DEMOCRACIA: UM CONCEITO RELATIVO?

DEMOCRACIA: UM CONCEITO RELATIVO?
Valentino Aparecido de Andrade

Muitas pessoas ouviram, estupefatas, o presidente da república, Lula, dizer que a democracia é um conceito relativo, com o que buscava demonstrar que, à sua maneira, ou seja, à maneira da Venezuela, há ali uma democracia. Mas afinal, a democracia é um conceito relativo, ou não?

Sim, a democracia é um conceito relativo, porque ela, a democracia, varia na exata medida em que pode e efetivamente varia o estado de direito, e isso pode ocorrer em virtude de situações fáticas ou fático-jurídicas, com uma maior ou menor intensidade. O conceito de democracia é, portanto, o resultado de um duplo estatuto, normativo e empírico, em que o grau de influência concreta não pode ser de antemão aferido.

Situações fáticas podem, sim, flexionar o estado de direito a tal ponto que o desnaturem, modificando com isso a democracia real, que é aquela democracia com a qual as pessoas lidam em sua vida concreta, ou seja, no dia-a-dia, quando suportam um maior ou menor grau de pressão estatal e a limitação a uma série de liberdades que a constituição tenha assegurado, mas não realmente garantido.

Não há dúvida de que os protestos de 2013 no Brasil causaram um importante impacto sobre a nossa democracia, modificando-a, conquanto não tenham os cientistas políticos, filósofos, sociólogos e juristas podido, dez anos depois, afirmar com segurança o que mudou no nosso conceito de democracia real. Estudos ainda estão sendo realizados com o objetivo de perscrutar se o nosso estado de direito, como ele está previsto na Constituição de 1988, modificou-se ou não, e como ele a ideia de democracia que tínhamos, com a que passamos a ter depois de 2013.

O certo é que nada ficou como era antes, e isso é o resultado daquela situação de natureza exclusivamente fática.

Situações fático-jurídicas também podem modificar a democracia, ao produzirem efeitos sobre o estado de direito, e assim também sobre a democracia. A operação político-judicial conhecida como “Lava-Jato” é um excelente exemplo que pode demonstrar como isso ocorre.

Fatos imputados a políticos que ocupam cargos importantes de repente tornam-se objeto de investigações policiais, as quais, em uma sociedade do espetáculo como a que vivemos no mundo inteiro, tornam-se de pronto conhecidas de todos, transformando em um assunto corriqueiro nas conversas que as pessoas mantêm com seus amigos, vizinhos e conhecidos, como se se tratasse de um tema prosaico, tanto quanto era antes o discutir futebol. Assim, em vez de as pessoas conversarem sobre quem deveria ser o melhor técnico para a seleção brasileira, veem-se conduzidas a discutirem sobre o tema da moda. Os processos judiciais que foram instaurados no bojo daquela operação policial passaram a ser discutidos por toda a gente.

Mas há em toda a operação policial e jurídica um momento em que se tem algo como que uma inversão dos papeis, em que os acusados, exercendo suas garantias constitucionais, passam a acusar os acusadores, invocando exatamente as figuras da democracia e do estado de direito, moldando naturalmente esses conceitos conforme seus interesses. E a mesma sociedade do espetáculo que fizera com que as pessoas comuns discutissem as operações policiais, começam a discutir aspectos do processo, agora sob a perspectiva dos acusados, o que os sociólogos explicam como um fenômeno comum no ser humano, que é o de solidarizar-se a partir de um determinado momento com quem está sendo fustigado pelo poderoso Estado.

No que se transforma ou se pode transformar a democracia após situações jurídicas como as que são produzidas por eventos como essas operações policiais e jurídicas, é algo que não se pode bem precisar, senão que esperando que esses eventos possam exaurir seus efeitos, ou a grande maioria deles, quando então se pode, com algum grau de certeza, definir se houve ou não modificação do conceito de democracia, seja a partir de fatos, seja a partir do próprio Direito.

Lembremos de uma outra operação, a que ocorreu na Itália com a operação “Mãos Limpas”, iniciada na década de noventa, logo em seguida a um escândalo financeiro. Os cientistas políticos são unânimes em reconhecer que a democracia italiana modificou-se depois daquele episódio, porque o estado de direito, tal como fora estruturado na constituição italiana, alterara-se.

Em sua mais conhecida obra, “Teoria da Democracia”, em dois volumes, o cientista político italiano, Giovanni Sartori (1924-2017), analisando com mão de mestre todas as variações a que o conceito de democracia está submetido, afirma que é necessário que exista um determinado núcleo (“seus ideais”), sem o que a democracia não existe, ou não existe de verdade, embora possa existir apenas em um papel, ou seja, na constituição formal do país.

Mas SARTORI observa que o conceito de democracia está hoje submetido a problemas cada vez mais complexos, produzidos por uma sociedade que é, ela própria, cada vez mais complexa, o que significa dizer que o conceito teórico de democracia está se alterando com o tempo, tanto quanto a nossa impressão sobre a democracia também se modifica, engendrando modelos fáticos que, antes, não se amoldavam àquilo que o conceito teórico de democracia podia comportar.

Podemos comparar democracias, se há variações de grau, e se essas variações podem ter como causa situações de fato? Podemos afirmar, com segurança, que a nossa democracia é idêntica à norte-americana? Pois bem, se as constituições que formam o estatuto normativo dessas democracias são diversos, deve-se concluir que há diferenças substanciais entre uma e outra. A questão é saber até que ponto um conceito elástico (ou relativo) como o de democracia, submetido como observou SARTORI a um duplo estatuto (fático e jurídico), pode flexionar sem perder seu núcleo essencial.

Quanto à questão de saber se a Venezuela é ou não uma democracia, estou com o genial MACHADO DE ASSIS, que, acerca das várias maneiras de se ver uma coisa, disse em “Memorial de Aires”: “A alma dá vida às coisas externas, amarga ou doce, conforme ela for ou estiver”.

E se o leitor, se não te agradou a conclusão, “pago-te com um piparote, e adeus”, como o faria o Bruxo do Cosme Velho, se esta fosse uma de suas crônicas.