Processo número 1001298-45.2021
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital
Vistos.
Cuidam-se de embargos de que a pessoa jurídica (…), estabelecida nesta Capital, utiliza-se como meio de contrastar processo de execução que lhe promovem (…), alegando a embargante que celebrou, em 2013, contrato de locação de salão de uso comercial no shopping Cidade Jardim, localizado nesta Capital, e que o contrato vigoraria até dezembro de 2022, mas que, em razão da pandemia, viu-se obrigada a proceder a entrega das chaves em 24 de junho de 2020, enfatizando que, até a ocorrência da pandemia, estava com as suas obrigações contratuais rigorosamente em dia, sustentando nesse contexto que a multa por rescisão do contrato que as embargadas lhe aplicaram e lhe exigem não pode prevalecer, dado que a pandemia deve ser caracterizada como evento de força maior, excluindo esse tipo de multa contratual, ou, então, subsidiariamente, para que o valor da multa seja reduzido a três alugueres proporcionais de acordo com o tempo que restava para o final do contrato, excluídos ainda os valores relativos aos alugueres e demais encargos vencidos durante o tempo em que o shopping permaneceu totalmente fechado por imposição do Poder Público, reconhecendo, por fim, quanto ao ponto comercial, que já havia pago 80%, e que, com a extinção do vínculo contratual, as embargadas puderam desde logo o revender, não havendo motivo para obrigar a embargante ao pagamento do saldo de 20%.
Embargos recebidos, mas não dotados de efeito suspensivo.
Contestaram as embargadas, defendendo prevaleçam os valores que estão sendo cobrados no processo de execução, assim o da multa por rescisão manifestada pela embargante, e também do débito decorrente do ponto comercial, valores cuja exigibilidade decorrem de cláusulas expressas no contrato de locação e com as quais a embargante acedera, não podendo ela invocar a teoria da imprevisão, devendo prevalecer o fato de que a rescisão decorreu de exclusiva vontade da embargante. Defende, outrossim, prevaleçam os valores cobrados a título de alugueres e encargos da locação.
Réplica apresentada.
É o RELATÓRIO.
FUNDAMENTO.
Não há a necessidade de se produzirem outras provas além daquelas já apresentadas, de modo que o julgamento antecipado da lide é medida adequada, o que, de resto, as partes requereram.
Registrando que não há matéria preliminar que penda de análise, julga-se o mérito da pretensão.
As partes firmaram um contrato de locação de salão de uso comercial e haviam previsto que esse contrato findaria em dezembro de 2022, mas, sobrevindo a pandemia, seus efeitos impactaram diretamente a relação contratual, porquanto é fato notório que o comércio em geral foi impedido de funcionar em razão de medidas estatais adotadas para o controle da pandemia, e assim o estabelecimento comercial da embargante permaneceu fechado, assim como todas as lojas que formam o shopping “Cidade Jardim”, entre março e junho de 2020, sendo certo que a retomada, em junho de 2020, ainda suportava importantes efeitos das medidas estatais, porquanto o horário autorizado pelo Poder Público era de apenas quatro horas diárias.
Diante dessas circunstâncias, que se configuram como um evento de força maior, a embargante legitimamente decidiu encerrar suas atividades no referido shopping, procedendo a entrega das chaves em 24 de junho de 2020.
Àquela altura, as embargadas haviam determinado que todas as lojas de seu shopping deveriam retomar as atividades, limitadas, por óbvio, às quatro horas autorizadas pelo Poder Público. A embargante, contudo, decidira não retomar as atividades, e como observado, entregou poucos dias depois as chaves, manifestando a inequívoca vontade de extinguir o contrato.
E é em virtude da rescisão do contrato, que as embargadas, alegando que essa rescisão decorreu tão somente da vontade da embargante, que buscam obter, no processo de execução, a satisfação do crédito que ali alegam, crédito que abarca multa por rescisão, alugueres e encargos de locação, além de saldo de ponto comercial, sustentando que a embargante não pode invocar, nem se beneficiar da teoria da imprevisão, argumentação, contudo, que não medra, porquanto não se pode deixar de considerar que, em razão da pandemia e por força de medidas estatais, o shopping estivera totalmente fechado desde março de 2020 e somente pôde ser reaberto, parcialmente, por quatro horas diárias partir de junho daquele ano. Obviamente que, impedida de manter sua loja em regular funcionamento, a embargante sofreu direto impacto decorrente das medidas estatais e da ordem de fechamento de seu comércio e, de resto, de todo o shopping, afetando seu faturamento, que, nessas circunstâncias, inexistiu, dado que não houve, nem podia haver venda direta ao consumidor durante aquele período. Beneficia-se a embargante, portanto, dos efeitos jurídicos que decorrem quando se configura, como neste caso, um evento de força maior, quando afeta diretamente uma relação contratual, designadamente um contrato de locação comercial, cujas características e essência desnaturam-se acentuadamente quando o espaço locado não pode ser utilizado pelo locatário durante considerável tempo, pouco importando, na análise da relação contratual, que o óbice ao funcionamento decorra de medidas decorrentes de polícia, porque o fato é que a embargante, locatária, não pudera se utilizar do espaço que lhe foi locado, e essa situação criou-lhe uma onerosidade excessiva.
O Código Civil de 2002 prevê em seu artigo 478 a figura da “resolução por onerosidade excessiva”, que se aplica quando, em um contrato de execução continuada ou diferida, uma das partes contratantes esteja a suportar uma situação que possa se qualificar como “excessivamente onerosa”, uma cláusula geral que como toda cláusula geral deve ter seu conteúdo preenchido por valorações que são feitas de acordo com as circunstâncias do caso em concreto.
É certo que, após junho de 2020, as circunstâncias fáticas modificaram-se, dado que o Poder Público autorizava o retorno das atividades do comércio, mas apenas por quatro horas, o que significa dizer que, após junho de 2020, o evento de força maior continuava a configurar-se, de modo que a opção da embargante em proceder ao encerramento de suas atividades comerciais no shopping encontra justificável escusa naquelas circunstâncias fático-jurídicas (a pandemia como fato, e as normas estatais como elemento jurídico).
Destarte, há que se reconhecer em favor da embargante o direito de ter manifestado a vontade de extinguir o contrato de locação por onerosidade excessiva causada pela pandemia, e por isso se a desobriga de suportar o pagamento da multa por rescisão do contrato. Aliás, tecnicamente a extinção do contrato não se deveu a uma rescisão, mas sim a uma resolução por onerosidade excessiva, figura jurídica diversa da extinção, com regime jurídico diverso, nomeadamente quanto a seus efeitos.
Desobrigar a embargante de suportar multa por “rescisão” constitui consequência de não se considerar tenha havido uma manifestação de vontade livre da embargante, senão que uma imposição decorrente de circunstâncias em face das quais o instituto da força maior, previsto no Código Civil, configura-se.
Assim, em decorrência da caracterização de evento de força maior, declaro a existência de relação jurídica para desobrigar a embargante de suportar a multa por rescisão (rectius: resolução) do contrato.
A mesma fundamentação jurídica é de ser aplicada em relação aos alugueres e demais encargos da locação vencidos durante os meses de março a 24 de junho de 2020, quando houve a entrega das chaves. Estando o shopping totalmente fechado por imposição de medidas estatais, não pudera a embargante utilizar-se do espaço que lhe foi locado pelas embargadas, e não havendo essa possibilidade fático-jurídica de um uso mínimo, não se pode obrigar a embargante a cumprir a obrigação contratual que lhe impunha o pagamento dos alugueres e encargos da locação, dado que, ainda que obrigadas por medida estatal, o fato é que as embargadas também não estavam em condições de cumprir a sua parte no contrato, ou seja, não podiam colocar à disposição da embargante a efetiva utilização do espaço que lhe locavam.
Argumentam as embargadas que a pandemia causou-lhes momentosos efeitos econômicos, tanto quanto sucedeu com a embargada, e esse fato é de ser reconhecido. Mas ele não descaracteriza que se considere, como se deve considerar que as circunstâncias decorrentes da pandemia caracterizam-se como um evento de força maior, legitimando que houvesse a resolução do contrato por onerosidade excessiva. Quanto aos prejuízos que as embargantes alegam, a legislação em vigor no Brasil lhes assegura promovam contra o Poder Público a recomposição desses danos, pois que tiveram gênese em medidas de poder de polícia.
Por fim, quanto à questão que diz respeito ao ponto comercial, obtempera a embargante que, em função do acentuado tempo em que o contrato de locação vigorava (iniciado em 2013), já despendeu com o custeio do ponto comercial valor que corresponde a 80% de seu estimado valor no contrato, e que a resolução do contrato por onerosidade excessiva permite às embargadas o possam novamente contratar, não se revela justo se obrigue a embargante ao pagamento do saldo de 20%, no valor que as embargadas exigem, que é da ordem de R$257.271,00.
POSTO ISSO, é de razão reconhecer em favor da embargante todos os efeitos decorrentes de uma resolução do contrato por onerosidade excessiva, o que significa dizer que se acolhe, no todo, a argumentação que aqui desenvolveu, declarando-se, pois, a existência de relação jurídica que desobriga a embargante de suportar a multa por “rescisão” (rectius: resolução) do contrato, alugueres e demais encargos da locação, desobrigando-a também de pagar o saldo do ponto comercial, JULGANDO procedentes, no todo, estes embargos à execução, julgados em seu mérito, por aplicação subsidiária do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil. Certifique-se nos autos do processo de execução.
Condeno as embargadas no reembolso à embargante do que esta suportou a título de taxa judiciária despesas processuais, com atualização monetária desde o respectivo desembolso. Condeno as embargadas também em honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído a estes embargos, devidamente corrigido.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 3 de agosto de 2021.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO