DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE – ART. 196 DA CF – CONFLITO DE DIREITOS – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE/JUÍZO DE PONDERAÇÃO. OBRIGAÇÃO IMPOSTA AO ESTADO DE FORNECER DIETA ENTERAL

Processo número 1020337-38.2017

Juízo de Direito da 10ª Vara da Fazenda Pública

Comarca da Capital

                                      Vistos.

                                      Cuida-se de mandado de   segurança  impetrado por  (…) qualificado a folha 1, representado por sua curadora (…), alegando o impetrante  omissão da Autoridade impetrada, senhor SECRETÁRIO DA SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO, em não lhe fornecer a dieta enteral objeto de prescrição médica,  e indispensável ao tratamento médico a que se submete, sustentando o impetrante que, acometido  de graves moléstias, apresentando quadro demencial avançado, não possui a condição financeira que lhe permita adquirir tal produto médico, buscando, pois, por este “writ”, que se reconheça a prevalência de seu direito fundamental à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição da República de 1988, para se obrigar a Autoridade impetrada a providenciar o fornecimento de tal produto.

                                      A peça inicial está instruída com a documentação de folhas 19/44.

                                      Gratuidade concedida (folha 81).

                                      Negada a princípio a medida liminar (folhas 56/58), foi depois concedida (folha 79); não se registra a interposição de recurso.

                                      Notificada, prestou informações a Autoridade impetrada, afirmando que a dieta que foi prescrita ao impetrante caracteriza-se por sua generalidade, porque sua composição não é específica ao tratamento das doenças de que acometido o impetrante, de modo que não se pode obrigar o Estado a fornecer um produto médico com essa característica. Argumentou, outrossim, que o impetrante não cuidou apresentar relatórios médicos e nutricionais que atestem a impossibilidade da utilização da dieta enteral artesanal, havendo daí dúvida quanto a ter sido tentada a utilização desse tipo de dieta, ou se foi utilizada, que efeitos ela causou, elementos de informação indispensáveis a justificar-se, clinicamente, o uso da dieta prescrita (folhas 127/130).

                                      Pela concessão da ordem de segurança, assim se posicionou o MINISTÉRIO PÚBLICO. É o que está em seu r. Parecer de folhas 116/125.

         É o RELATÓRIO.

         FUNDAMENTO e DECIDO.

                                      Discute-se neste “writ” se o impetrante, que está a invocar a aplicação do artigo 196 da Constituição da República de 1988, possui o direito subjetivo a receber, gratuitamente, determinado produto de natureza médica (dieta enteral), e, em se configurando esse direito, se será de se obrigar o Estado a fornecer-lhe tal produto, analisando-se nesse contexto, por ponderação, os interesses em conflito.

                                      Cabe adscrever que a matéria que forma o objeto deste mandado de segurança não está alcançada pelo que decidiu o egrégio Superior Tribunal de Justiça ao instalar o incidente de demandas repetitivas, o qual versa apenas sobre o fornecimento de medicamentos, e não de produtos ou insumos para uso em tratamento médico.

                                      Examina-se, pois, o mérito da pretensão.

                                      Há que se estabelecer inicialmente o entendimento de que o artigo 196 da Constituição da República de 1988, ao erigir o direito fundamental à saúde, fez abarcar o conjunto de remédios, produtos e insumos necessários ao tratamento médico, de modo que se reconhece a presença do direito subjetivo do impetrante.

                                      Mas há também por se reconhecer a posição jurídica da Administração, que não pode ser obrigada a fornecer, indistintamente, qualquer medicamento, produto ou insumo, havendo que se respeitarem as regras técnicas fixadas no exercício de uma competência legislativa que a Constituição de 1988 outorgou à União, da qual se desincumbiu por meio de seu Ministério da Saúde, que assim estabeleceu, em legislação, o rol dos medicamentos, produtos e insumos que são fornecidos gratuitamente aos usuários do sistema único de saúde.

                                      Destarte, há dois direito subjetivos em conflito, e por isso se deve aplicar o juízo de ponderação, forma de controle enfeixada no princípio da proporcionalidade. Examinam-se, nesse contexto, os interesses de ambas as partes, ponderando-se as razões, seja para tentar harmonizar os direitos em conflito, ou, se impossível (como neste caso), para decidir qual direito subjetivo tornar-se-á prevalente no caso em concreto.

                                      Importante lembrar que nenhum direito fundamental é absoluto, nem conta com uma relação automática de preferência em face de outros direitos subjetivos. Assim, quando há um conflito entre um direito fundamental invocado pelo particular e a posição do Estado, há a necessidade de se analisar o caso em concreto para, aplicando o princípio da proporcionalidade, analisar de quais as razões que o Poder Público terá se valido para não reconhecer o direito fundamental do particular, ponderando essas razões para determinar qual direito subjetivo deva prevalecer.

                                      Assim ocorre com  o direito fundamental à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição da República de 1988, que não é um direito absoluto, nem conta com uma relação automática de preferência em face do direito do Estado, quando este se recusa a reconhecê-lo, instaurando-se um conflito entre tais direitos, cuja análise passa necessariamente pela aplicação do princípio da proporcionalidade.

                                      O direito fundamental à saúde não é um direito absoluto, seja porque está submetido a condições de reconhecimento de sua existência em um caso em concreto, seja também porque, embora reconhecido, poderá haver obstáculos à sua implementação prática.

                                      Com efeito, ponderando as razões que o Poder Público apresentou neste caso, verifica-se que elas não são de molde que possam contrastar a prevalência do direito subjetivo do impetrante, cujo quadro clínico foi bem descrito na documentação médica apresentada com a peça inicial e também as folhas 132/137 e 138/145. Destaque-se, pois, o relatório médico de folha 140, do qual consta que o impetrante, com idade avançada, foi acometido por sequela decorrente de um acidente vascular, suportando um grau avançado de demência, com outras patologias que se instalaram, em um estágio clínico de gravidade a exigir o uso de medicação, e quanto à alimentação, que o impetrante somente a possa receber por meio de dieta enteral mediante o uso de uma “sondagem vesical”.

                                      A dieta enteral que lhe deve ser fornecida, segundo a documentação médica apresentada, deve ser a do tipo hipercalórica e hiperprotéica, adequada a pacientes com quadro desnutrição, e com necessidades proteicas muito aumentadas, como é a situação clínica do impetrante, descrita no relatório médico de folha 140.

                                      Argumenta a Autoridade impetrada que a prescrição médica apresentada pelo impetrante é muito genérica, a ponto que poderia ser utilizada em diversos tratamentos médicos. De fato, a dieta enteral hipercalórica e hiperpróteica é, de comum,  indicada para o tratamento de diversas patologias, caso, por exemplo, das doenças neurológicas, as quais deixem como sequela a dificuldade de o paciente alimentar-se pelo meio normal. De modo que, acometido de doença neurológica grave, há, sim, indicação para o uso desse tipo dieta enteral.

                                      Quanto a não haver informação acerca do uso anterior de uma dieta artesanal, também essa razão não se sustenta. Além de se dever considerar  que os médicos que dispensam o tratamento ao impetrante possuem um conhecimento técnico mais próximo do real quadro clínico, também é de se observar que há indicação terapêutica do tipo de dieta enteral prescrita ao caso do impetrante, de modo que é de todo irrelevante perquirir-se se foi tentado o uso de outro tipo de dieta artesanal, ou que efeitos ela produziu, porque, considerado  o quadro clínico atual, a indicação é pelo uso da dieta enteral hipercalórica e hiperprotéica.

                                      Do que se pode concluir que as razões que a Autoridade impetrada pretextou não podem prevalecer, o que conduz a que se reconheça como prevalecente o direito subjetivo do impetrante, embora com a ressalva de que se lhe imporá apresente, periodicamente (a cada sessenta dias) um relatório médico atualizado, do qual conste a necessidade de se manter o uso da dieta enteral, se essa necessidade obviamente existir, com a indicação também do tipo de dieta que se deve manter.

                                      POSTO ISSO, ponderando-se os interesses em conflito, CONCEDO a ordem de segurança por declarar prevalecente o direito subjetivo do impetrante (…), de modo que obrigo a Autoridade impetrada, senhor SECRETÁRIO DA SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO, a providenciar o imediato fornecimento da dieta enteral, do tipo hipercalórica e hiperprotéica, observando a prescrição médica apresentada pelo impetrante, prescrição a ser apresentada periodicamente, tal como determinado. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do novo Código de Processo Civil. Com urgência, seja a Autoridade impetrada a cumprir esta Sentença, sob as penas da Lei.

                                      Ratifico a medida liminar, de modo que a Autoridade impetrada a deveria ter cumprido desde o momento em que fora intimada, do que, contudo,  não se desincumbiu, o que faz caracterizar sua recalcitrância. Mas antes de decidir que tipo de sanção essa recalcitrância comporta, entendo necessário ouvir a respeito o MINISTÉRIO PÚBLICO, para que conheça da situação processual e do que requereu o impetrante a folha 139. Medida a ser adotada com urgência.

                                      Beneficiado pela gratuidade, o impetrante nada despendeu com a taxa judiciária ou despesa processual, e por isso não há condenação da FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO nesse tipo de encargo de sucumbência. E em mandado de segurança, não há condenação em honorários de advogado.

                                      Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença; o MINISTÉRIO PÚBLICO, pessoalmente.

                                      Sentença a ser submetida a reexame necessário.

                                      São Paulo, em 21 de agosto de 2017.

                                      VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE

                                               JUIZ DE DIREITO