A TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO E O DIREITO PÚBLICO

As vicissitudes pelas quais não raro passa o consumidor, quando não se lhe fornece, em tempo e a modo e conforme o contratado, o produto ou serviço que adquiriu, colocado assim diante da necessidade de despender tempo na solução do problema, que pode perdurar até o momento em que obtém a tutela jurisdicional que obrigue o comerciante ou o fornecedor a cumprir o que contratara, essa comum situação em lides decorrentes de uma relação de consumo  fez com que a doutrina brasileira engendrasse uma teoria que, nos quadrantes do regime da responsabilidade civil, deu ensejo a uma compreensão daquela específica realidade. Assim surgiu a teoria a que se deu o abstruso  nome de “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor”.[1]

                                      Segundo essa teoria, quando o consumidor tem suas expectativas frustradas devido a um tratamento inadequado ou defeituoso de parte do comerciante ou do fornecedor, e em razão dessa situação é obrigado a dedicar  parte de seu tempo e  de sua rotina para buscar a satisfação de seus interesses, nesse caso o tempo despendido deve ser quantificado  e reparado, mesmo quando  o tempo consumido não tivesse uma destinação produtiva, ou seja, ainda que esse tempo não pudesse ser qualificado como uma “mais-valia”, de que fala o genial KARL MARX. Para a teoria do “Desvio Produtivo”, basta que o consumidor tenha despendido algum tempo de suas “atribuições cotidianas”  para a solução do problema.[2]

                                       Na construção da referida teoria, levou-se em conta, aliás mui adequadamente, o específico ambiente em que ocorrem as relações de consumo, sobretudo porque é cada vez mais frequente que o consumidor tenha que enfrentar o poder de organismos comerciais gigantescos, caso, por exemplo, das empresas de telefonia, de energia elétrica, e do sistema financeiro, e o tempo que terá que despender na solução de algum problema que envolver o contratado com esse tipo de empresa em regra não é diminuto.

                                      Embora seja possível  questionar se há, de fato, um objeto específico que justifique a criação de uma teoria que, a rigor, nada mais representa do que um certo desenvolvimento da vetusta teoria da responsabilidade civil, criada pelos romanos, o fato é que a sua aplicação tem contribuído  a que o juiz, nas lides de relação de consumo, dê  uma maior atenção ao fator “tempo”,  quando estiver a quantificar o valor do dano suportado pelo consumidor. Assim, pode-se dizer que essa teoria tem, de algum modo, complementado, ou mais propriamente fortalecido o  rol de direitos do consumidor, como o que concede ao juiz o poder de  inverter o ônus da prova, e o que fixa um regime jurídico de responsabilidade civil objetiva.[3]

                                      O problema surge quando se pretende transportar essa mesma teoria a um ambiente que em nada é semelhante àquele em que  está o consumidor, como se fosse válido reconhecer que o particular, quando em relação jurídica com o poder de império do Estado, como sucede, por exemplo, no campo do direito tributário,  pudesse aí ser visto como um consumidor, como se a esse tipo de relação jurídica fosse possível aplicar o que o  Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 4º., inciso III, estatui,  quando estabelece como princípio nuclear o da “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.

                                      Argumentar-se que as normas jurídicas que regulam um determinado instituto nos limites de uma específica área do Direito, e que as teorias construídas a respeito desse mesmo instituto  podem  ser transportadas para serem aplicadas indistintamente a outros ramos, como se houvesse uma conatural relação de complementariedade entre essas normas, teorias e áreas jurídicas, é olvidar de algo essencial,  que as relações jurídicas são diversas, porque há princípios e regras que lhes são peculiares, e que a construção das normas (princípios e regras) e das teorias jurídicas é ditada por características impostas pela especificidade do objeto de cada ramo do Direito.

                                      Quanto dera fosse simples e fácil transportar uma teoria de um ramo a outro do Direito, sem que daí adviesse qualquer incompatibilidade. Uma teoria do direito processual civil poderia, sem mais, aplicar-se ao direito tributário, e outra deste ao direito internacional público ou privado. Conceitos como o do interesse simples e o do poder de polícia,  criados no âmbito do direito administrativo, poderiam ser aplicados a outros ramos do Direito, sem a necessidade de qualquer adaptação. Assim, a título de exemplo, no caso da propriedade de veículo, que é um bem móvel, poderíamos considerar  e aplicar as regras do Código Civil, as quais determinam, como regra geral, que a propriedade é transferida mediante a simples tradição do bem. Ocorre, entretanto, que o Legislador tivera razões suficientes para, ao editar o Código Nacional de Trânsito,[4] ter regulado de modo diferente a questão da propriedade, optando por criar um regime jurídico próprio, como também ocorreu no campo do direito tributário, dado que, em nosso sistema constitucional, os Estados-membros podem legislar sobre tributos de sua competência, caso, por exemplo, do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículo Automotor, e que alguns desses Estados, São Paulo, por exemplo, decidiram  instituir um  regime jurídico de sujeição passiva nos mesmos moldes em que o Código Nacional de Trânsito trata da propriedade de veículo automotor.

                                      E o que falar da responsabilidade civil? Bastaria que algumas tantas regras gerais fossem instituídas, como aquelas que a doutrina civilista cuidou engendrar, e elas seriam aplicadas ao direito administrativo, ao direito constitucional. E, então, a ciência do Direito poder-se-ia crer una e uniforme.

                                      Mas todos sabemos que isso não tem, nem pode ter consistência, e que a divisão que de há muito se cuidou fixar  entre o direito público e o direito privado atende a uma imperiosa realidade: a existência de princípios e de regras próprios a cada um dos diversos ramos do Direito. Aliás, a evolução do Direito como ciência deveu-se sobretudo à compreensão do que há de particular e específico em cada ramo que o compõe.

                                      Quanto mais um ramo do Direito impõe-se em razão da existência de seu específico objeto, tanto mais o intérprete deve estar atento aos princípios e regras próprios desse ramo, se quer extrair, com cuidado e precisão, o conteúdo e alcance da norma legal de que esteja a cuidar, ou quando esteja a aplicar uma determinada teoria jurídica.

                                      Pois bem, quando definimos o direito administrativo como o fez MARCELLO CAETANO, no sentido de que deve  corresponder a um “sistema das normas jurídicas de disciplinam as relações pelas quais o Estado, ou pessoa que com ele coopere, exerça a iniciativa de prosseguir interesses utilizando o privilégio da execução prévia”,[5] damo-nos conta de que os ramos do Direito existem porque há um específico objeto que os fez criados, que há princípios próprios que se lhe aplicam, e que o legislador, ao instituir as normas legais, deve estar atento a isso, o que legitima e justifica, por exemplo,  que o regime jurídico-legal de responsabilidade civil do Estado contenha normas (regras e princípios) exclusivas, e que são diversas (e nalguns casos, bem diversas) daquelas que se devem aplicar quando a responsabilidade civil  decorrer de uma relação de consumo.

                                      Não quero dizer que, na ciência do Direito, não haja princípios gerais que não possam ser aplicados a mais de um ramo. Óbvio que há princípios gerais (o da boa-fé, por exemplo).  Mas em tudo há limites. Compete ao intérprete, portanto, considerar esses limites.

                                      Lembremo-nos do que dizia, em tom de advertência, AGUSTIN GORDILLO, em sua obra “Princípios Gerais de Direito Público, hoje praticamente esquecida e que, não mais editada, constitui relíquia de alfarrábio:

         “Não é possível, hoje em dia, iniciar o estudo da teoria e do regime da atividade estatal sem ter um conhecimento prévio de ao menos alguns elementos de metodologia da ciência e de teoria geral do Direito.

         “O desconhecimento de tais princípios elementares pode levar e leva a discussões inúteis, carentes de significação, em que se apresentam argumentos de suposto valor científico-administrativo, quando na realidade se trata de argumentos à margem de toda a ciência”.[6]

                                     Com efeito, o direito público lida com uma específica realidade normativa e empírica, em que as relações jurídicas do particular com o Poder Público devem ser consideradas segundo a estruturação que o nosso direito positivo conferiu a essas mesmas relações, sobre as quais atuam determinados princípios e normas, que não estão presentes nas relações jurídicas de direito privado. Equiparar, portanto, a relação jurídico-tributária que o sujeito passivo da exação mantém com o Estado a uma relação de consumo é desconsiderar a realidade normativa e empírica do direito tributário.

                                      Poder-se-ia argumentar que, no caso da responsabilidade civil do Estado, o Código Civil de 2002 (a exemplo do que fazia o Código Civil de 1916) regula a matéria,  ao estabelecer em seu artigo 43 que, “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”, donde se poderia concluir que essa responsabilidade civil não é de direito público, mas de direito privado em nosso ordenamento jurídico em vigor.  De fato, a ideia de que o Estado podia ser responsabilizado civilmente pelos danos que causasse, ainda quando estivesse a exercer ato de império, somente pôde surgir quando se considerou que o tema deveria ser tratado pelo direito civil, e não pelo direito constitucional ou administrativo.[7] Mas isso ocorreu apenas durante o tempo em que se entendia que o Estado não podia ser responsabilizado por quaisquer danos que, no exercício de suas funções, tivesse gerado, porque deveria se beneficiar de prerrogativas que o direito constitucional ou o direito administrativo lhe concediam. Destarte, apenas em sua fase embrionária é que  a teoria da responsabilidade civil do Estado foi construída no direito privado, até que, ganhando consistência, retomou seu devido lugar nos domínios do direito público, como observa HELY LOPES MEIRELLES:

         “O § 6º. do art. 37 da CF seguiu a linha traçada nas Constituições anteriores, e, abandonando a privatística teoria subjetiva da culpa, orientou-se pela doutrina do Direito Público e manteve a responsabilidade civil objetiva da Administração, sob a modalidade do risco administrativo. Não chegou, porém, aos extremos do risco integral. É o que se infere do texto constitucional e tem sido admitido reiteradamente pela jurisprudência, com apoio na melhor doutrina (…)”.[8]  

                                      Daí porque não há nenhuma razão que justifique que uma teoria como a do “Desvio Produtivo”,  engendrada para  lidar com aspectos  específicos da relação de consumo,  possa ser aplicada a um contexto totalmente diverso,  como é aquele em que ocorrem as relações jurídicas entre o particular o Estado, regidas por princípios e regras específicos ao direito público, nomeadamente quanto à responsabilidade civil.

[1] Teoria desenvolvida por Marcos Dessaune em obra por ele publicada em 2011, sob o título “Desvio Produtivo do Consumidor”.

[2] Cf. TJMG, apelação cível 0092016-86.2011.

[3] Art. 6º., inc. VIII, e 14, do CDC.

[4] Lei federal 9.503/1997.

[5] Manual de Direito Administrativo, p.17, Coimbra editora, 1947.

[6] Princípios Gerais de Direito Público, p. 1,  trad. por Marco Aurélio Grecco, revisão Reilda Meira, editora Revista dos Tribunais, 1977.

[7] Cf. Caio Mario da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, 6ª. edição, p. 127.

[8] Direito Administrativo Brasileiro, p. 588, 24ª. edição, Malheiros editores.