A LITIGÂNCIA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA COMO EXPEDIENTE PARA LEGITIMAR A CONCORRÊNCIA DESLEAL NO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS

 1. LITIGAR PARA OBTER VANTAGEM ILÍCITA.  

                                     Em um país com vinte e sete diferentes legislações estaduais sobre o ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços, as quais,   sobre divergirem entre si em muitos aspectos, estão sob contínua modificação, e quando somado a isso se tem um sistema judicial como o nosso, em que o número de ações e de recursos não permite a implementação do princípio constitucional da duração razoável do processo, daí decorre que  a busca pela tutela jurisdicional possa não ser utilizada apenas como o exercício legítimo do direito de ação constitucionalmente garantido,  mas também como uma forma de obter indevidas vantagens, lucrando-se com a demora no trâmite de um processo judicial.  Isso vem ocorrendo sobretudo no campo do Direito Tributário, envolvendo a sonegação fiscal do ICMS por algumas empresas que atuam no mercado de combustíveis e que apostam na longa duração do processo como um expediente para poderem continuar a atuar no mercado, graças a medidas liminares que afastam o poder de fiscalização do Fisco. O processo judicial é utilizado, assim, como um instrumento para que essas empresas “legitimem” uma forma de concorrência desleal.

                                      O mercado brasileiro de combustíveis é o sétimo maior mercado no mundo, movimentando bilhões de reais por ano. As atividades desse setor, sobretudo as de distribuição de gasolina e de álcool hidratado, estão sujeitas à incidência do ICMS.  A sonegação fiscal, contudo, impressiona. Segundo cálculos da Fundação Getúlio Vargas, em 2018, 7,2 bilhões de reais deixaram de entrar nos cofres públicos em razão da sonegação do ICMS. Em São Paulo, foram 5 bilhões de reais. E enquanto há 60 bilhões de reais inscritos em dívida ativa nos Estados,  a recuperação pelo Fisco  não chega a um por cento do que é sonegado.

                                      Invocando vetustas súmulas do Supremo Tribunal Federal, caso, por exemplo, da de número 70, editada em 1962, e com o objetivo de fazê-las aplicadas a uma realidade totalmente diversa daquela que existia ao tempo em que essas súmulas surgiram, argumentando quase sempre com o princípio da livre iniciativa de que trata o artigo 170 da Constituição do Estado de São Paulo, algumas empresas de combustíveis vêm obtendo medidas liminares e mesmo sentenças que lhes reconhecem o direito de não se sujeitarem ao poder de fiscalização do Fisco, com o que alcançam o único objetivo para o qual litigam judicialmente: o de poderem legitimar a prática de uma concorrência desleal, em uma situação em que o fator tempo é primordial para que atinjam esse objetivo.

                                      Com efeito, se considerarmos o tempo médio de um processo judicial no Brasil, que, conforme o Conselho Nacional de Justiça, era, em 2016, de quatro anos e quatro meses; se levarmos em conta que as lides que dizem respeito ao Direito Tributário não podem, em geral,  ser classificadas como demandas sem complexidade jurídica e que por isso o tempo de trâmite  tende a ser maior nesses casos, sobretudo em virtude dos recursos que frequentemente chegam aos tribunais superiores;  e, ainda, se nos ativermos à imensa quantidade de regras que abrangem o regime jurídico-legal do ICMS, a criar uma dificuldade maior ao juiz para realizar uma correta interpretação e aplicação dessas regras, teremos, nesse contexto,  compreendido a razão  de o nosso sistema judicial constituir um  ambiente o mais propício possível para que algumas empresas de combustíveis apostem  na litigância em matéria tributária como um eficaz estratagema para, sonegando o ICMS, conseguir impor uma forma de legitimar  a concorrência desleal que praticam.

                                      Basta que se tome o exemplo de alguma empresa que tenha litigado contra o Fisco nessas condições, ou seja, apostando na longa duração do processo judicial para legitimar a prática da concorrência desleal (e no caso do Estado de São Paulo, já há casos dessa natureza em número bastante considerável), e se poderá constatar que,  durante o tempo do processo judicial, ocorreu uma significativa  evolução do volume de vendas, a ponto de se poder afirmar, com segurança,  que há uma relação direta entre o aumento da venda de combustível por essas empresas e o tempo de trâmite do processo judicial, utilizado assim como um estratagema para a prática da concorrência desleal.

                                      São processos nos quais a medida liminar cautelar apresenta particular importância, porque é por meio delas que se obstaculiza ou se limita o poder do Fisco em relação a empresas que, beneficiadas por essas medidas liminares, continuam a sonegar o ICMS e a operar no mercado, praticando preços muito menores que os da concorrência.

                                      Como as medidas cautelares não exigem um grau de convencimento que sobre-exceda ao de uma mera plausibilidade jurídica, e porque diante da alegação de uma situação de risco, é comum que o juiz sinta-se mais protegido ao conceder do que ao negar uma medida liminar,  daí decorre que essas empresas utilizem-se do processo com um objetivo ilegal, pois que dele se valem para que possam continuar a sonegar o ICMS, agora com o beneplácito de uma decisão judicial, que, embora de natureza provisória, perdura por longo tempo.

                                      É importante, pois,  que o juiz não olvide, como adverte RAMIRO PODETTI em obra clássica,  que as medidas cautelares, por limitarem, em algum grau, as faculdades de disposição e de gozo dos bens sobre os quais incidem, causam prejuízo ao litigante e também a terceiros, e que por isso as leis processuais em geral devem estabelecer e estabelecem um regime de responsabilidade,[1] como ocorria em nosso Código de 1973 (artigo 811), e como está previsto no Código de 2015 em seu artigo 302.

                                      Mas é necessário observar que os danos gerados por medidas cautelares são causados pelo processo (e não no processo), como distingue o famoso processualista italiano, ENRICO REDENTI, o que tem uma importância fundamental no tema que estamos aqui a analisar. É que para a reparação desse tipo de dano, é necessário aguardar pela conclusão do processo, o que significa dizer que o litigante afetado por uma medida cautelar terá que aguardar acentuado tempo até poder pleitear e receber uma indenização pelo que terá suportado.

                                      Assim, no caso do Fisco, quando se depara com a uma medida liminar que lhe obsta o poder de fiscalização, terá que esperar por um tempo bastante acentuado, até que  todas as instâncias recursais exauram-se, para somente então buscar, além do pagamento do tributo sonegado, os danos que terá suportado em razão da medida liminar.  Se considerarmos, pois, que as empresas que se utilizam do processo judicial como estratagema para a prática da concorrência legal por meio da sonegação ao ICMS também se utilizam de um outro mecanismo ilegal, o de criarem  uma nova empresa como forma de esconderem seu patrimônio, constataremos que, na maioria dos casos, o Fisco não recuperará nem o tributo sonegado, nem os danos suportados com o processo.

                                      Poder-se-ia argumentar que o Fisco possui o direito de requerer ao juiz imponha uma contracautela àquele que se beneficia da medida cautelar, e o nosso Código de Processo Civil, de fato,  prevê tal possibilidade, a qual, contudo, na prática não ocorre,  porque em raríssimos casos essa contracautela é imposta,  dado que na maioria das situações a parte que obtém a medida liminar alega não dispor de patrimônio ou de renda que permitam a garantia do juízo, e então a situação de risco, que é alegada, prevalece, para que a medida cautelar seja concedida sem qualquer contracautela.

  1. AS SÚMULAS.

                                      Em 1962, quando surgiu a súmula de número 70, estava em vigor a Lei dos Executivos Fiscais, o Decreto-Lei federal de número 960, de 17 de dezembro de 1938, e como não havia ainda um Código Tributário nacional, vários municípios haviam criado seu código, e não era incomum que nessas legislações se previsse a apreensão de mercadorias ou de bens como forma de coerção ao pagamento de tributos, concedendo-se ao Fisco o poder de interditar o estabelecimento comercial.

                                     A doutrina brasileira, à altura, já havia consolidado o entendimento de que era desarrazoada a imposição da interdição de estabelecimento comercial como meio de coerção ao pagamento de tributo, e assim o  Supremo Tribunal Federal, em 1962,  editando a súmula de número 70, fixou o que a partir de então passou a ser considerado como uma regra no campo do nosso Direito Tributário, como um alerta sobretudo ao legislador local: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”.

                                      Em 1966, surgindo o nosso Código Tributário Nacional, projeto do grande tributarista, RUBENS GOMES DE SOUZA, aquele tipo de situação, que existiu ao tempo em que a legislação municipal vigorava, não teria mais espaço diante do grau de cientificidade das normas gerais tributárias, como se vê daquelas regras que constituem as “disposições gerais” (artigos 2º. a 5º.), e as que compõem o livro segundo do Código, a partir de seu artigo 96.

                                      Destarte, há que se considerar a específica realidade material em que a súmula 70 surgiu, e para que finalidade ela foi editada. E o mesmo se deve dizer tanto  à súmula 323, que, editada em 1963, vedava ao Fisco apreendesse mercadorias, quanto  à súmula 547 (“Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”), editada  em face  do Decreto-lei de número 5, de 1937, que vedava aos contribuintes o exercício de atividades mercantis, quando estivessem em débito com a Fazenda Nacional.

                                      É de se ter presente, pois, que essas três súmulas (70, 323 e 547) em nada dizem respeito ao que hoje sucede, quando o Fisco cria um regime jurídico especial para obrigar uma empresa a comprovar que esteja a apurar e a recolher corretamente o ICMS. Como facilmente se percebe, não se trata, em absoluto, de obstar que a empresa continue a operar, ou seja, não se lhe está a interditar o estabelecimento comercial, a lhe apreender mercadorias, senão que lhe está a exigir que comprove o cumprimento das normais legais tributárias, principais e acessórias. Mas, inacreditavelmente, há julgados recentes, inclusive do próprio STF, que fazem aplicar as referidas súmulas, como se a realidade material para a qual elas foram editadas continuasse a existir hoje.

                                      A jurisprudência tem demonstrado que é suficiente que a empresa invoque qualquer uma dessas três súmulas, ou mesmo as três simultaneamente, e pretexte com a proteção ao direito fundamental à livre iniciativa, para que consiga obter uma decisão judicial, quase sempre provisória (ou seja, uma medida cautelar), para não se submeter ao poder de fiscalização do Fisco, beneficiando-se do fator tempo, porque nas condições atuais de nosso sistema processual civil essas medidas liminares “provisórias” subsistem por acentuado tempo, como ocorreu com uma empresa instalada no Estado de São Paulo, cuja história bem pode ilustrar o que estamos aqui a afirmar: que o processo está a ser utilizado como um expediente para legitimar a prática da concorrência desleal por meio da sonegação ao ICMS.

                                      Em 2003, essa empresa obtivera autorização do Poder Público para atuar no mercado de combustíveis,  e em 2006 tivera cassada a  inscrição estadual de contribuinte, porque àquela altura o Fisco constatara, sem qualquer dificuldade, que a empresa sonegava o ICMS.   Em 2007, essa mesma empresa obtém  uma medida liminar, com o que consegue fazer com que a sua inscrição de contribuinte  fosse restabelecida, o que significa dizer que continuou a operar no mercado da mesma forma como vinha fazendo, ou seja, mediante a prática da sonegação ao ICMS. E se não pagava o ICMS, por óbvio que o preço do combustível que comercializava era menor. Dentro de um estratagema que é mais complexo e que não se limita à utilização do processo judicial, essa empresa, quando percebe que a medida liminar  está por ser revogada, cria artificialmente uma segunda empresa, contando com o tempo que seria consumido pelo Fisco até identificar essa fraude, quando, então, o Fisco impõe, a essa segunda empresa (a primeira empresa já na mais operava), o regime especial de tributação, para poder fiscalizar mais atentamente a apuração e o recolhimento do ICMS. Mas a segunda empresa, por meio de uma medida liminar, desobriga-se de se sujeitar ao poder de fiscalização do Fisco, em uma situação que, embora provisória, perdura até 2016, quando, então, todas as decisões judiciais são revogadas. A essa altura, as duas empresas já não mais existem, e o Fisco terá reduzida  chance, ou mesmo nenhuma,  de recuperar o tributo sonegado, ou mesmo de ver ressarcidos os danos que suportou em decorrência das medidas liminares.

                                      Este caso ilustra bem como o processo judicial em matéria tributária vem sendo utilizado por empresas que nele encontram um expediente para legitimar a prática da concorrência desleal.

                                      Cabe ao jurista não permitir que os conceitos jurídicos, como os do Direito Tributário, construídos e fixados ao longo do tempo, não vacilem além de uma certa medida que seja imposta pela realidade material. Sabe ou dever saber o juiz  que nenhuma norma legal é rica o suficiente para abarcar todas as possibilidades que a realidade material faz surgir, e que por isso deve lançar mãos dos recursos da hermenêutica para com eles complementar o que a norma, em seu texto primitivo, não abrange. Deve o juiz deve manter constante diálogo com a realidade, buscando compreender o que terá se modificado ao longo do tempo, que transformações foram determinadas, por exemplo, pela Economia, e nomeadamente como o processo judicial pode estar sendo utilizado para fins ilícitos. Como dizia MACHADO DE ASSIS: “A lei escrita pode ser obra de uma ilusão, de um capricho, de um momento de pressa, ou qualquer outra causa menos ponderável; o uso, por isso mesmo que tem o consenso diuturno de todos, exprime a alma universal dos homens e das coisas”.[2] Que as súmulas, que a legislação tributária, que as normas processuais sejam adequadamente interpretadas e aplicadas pelo juiz, pois como enfatiza o artigo 5º. da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei federal de número 4.657/1942, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei 12.736/2010):

                    “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

                                      Que a reforma tributária que, segundo se noticia, ocorrerá em breve, esteja atenta à forma como o processo judicial vem sendo indevidamente utilizado como expediente para legitimar a prática da sonegação fiscal do ICMS, e que o Legislador adote regras que coíbam essa utilização ilegal do processo, estabelecendo, como regra geral,  que o juiz faça impor a contracautela quando for conceder uma medida cautelar ou antecipatória, e que as medidas liminares em matéria tributária tenham sempre um prazo fatal de eficácia, sem a possibilidade de qualquer prorrogação.

[1] Derecho Procesal Civil, Comercial y Laboral, tomo IV, Tratado de las Medidas Cautelares, p. 151, Ediar editora, 1969.

[2] A Semana, 25/10/1896.