o montante de R$598.099,27, que correspondia ao valor do principal com correção monetária, mas sem que a ré efetuasse o pagamento dos juros de mora, pugnando a autora, nesta demanda, por impor à ré a condenação em seu pagamento, e que os juros de mora sejam calculados em um por cento ao mês, segundo regra do Código Civil de 2002. Adotado o rito ordinário, conforme o Código de Processo Civil então em vigor.

 

Está a peça inicial instruída com a documentação de folhas 29/826.

 

Citada, a ré contestou, sustentando, nos termos do artigo 396 do Código Civil de 2002, que, em não havendo “fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”, e  não havendo culpa de sua parte, não pode haver a incidência dos juros de mora. Afirma, nesse contexto, que a não assinatura do termo de compromisso deveu-se por culpa exclusiva da autora, que convocada a firmá-lo, manteve-se inerte. Arguiu, subsidiariamente, a prescrição do direito arguido, e por fim, se procedente a pretensão, que os juros de mora sejam calculados em meio por cento ao mês (folhas 833/844, com documentos as folhas 845/986).

 

Réplica as folhas 902/918.

 

É o RELATÓRIO.

 

FUNDAMENTO e DECIDO.

 

As partes querem o julgamento antecipado desta lide, o que é de rigor ocorra, porque a relação jurídico-material que forma o objeto desta demanda é exclusivamente de direito.

 

Perscrutemos de início quanto à prescrição, por alegar a ré que há se fixar o termo inicial do prazo prescricional de dez anos, a contar do momento em que a autora implementou a contrapartida pecuniária à obtenção de benefícios previstos na Lei municipal – SP de número 11.773/1995. Em sendo de natureza pessoal a ação de restituição por alegado enriquecimento injustificado, o prazo de prescrição seria de dez anos, segundo a argumentação da ré, que está a invocar a aplicação do artigo 205 do Código Civil de 2002, olvidando, contudo, que para a ação de ressarcimento por enriquecimento sem causa, há um prazo menor e específico, de três anos (cf. artigo 206, parágrafo 3º., do Código Civil de 2002). A análise dessa matéria provoca um questionamento quanto a que Código Civil deve-se aplicar a este processo: se o Código Civil de 1916, que estava em vigor ao tempo em que a proposta apresentada pela autora foi recebida e homologada pela ré (o que ocorreu em dezembro de 1997), ou o Código Civil de 2002, em vigor quando a autora requereu, em setembro de 2003, a restituição dos valores. A definição quanto a esse Diploma também é relevante para o exame do mérito da pretensão.

 

Conforme a doutrina e a jurisprudência, nas relações jurídicas regidas pelo Código Civil, o princípio a aplicar-se é o do “tempus regit actum”, de maneira que se aplica a lei em vigor ao tempo em que o negócio ou contrato jurídico é firmado. Assim, como o negócio jurídico entabulado pelas partes desta ação foi formalizado em 1997, quando aceita e homologada a proposta da autora, deu-se início ao procedimento administrativo, há que se concluir que se aplica a ele o Código Civil de 1916.

 

No caso específico da prescrição, contudo, há que se considerar a aplicação da norma  de direito intertemporal fixada pelo  artigo 2.028 do Código Civil de 2002 (“Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”). Também se deve considerar que no Código de 1916 não havia prazo de prescrição específico para a ação de restituição por enriquecimento em causa, de modo que para esse tipo de ação prevalecia o prazo prescricional geral para as ações de natureza pessoal, de vinte anos, e que esse prazo somente se iniciou no momento em que a ré efetuou o pagamento em restituição dos valores que a autora pagara, quando se concretizou que a ré não fizera de fato observar a incidência dos juros de mora. Assim,  o termo inicial do prazo de prescrição deu-se em 24 de setembro de 2008,  de modo que, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, por força de sua regra do artigo 2.028, o prazo de prescrição a considerar-se nesta demanda seria de dez anos, por força do artigo 205 desse novo Código Civil. Mas é de se considerar igualmente que nas ações promovidas contra os entes públicos, há norma específica, fixada pelo Decreto federal de número 20.910/1932, fixando em cinco anos o prazo de prescrição em qualquer tipo de ação. Daí se conclui que esse é o prazo prescricional a considerar-se: de cinco anos.  Prazo que, iniciado em 24 de setembro de 2008, estava em curso quando esta ação foi ajuizada, em janeiro de 2009. Destarte, não há prescrição.

 

Com a análise da prescrição, já avançamos sobre uma importante matéria no exame do mérito da pretensão: a que radica na definição do Código Civil a aplicar-se. Decidiu-se, pois, que se há considerar o nuclear princípio a aplicar-se às normas intertemporais de natureza material, por maneira que o Código Civil de 1916 é o que rege a relação jurídico-material que forma o objeto desta ação, cabendo observar que não havendo norma jurídico-legal específica que regula a matéria, o Código Civil é que se aplica às relações jurídicas negociais das quais faça parte o ente público.

 

Código Civil de 1916 que não regulava, por norma específica, o instituto que a doutrina autorizada denomina de “enriquecimento injustificado”,  diversamente do que veio a suceder no Código de 2002, que em seus artigos 884-886, tratou do tema. No Código de 1916, o legislador tratou apenas do “pagamento indevido” (artigos 964/971), regulando tal instituto no campo das obrigações, como também faz o Código de 2002 (artigos 876-883), embora este trate separadamente do instituto do enriquecimento injustificado (artigos 884/886), no que, aliás, andou bem, de acordo com o que em nossa doutrina, desde PONTES DE MIRANDA, vinha se propugnando.

 

Com efeito, fazia observar o ilustre jurista PONTES DE MIRANDA em sua conhecida obra “Tratado de Direito Privado” (tomo XXVI, p. 120, RT), que a expressão “enriquecimento injustificado” era mais larga e mais própria do que a do enriquecimento sem causa, porque aquela abrange tanto os casos em que há licitude do resultado, quanto nos casos em que o enriquecimento decorre de ato ilícito, assinalando ainda o consumado jurista brasileiro que embora se identifique uma parecença entre o instituto do “enriquecimento injustificado” com a figura do ato ilícito absoluto, porque em ambos os casos há uma alteração no estado de coisas entre o sujeito ativo e o passivo, uma importante distinção radica no não ser requisito à caracterização do enriquecimento injustificado o haver culpa, pontificando que o enriquecimento injustificado  entra no mundo jurídico, ainda que não tenha havido culpa. (obra mencionada, p. 121).

 

Esse aspecto é de fundamental importância no desimplicar desta demanda, porque, como cuidou a autora de enfatizar, sua pretensão nesta lide não é de discutir acerca da responsabilidade civil por ato ilícito, a dizer, o que deu causa à extinção do negócio jurídico, porquanto sua pretensão é de obter a restituição por enriquecimento injustificado (folhas 904/905).

 

Com efeito, a pretensão que autora formula nesta demanda é a de restituição por enriquecimento injustificado, que nada tem a ver com ato ilícito ou com responsabilidade contratual, de maneira que não cabe analisar e decidir, nos limites desta lide, se houve ou não culpa no que deu causa à extinção do procedimento administrativo, porque o que se deve analisar aqui diz respeito apenas aos requisitos que caracterizam o instituto do “enriquecimento injustificado, o que torna apropositado nos valermos ainda uma vez do mestre PONTES DE MIRANDA, que afirma: “Se foi solvido o que  se não devia, solveu-se o indevido; a pretensão repetitiva vai buscar o que se prestou, pro soluto ou solvendi causa, sem a causa que tivesse de ser apagada pela solução. ‘Todo aquele que recebeu o que lhe era não era devido fica obrigado a restituir’. (…) Tem-se de haver prestado algo, com o propósito, o fim, de cumprir dever, ou dever e obrigação. (…)” (obra mencionada, p. 131).

 

Exatamente o que se revela caracterizado nestes autos. Pois que a autora, acedendo a uma proposta que a ré fizera a todos os interessados, manifestou a vontade  de usufruir de benefícios  previstos na Lei 11.773/1995, na aguarda de que, mediante contrapartida pecuniária, pudesse lhe ser autorizada a alteração de índices e parâmetros urbanísticos em empreendimento que estava a realizar (projeto de edifício de escritórios), tendo se desincumbido integralmente de implementar essa contrapartida pecuniária, esperando que aquele benefício fosse-lhe efetivamente concedido. Mas sucedeu que em uma ação direta de inconstitucionalidade o egrégio Tribunal de Justiça decidiu  que a “operação interligada”, como ficou conhecida a concessão de tais benefícios, era inconstitucional, embora ressalvasse que as situações consolidadas antes de junho de 1998 eram legais.
À ré, conquanto essa ressalva, pareceu conveniente precatar-se em face de futuros questionamentos judiciais, decidindo assim, sem mais,  dar por extinto o negócio jurídico que a vinculava com a autora. Assim agindo, ou a ré considerou que a inconstitucionalidade deveria prevalecer para todas os negócios jurídicos realizados, ou seja, mesmo àqueles ocorridos antes do termo fixado no julgado, e então nesse caso se configuraria a “condictio indebiti”, ou, então, entendeu que com o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, seria melhor impor a resilição unilateral do negócio jurídico celebrado com autora, caso em que se caracterizaria, segundo a lição de PONTES DE MIRANDA, uma “condictio ob causam finitam”, a dizer, uma causa que existiu e acabou. Mas, seja na primeira hipótese, seja na segunda, o certo é que se configura a obrigação de restituir, porque se caracteriza o enriquecimento injustificado.

 

Aliás, o que a ré, ela própria, reconheceu, quando restituiu à autora o valor do principal, com correção monetária. Mas sua obrigação cessou aí, ou se lhe poderia exigir restituísse também os juros de mora? Precisamente o que forma a pretensão da autora.

 

Que é de ser acolhida.

 

Com efeito, tão logo tomou conhecimento, em novembro de 2002, que a ré não iria manter em vigor o negócio jurídico, tratou de requerer a restituição do que pagara por conta dele, pleiteando por via administrativa, em 25 de setembro de 2003, a restituição do principal, mais a correção monetária, e cuidando validamente de ressalvar que aguardaria por quinze dias, após o que considerara haver a incidência dos juros de mora.

 

Argumenta a ré que em não havendo culpa, não há mora, e se não há mora, não há juros de mora, invocando a aplicação do artigo 396 do Código Civil de 2002, dispositivo semelhante ao do artigo 963 do Código Civil de 1916, relativo ao instituto da “mora”. Mas que se enfatizar, ainda uma vez, que a relação jurídico-material que forma o objeto desta lide não se refere a ato ilícito ou a obrigação contatual, mas sim ao enriquecimento injustificado, ao qual se aplica o princípio de que a restituição deve corresponder ao que foi recebido, integralmente.

 

Destarte, tendo a ré sido notificada pela autora em 25 de setembro de 2003 a que restituísse o que havia recebido, deveria tê-lo feito prontamente (dentro do prazo de quinze dias, que era  um prazo bastante razoável às circunstâncias), e não quase cinco anos depois, tendo permanecido por esse longo tempo com o dinheiro que deveria ter restituído à autora, caracterizando-se nessa demora a figura do enriquecimento injustificado.

 

E como destaca PONTES DE MIRANDA, “A pretensão por enriquecimento injustificado dirige-se à restituição do que se prestou, na medida do enriquecimento” (obra mencionada, p. 184). Donde se conclui que é (parcialmente) procedente a pretensão, por se impor à ré a obrigação de suportar a incidência dos juros de mora, contados desde o décimo sexto dia depois que notificada (o que ocorreu em 25  de setembro de 2003), e incidentes até o momento em que fizera o pagamento, em 24 de setembro de 2008, de forma que a autora receba em restituição o que corresponde precisamente ao enriquecimento injustificado da ré, relativamente ao período em que permaneceu injustificadamente com o dinheiro da titularidade da autora.

 

Quanto à taxa dos juros de mora, aqui sim se dá razão à ré, porque essa taxa deve ser calculada segundo o que previa o artigo 1.062 do Código Civil de 1916, que é de seis por cento ao ano. Vale enfatizar que se aplicam à relação jurídico-material as regras daquele Código, em vigor ao tempo em que o negócio jurídico foi firmado.

 

Incide correção monetária sobre o valor a ser restituído, a contar do momento em que ajuizada esta ação. Adotado para o cômputo da correção monetária a Lei federal de número 11.960/2009, a contar de sua entrada em vigor. Para o período anterior, aplicam-se os índices da Tabela Prática do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

Essa Lei – a de número 11.960/2009 – também se aplica ao cômputo dos juros de mora, mas a apenas a partir da sua entrada em vigor. Para o período anterior, aplicar-se-á a Lei federal de número 9.494/1997.

 

POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE, em parte, a pretensão, CONDENANDO a ré, MUNICIPALIDADE DE SÃ PAULO, no pagamento à autora, (…), a título de restituição por enriquecimento injustificado, de montante que corresponda a juros de mora, incidentes a partir do décimo sexto dia, contado desde 25 de setembro de 2003, e incidentes até 24 de setembro de 2008, juros de mora de seis por cento ao ano. Incidente correção monetária, tal como estabelecido. Verba não alimentar. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do novo Código de Processo Civil.

 

Sucumbiu a autora de parte mínima de sua pretensão, mas  ainda assim deve ser considerada essa sucumbência para o fim de se fixarem os encargos de sucumbência. De maneira que condeno a ré no restituir à autora em 90% (noventa por cento) do que ela despendeu a título de taxa judiciária e de despesas processuais, com atualização monetária a partir respectivo desembolso, e condenada também no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento), calculados sobre o valor a ser efetivamente restituído (devidamente corrigido), e não sobre o valor atribuído à causa, o que faz reduzir o montante dos honorários, de modo que assim se cuida observar a proporção da parte em que a autora sucumbiu.

 

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença, a ser submetida a reexame necessário.

 

São Paulo, em 10 de maio de 2017.

 

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE

JUIZ DE DIREITO

 

(proc. 09.000562-0).