COMPETÊNCIA E A LÓGICA DO RAZOÁVEL

COMPETÊNCIA E A LÓGICA DO RAZOÁVEL
Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

Devemos ao jusfilósofo, LUÍS RECASENS SICHES, a preocupação que se deve ter sempre com o que ele denomina de “a lógica do razoável”, como a instar o operador do Direito a ir além do que as palavras de uma norma legal dizem ou parecem dizer, quando se trata da importante missão de interpretar seu conteúdo e alcance.

Pois quando o operador do Direito, interpretando uma norma legal, e aplicando nessa interpretação aqueles métodos tracionais (literal, exegético, histórico, dogmático), chega a um resultado que não parece observar a “lógica do razoável”, deve o operador do Direito precatar-se, devendo a princípio refazer todo o iter do procedimento hermenêutico, conferindo para apurar se eventualmente não incidiu em algum equívoco no caminho percorrido; e se ao final constatar que, embora o procedimento hermenêutico esteja correto, o resultado da intepretação não se mostra razoável, deve ajustar o possível para que essa razoabilidade prevaleça na interpretação do conteúdo e alcance da norma legal.

Consideremos uma situação concreta, vivenciada pelos operadores do Direito em São Paulo, cuja legislação fixa a competência por valor da causa aos foros regionais, estabelecendo um teto máximo de quinhentos salários mínimos, teto que, superado, fixa a competência (residual) ao foro central. Trata-se do Decreto-Lei Complementar de número 3, que é de 1969, conhecido como “Código Judiciário”, complementado ao longo do tempo por outras normas, em especial as Resoluções de número 2/1976 e 148/2001, as quais fixaram em quinhentos salários mínimos o teto de competência por valor dos foros regionais na Capital de São Paulo.

Ocorre, entretanto, que o Código Judiciário de São Paulo e as referidas Resoluções estabelecem que, se a ação for de execução amparada em título executivo extrajudicial, nesse caso o valor limite de quinhentos salários mínimos não se aplica, e a competência, assim, é do foro regional. É chegada a hora de aplicarmos a lição de RECASENS SICHES, de modo que devemos tentar encontrar “a lógica do razoável” na regulação dessa matéria de competência.

Por qual razão, pois, o legislador paulista quis excluir o limite de quinhentos salários mínimos para a ação de execução esteada em título executivo extrajudicial, não aplicando a esse tipo de ação o critério de competência por valor que adota para o processo de conhecimento e mesmo para a fase do cumprimento de título executivo judicial? Qual o regime de “discrímen” que justifica essa modificação de critério de competência?

Se observarmos, como de rigor, a lição de RECASENS SICHES, a conclusão a que chegaremos é de que esse regime legal de “discrímen” atenta com a lógica do razoável, e se isso sucedia já em face do CPC/1973 em sua estrutura original, quando vigorava o artigo 583 daquele código (“Toda execução tem base em título judicial ou extrajudicial), com maior razão afronta a lógica do razoável quando se tem como certo que, no regime do CPC/2015, o processo de execução passou a ser adotado apenas para os títulos executivos extrajudiciais, mas com a ampliação de uma importante função cognitiva, desempenhada pelos embargos nesse tipo de execução, em moldes equivalentes a um processo de conhecimento.

Destarte, se há uma justa razão que justifica estabelecer um teto para a competência por valor dos foros regionais (em quinhentos salários mínimos), e o fato de haver, em tese, uma equivalência entre valor da causa e complexidade (quanto menor o valor atribuído à causa, menos complexa é, em regra é), essa razão justifica que prevaleça esse critério legal também para o processo de execução fundado em título executivo judicial no regime do CPC/2015, dada a possibilidade da ocorrência de embargos à execução. (Aliás, constata-se na prática o aumento no número de embargos à execução formulados em execução por título extrajudicial.)

O legislador pode muito, mas não pode tudo, porque lhe cabe observar a lógica do razoável. E quando o legislador não a observa, cabe ao juiz o fazer.

Por fim, necessário enfatizar que a “lógica do razoável” também é conhecida como “princípio do devido processo legal substancial”.