A INCONSTITUCIONALIDADE DA CONTRIBUIÇÃO PARA CUSTEIO DO SERVIÇO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA

SUMÁRIO: 1. O ARTIGO 149-A DA CF/1988. 2. A BASE DE CÁLCULO COMO ÚNICO ELEMENTO AZADO À COMPREENSÃO DA ESSÊNCIA DO TRIBUTO E DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS. 3. A IDENTIDADE DE BASE DE CÁLCULO DA CONTRIBUIÇÃO PARA CUSTEIO DO SERVIÇO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA E DO ICMS SOBRE ENERGIA ELÉTRICA. 4. VÍCIO FORMAL NO PROCESSO LEGISLATIVO DA EMENDA CONSTITUCIONAL DE NÚMERO 39. 5. CONCLUSÃO.

1. O ARTIGO 149-A DA CF/1988.

Tinha razão Kant quando afirmava que “Não há acréscimo, mas desfiguração das ciências, quando se confundem os seus limites.”1 Comprova-o a engenhosidade do Legislador Brasileiro em matéria fiscal, que parece não encontrar nenhum obstáculo em sua roaz fúria arrecadadora, cada vez mais dotada de uma técnica tão refinada que um exame “a carga cerrada” não consegue captar.2 Como diziam os romanos: “Fictio fingit vera esse quae vera non sunt”.

É o que se comprova com a novel contribuição para custeio do serviço de iluminação pública, cuja hipótese de incidência está agora prevista no artigo 149-A da Constituição da República de 1988, como resultado da Emenda de número 39, de 19 de dezembro de 2002. Confira-se:

Art. 149-A. Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.

Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica”.

Com efeito, depois de ver insistentemente malograda sua intenção de instituir uma taxa por meio da qual fosse possível tributar o serviço de iluminação pública – tentativa que encontrou insuperável óbice no tipo de serviço público subjacente, que é de caráter indivisível3 –, mas não se dando por vencido, cuidou o Legislador brasileiro de engendrar um novo mecanismo para custear esse serviço, tributando-o, então, sob a forma e a denominação de uma contribuição especial, aproveitando-se para tanto de uma [aparente] liberdade que a Carta de 1988 concede à estruturação do fato gerador (rectius: pressuposto do fato imponível) das contribuições especiais (parafiscais ou não), que, de fato, não se circunscreve aos mesmos parâmetros estritos concernentes à hipótese de incidência dos impostos, taxas e contribuições de melhoria.4

O que permite lobrigar que superada a fase das “pseudotaxas”, criadas como uma espécie de panacéia para os embaraços financeiros experimentados pela grande maioria dos Municípios brasileiros,5 e quando se estava na aguarda de que fosse obliterada aquela traça corrente de se arrecadar do contribuinte a qualquer título, inaugura-se, com a Emenda de número 39, um novo estádio, em que sobreleva a engenhosidade do Legislador, agora aplicada no campo das contribuições especiais, e com o emprego de uma conformação mais apurada, o que evidentemente dificulta a compreensão do fenômeno.

Ao tempo em que a criatividade do Legislador era exercitada apenas nas taxas, seja porque, bem delineado o conceito normativo de taxa no nosso sistema tributário, afigurava-se palmar que não havia, na grande maioria dos casos, uma atividade estatal dirigida ao contribuinte,6 seja porque se revelava quase sempre bem nítida a invasão de competência tributária, o certo é que nenhuma dificuldade encontravam a doutrina e a jurisprudência para repelir a tentativa de transformação das taxas em instrumentos aplicados apenas para lenificar o déficit orçamentário.7

Mas agora, sob color da liberdade que o Texto Constitucional de 1988 parece conferir à moldagem do pressuposto do fato imponível das contribuições especiais, como propugna boa parte da doutrina, deu-se conta o Legislador, nesse mesmo contexto, que lhe é possível voltar à carga com a tributação de serviços que noutrora aquelas limitações empeceu, bastando aproveitar-se de uma discussão enviesada que se trava na doutrina, ainda não superada no meio acadêmico, quanto à natureza jurídica dessas contribuições, radicada no considerá-las, dizem alguns autores, como uma espécie tributária sui generis, ou como um instituto de acentuada parecença com os impostos, taxas e contribuições de melhoria, a ponto que, para essa corrente, poderiam as contribuições especiais adotar hipótese de incidência que àqueles seria azada, não fosse uma determinada opção política.

Uma primeira experiência desse gênero e com aquele objetivo enceta-se com a previsão no artigo 149-A da Carta de 1988, provocada pela Emenda de número 39, da hipótese de incidência da contribuição sobre o serviço de iluminação pública, a ensejar que os Municípios tenham reaberta a oportunidade de, por essa espécie tributária, custearem o serviço que antes se lhes vedou a patente indivisibilidade desse tipo de serviço.

Dessa possibilidade aberta pelo Texto Constitucional, utilizou-se o Município de São Paulo, que em tempo recorde (dez dias depois da entrada em vigor da Emenda de número 39),8 aprovou e colocou em vigor a Lei de número 13.479, de 30 de dezembro de 2002, assim instituindo, sob pomposa denominação, a “Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública – COSIP”, definindo seu contribuinte como aquele que possui “ligação de energia elétrica regular ao sistema de fornecimento de energia elétrica” (artigo 3o), e erigindo uma base de cálculo com um hábil estratagema a tentar obnubilar que se tratava (como efetivamente se trata) da mesma base de cálculo que incide sobre o consumo de energia elétrica, e que dá o suporte fático-jurídico para a incidência do ICMS. No que se revela de interesse para este estudo, dispõe a Lei Municipal em questão:

Artigo 1o. – Fica instituída no Município de São Paulo, para fins do custeio do serviço de iluminação pública, a Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação pública – COSIP.

Parágrafo único – O serviço previsto no “caput” deste artigo compreende a iluminação de vias, logradouros e demais bens públicos, e a instalação, manutenção, melhoramento e expansão da rede de iluminação pública, além de outras atividades a estas correlatas.

Art. 3o. – Contribuinte é todo aquele que possua ligação de energia elétrica regular ao sistema de fornecimento de energia.

Art. 4o. – O valor da contribuição será incluído no montante total da fatura mensal de energia elétrica emitida pela concessionária desse serviço e obedecerá à classificação abaixo:

I – R$3,50 (três reais e cinqüenta centavos) para os consumidores residenciais;
II – R$ 11,00 (onze reais) para os consumidores não-residenciais.
Parágrafo único – O valor da Contribuição será reajustado anualmente pelo mesmo índice utilizado para o reajuste da tarifa de energia elétrica.

Art. 6º – A concessionária de energia elétrica é responsável pela cobrança e recolhimento da Contribuição, devendo transferir o montante arrecadado para a conta do Tesouro Municipal especialmente designada para tal fim, sob pena de responder civil e criminalmente pelo não-cumprimento do que aqui disposto”.

2. A BASE DE CÁLCULO COMO ÚNICO ELEMENTO AZADO À COMPREENSÃO DA ESSÊNCIA DO TRIBUTO E DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS.

Com a autoridade de quem elaborou o anteprojeto que acabou convertido no nosso Código Tributário Nacional, Rubens Gomes de Sousa, ao traçar a distinção entre imposto e taxa, destacava a importância da base de cálculo como elemento para a definição dos tributos, chancelando tese que, no Brasil, foi desenvolvida por Alfredo Augusto Becker, que com habitual brilho sustentava:

“Demonstrar-se-á que o critério objetivo e jurídico é o da base de cálculo (base imponível). Este, sempre e necessariamente, é o único elemento que confere o gênero jurídico do tributo. Noutras palavras, ao se investigar o gênero jurídico do tributo, não interessa saber quais os elementos que compõem o pressuposto material ou quais as suas decorrências necessárias, nem importa encontrar qual o mais importante daqueles elementos ou decorrências. Basta verificar a base de cálculo: a natureza desta conferirá, sempre e necessariamente, o gênero jurídico do tributo”.9

Importante tese que é secundada por Geraldo Ataliba, e apontoada na qual ele indica ao intérprete qual o critério que deve orientá-lo na difícil tarefa de perscrutar a natureza jurídica de uma espécie tributária: “Para que possa o intérprete, diante de um texto legal instituidor de tributo, saber de que espécie se trata, deve, portanto, fixar-se, essencialmente, na base imponível, dado este que – por dimensionar a essência do fato central posto na materialidade da hipótese de incidência – revela-a irretorquivelmente (…)”.10

De fato, é pela base de cálculo que se pode descobrir a verdadeira natureza do tributo, constituindo-se, pois, no único elemento cuja ausência, afirma ainda Becker, “destrói toda a discriminação constitucional de competência tributária e sobre estas ruínas o jurista assiste ao espetáculo do corvejamento tributário que, no mundo jurídico, assume proporções e aspectos apocalípticos.11

Observara A. D. Giannini, nesse sentido, que os critérios de valoração não somente são necessariamente diversos para as várias espécies de tributos, mas podem ser também diversos para a mesma espécie, por isso que a indicação do critério de valoração integra a definição normativa e a estrutura do tributo.12 Encontra-se aí a razão de o nosso Código Tributário Nacional ter estabelecido, em seu artigo 97, inciso IV, que a base de cálculo é elemento integrante do conceito legal de fato gerador.

Assim, se inadequada a base de cálculo, descaracterizado está, por conseqüência, o tributo, a confirmar que é pela base de cálculo que se chega ao conceito de tributo e à identificação de que espécie tributária, em realidade, está a tratar-se.

E dado que a lei proíbe a identidade de fato gerador, veda também, e para o mesmo fim, a identidade de base de cálculo, como pontifica Rubens Gomes de Sousa:

“(…) a Constituição, ao proibir, para reforço da distinção entre taxa e imposto, a identidade de bases de cálculo, na realidade proibiu a identidade de fatos geradores. Foi o que expressou o CTN, no art. 77, parágrafo único, quando, ao reproduzir da Emenda Constitucional n. 18, de 1965, acrescentou ‘ou fato gerador’. Alguns quiseram ver nesse acréscimo uma inconstitucionalidade, por ter ido o CTN além da letra constitucional. Na verdade, porém, o acréscimo não é inconstitucional mas, antes, desnecessário, uma vez que, sendo a base de cálculo elemento integrante do fato gerador, dele é indissociável; de modo que, em última análise, o CTN diz a mesma coisa que a Constituição, apenas com palavras excedentes e, portanto, inúteis”.13

Mas diversamente do que ocorre com o sujeito passivo que integra a estrutura do fato gerador dos tributos, para a escolha do qual conta o Legislador com pronunciada liberdade,14 no caso da base de cálculo, essa escolha estará sempre adstrita ao cumprimento de uma exigência: a de que tenha correlação com o elemento material do pressuposto do fato imponível, o que com maior nitidez se percebe no caso das taxas, cuja base de cálculo deve ter relação com a atuação estatal que constitui a causa material da sua hipótese de incidência.15

Destarte, a escolha da base de cálculo de qualquer tributo não poderá ser aleatória; outrossim, há de ser única para cada espécie tributária. Justifica-se por este último aspecto o teor da regra que o Texto Constitucional de 1988 (artigo 145, parágrafo 2o.) e o Código Tributário Nacional (artigo 77, parágrafo único), na esteira da tradição de nosso Direito, prevêem quanto à identidade de base de cálculo entre taxa e imposto, para assim vedá-la.

Naturalmente que cada direito positivo, no exercício de seu espírito pensante e diante das circunstâncias com as quais se depara em um determinado momento histórico, pode engendrar espécies tributárias, até mesmo ao limite de criar simulacros das figuras que a Ciência do Direito Tributário moldou, o que não conduz à idéia de que essas figuras deixem de existir no campo científico, ou que ali nunca tenham tido existência. Não se pode dar razão, portanto, a Rubens Gomes de Sousa, quando afirma que não há um critério científico que permita a distinção entre imposto e taxa, questão que, segundo o insigne Mestre, é de direito positivo e que somente admite solução no âmbito de cada ordenamento jurídico.16 Sobre não se poder olvidar dos riscos que são decursivos de se entregar ao Legislador uma total liberdade para a definição da essência dos institutos jurídicos, há na construção do pensamento do autor do nosso Código Tributário um evidente paralogismo.

Quanto aos riscos, considere-se a preciosa advertência de Hector Villegas: “(…) remeter-se pura e simplesmente aos direitos positivos para deles deduzir a essência das instituições, significa outorgar aos preceitos normativos uma hierarquia científica de que carecem e implica conceder férias ao jurista, enquanto espera os regimes legais com que o Estado instrumenta suas atividades para, então, saber ‘de que se trata’. Não cremos que isso seja compatível com a construção científica das figuras e instituições que compõem um ramo do Direito”.17

Além disso, do fato de o Legislador, no âmbito de seu direito positivo, poder manejar as aquisições científicas a seu modo, ainda que para transmudá-las, não advém que a conformação científica de cada instituto possa ser alterada em sua essência. É que o Legislador, por mais que se esforce, não consegue infundir uma solução “científica” ao Direito, senão que se lhe permite apenas uma possível e restrita utilização da figura, dentro de certos contornos e válida em um determinado âmbito espacial e temporal. Assim ocorre com os diversos institutos do Direito Tributário e de qualquer outro ramo do Direito –, que projetados no direito positivo e segundo uma determinada técnica de elaboração, por ror vezes suportam uma alteração de conteúdo, o que não significa, nem pode significar que o núcleo essencial que molda cada instituição jurídica possa ser modificado no plano científico.

Depreende-se, pois, que conquanto tivesse partido de uma premissa válida – a de que o direito positivo pode alterar o conteúdo e a essência de um determinado instituto jurídico –, Rubens Gomes de Sousa equivocara-se, todavia, na dedução que dela extrai: a de que se o direito positivo pode alterar um conceito científico, esse conceito não existe, nem pode existir. Do simples fato de o direito positivo poder alterar o conteúdo e essência de um instituto jurídico, não se infirma que o conceito científico exista, senão que exatamente porque o direito positivo pode transmudá-lo, é que se prova sua existência.

De resto, curioso observar que o Código Tributário Nacional expressamente prevê (artigo 4o.) que a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo pressuposto do fato imponível da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la tanto a denominação que se lhe dê, ou as demais características formais adotadas pela lei, quanto a destinação legal do produto da sua arrecadação – a indicar, em certa medida, que o nosso Legislador tinha plena consciência de que manipulava dados que a Ciência do Direito Tributário construíra, e que em havendo desarmonia entre os conceitos científicos e normativos, optava por aqueles consagrados pela Ciência.

3. A IDENTIDADE DE BASE DE CÁLCULO DA CONTRIBUIÇÃO PARA CUSTEIO DO SERVIÇO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA E DO ICMS SOBRE ENERGIA ELÉTRICA.

Da análise desses dados, exsurge a inconstitucionalidade da novel contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, de cuja hipótese de incidência (artigo 149-A) vários Municípios brasileiros estão a se valer, como São Paulo, que por meio de sua Lei de número 13.479/2002, passou a cobrá-la.

Com acentuada freqüência, afirma-se na doutrina que a Constituição da República de 1988 não ofereceu, no caso das contribuições especiais, os parâmetros estritos concernentes à hipótese de incidência, como o fez nos demais tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria), a indicar que se teria conferido ao Legislador nesse caso uma liberdade maior para a sua construção. Subjaz à essa idéia que embora se reconheça a natureza jurídica de tributo às contribuições especiais, seu modelo pode ser livremente construído pelo Legislador, como sustenta, por exemplo, Geraldo Ataliba em sua conhecida obra “Hipótese de Incidência Tributária”:

“(…) quanto às contribuições – que não a de melhoria – diríamos que a intensidade com que se acolheu seu princípio informador foi mais tênue, exatamente porque a Constituição – não oferecendo os parâmetros estritos concernentes à hipótese de incidência, como o fez nos casos dos demais tributos e no caso da própria contribuição de melhoria – deu ao legislador uma liberdade realmente significativa (…)”.

“(…)

“Por isso, um tributo, designado contribuição, no Brasil (salvo a de melhoria), pode ser efetivamente uma contribuição – entendida como espécie de tributo vinculado, dotada de hipótese de incidência típica – ou pode ser imposto; quer dizer: o que constitucionalmente é designado por contribuição, no Brasil, pode ter hipótese de incidência de verdadeira contribuição ou de imposto. Neste último caso submete-se ao regime jurídico-constitucional do imposto (…)”.18

Mas, em verdade, não é tão significativa assim essa liberdade conferida ao Legislador, ou pelo menos não se revela com a extensão que parte da doutrina propugna conceder-lhe.

Com efeito, mesmo entre aqueles autores que sustentam o caráter sui generis das contribuições especiais, não se olvida que elas operam sobre um díptico normativo que se revela no pressuposto do fato imponível e na base de cálculo, em idênticos moldes, por conseguinte, àqueles existentes nos impostos, taxas e contribuições de melhoria. E, de fato, não prescindem as contribuições especiais (parafiscais ou não) de uma hipótese de incidência e de uma base de cálculo que lhe dê valoração econômica, no que se afiguram símiles às demais espécies tributárias. (Com o que os autores que defendem a idéia de que as contribuições especiais não são um veículo tributário diferenciado senão quanto ao aspecto finalístico que as caracteriza, não objetam.)

Então se vê que aquela liberdade que o Texto Constitucional de 1988 parece conferir à estruturação das contribuições especiais, não passa de uma aparente liberdade no campo tributário, porque abarca tão-só a possibilidade de o Legislador utilizar-se, na estruturação da hipótese de incidência, de uma simbiose de figuras que, isoladamente, permitiriam a criação de imposto,19 taxa ou contribuição de melhoria (por exemplo, a tributação por contribuição especial de um serviço público indivisível). Mas, o que à primeira vista poderia indicar uma extensa esfera de atuação por parte do Legislador, na prática, assim não se traduz.

É que muito embora o artigo 4o. do Código Tributário Nacional não tenha, no caso das contribuições especiais, uma importância tão grande, na medida em que não restrito o Legislador à moldura fechada de cada figura (imposto, taxa ou contribuição de melhoria), a base de cálculo que compõe seu fato gerador, e que constitui o núcleo essencial de seu arquétipo, não permite, a exemplo do que se dá com as demais espécies tributárias, que sua escolha seja aleatória, e que por isso dispense a exigência de que tenha correlação com o elemento material da hipótese de incidência. Essa correlação, mesmo nas contribuições especiais, e a despeito da liberdade que se concede ao Legislador para a configuração do pressuposto do fato imponível, é imperiosa, sob pena de descaracterização da figura. Adota-se, no particular, o magistério de Hector Villegas, que embora circunscrito às taxas e aos impostos, estende-se pelas razões expostas às contribuições especiais: “Resulta, portanto, indiscutível que a base imponível das taxas deve estar relacionada com sua hipótese de incidência (a atividade vinculante), assim como nos impostos tal base de medição se conecta com situação relativa ao sujeito passivo, a seus bens ou atividades que são consideradas hipóteses de incidência pela lei”.20

E exatamente dessa exigência, advém aquela que no plano do Direito Positivo Brasileiro mais acentuadamente limita a liberdade do Legislador na criação das contribuições especiais, e que diz com a vedação da identidade de base de cálculo. Com efeito, a partir de uma distribuição de competências entres os entes públicos, o Sistema Tributário Nacional, como definido na Constituição da República de 1988, prevê os tributos que são da competência da União Federal, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, criando ainda uma competência residual que é conferida à União Federal. No exercício dessa competência, pois, os entes públicos podem criar tributos, dês que não tenham base de cálculo idêntica à de outro já criado ou cuja competência para criá-lo seja de outro ente tributante. Assim é que se há compreender o conteúdo e o alcance do disposto no artigo 145, parágrafo 2o., da Constituição da República de 1988, em reforço do qual a Constituição ainda estabelece, em seu artigo 154, inciso I, que a União poderá instituir, no exercício de sua competência residual, impostos que não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios de outros entes tributantes. Como afirma Geraldo Ataliba, ao se adotar determinada base de cálculo, coloca-se certo fato, ou circunstância de fato, na materialidade da hipótese de incidência; e se há vedação a que se crie fato gerador idêntico, defeso também é que se adote a mesma base de cálculo.21

Assim, conquanto não haja óbice a que por meio das contribuições especiais se tribute, por exemplo, um serviço público indivisível (que não poderia ser alcançado por taxa), a base de cálculo, sobre ter correlação à sua hipótese de incidência, não pode ter um elemento comum à base de cálculo de outro tributo, em especial se há invasão de competência tributária.

Chega-se desse modo à pedra de toque que permite compreender que a liberdade que o Legislador confere às contribuições especiais reduz-se à configuração do fato gerador, que pode, a como se fez referência, contemplar uma reunião de figuras que separadamente permitiriam a criação de um imposto, taxa ou contribuição de melhoria. De forma que para a estruturação do fato gerador das contribuições especiais, não há relevância em se perscrutar se se trata de um tributo vinculado a uma atuação estatal, ou não, ao contrário do que se dá com as demais espécies tributárias (impostos, taxas e contribuições de melhoria), para as quais o tema tem profunda relevância, porque é a partir da caracterização da presença de uma atividade estatal que se deslinda se o fato gerador permite a tributação por meio de imposto ou taxa.

Então, à luz do critério da análise da base de cálculo, consideremos agora a novel Contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública a partir da sua hipótese de incidência, tal como prevista no artigo 149-A da Constituição da República. De primeiro um dado histórico.

Quando se tentou tributar o serviço de iluminação pública por meio de taxa, à falta de um critério mais objetivo e perfeito, como reconhecera Geraldo Ataliba,22 aceitou-se a princípio que se observasse a área do imóvel. Mas de par de incontinenti constatar-se que não se tratava de um serviço público divisível, também se percebia que a expressão econômica de seu fato gerador não guardava nenhuma relação com o elemento material que lhe servia de suporte. Além disso, havia evidente identidade com o IPTU, cuja base de cálculo envolvia o valor venal do imóvel, conceito que levava em conta nomeadamente o da área do imóvel, cuja quantificação conduzia àquele valor. Em face dessas circunstâncias, abandonou-se a idéia de tributar o serviço de iluminação pública por meio de taxa,23 até que a engenhosidade do Legislador, posta sempre em prática,24 criou uma nova modalidade que seria adequada à essa tributação: a da contribuição especial, cujo fato gerador, de construção mais livre, toleraria a exação de um serviço de natureza indivisível. Faltava, contudo, a escolha de uma base de cálculo que deveria ter correlação com o elemento material do pressuposto do fato imponível.

Atento ao escolho, optou o Legislador da Emenda Constitucional de número 39, por não definir a base de cálculo, senão que se limitou a sugerir uma: a do consumo de energia elétrica (“É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica”). Mas, ao fazê-lo, descortinou qual o único elemento que poderia servir de base de cálculo àquela contribuição especial, e que a compasso atendesse à exigência da correlação com o elemento material do pressuposto do fato imponível. A base de cálculo da contribuição especial para o custeio do serviço de iluminação pública radica, portanto, no consumo de energia elétrica.

Ocorre, entrementes, que no Brasil, a partir da Constituição da República de 1988, a energia elétrica passou a ser uma mercadoria e seu consumo sujeito à incidência do ICMS,25 cuja hipótese de incidência, segundo matriz constitucional e Lei Federal de número 87/1996, envolve um conjunto de fatos, como a produção, importação, circulação, distribuição e consumo de energia elétrica, fixada sua base de cálculo no consumo.

Constata-se, portanto, e sem dificuldade, que há identidade de base de cálculo da contribuição para custeio do serviço de iluminação pública com a do ICMS incidente sobre consumo de energia elétrica. Nem se argumente que no caso do ICMS a base de cálculo é o consumo, enquanto na contribuição para custeio da iluminação pública é um valor fixo, como no caso da Lei Municipal de São Paulo (artigo 4o.). É que do fato de a Lei valer-se de uma base de cálculo fixa (técnica azada sobretudo às taxas),26 nenhum influxo causa no elemento material do fato gerador, que permanece o mesmo. Oportuna, no particular, a observação de Alfredo Becker, no sentido de que o fato que aciona a variação da alíquota não é a base de cálculo; está é unicamente o fato que o método de conversão transforma em uma determinada cifra.27

Como também não é valido ripostar com a tese, outrora defendida por Geraldo Ataliba,28 de que não se há de emprestar ao artigo 77, parágrafo único, do Código Tributário Nacional uma extensão tão larga, porque do contrário nenhuma taxa, ou ainda sua maioria, restaria censurada. Dizia ele na década de 70: “Na verdade, se as exigências científicas a respeito são efetivamente muito estritas, não chegam a tal rigor, sob pena de se reduzirem as taxas a uma inexpressividade quase absoluta”.29 “Concessa venia” da lição do Mestre, é necessário compreender que a identidade de elemento da base de cálculo não pode ser aferida apenas com base no aspecto literal, sob pena de se permitir ao Legislador o emprego de palavras diferentes com o fim único de, descaracterizando a espécie tributária (como ocorreu em larga escala com as taxas), poder implementar a cobrança de um tributo cuja base de cálculo é, em essência, idêntica à de outro.

Antecipemos ainda outro argumento que poderia ser levantado contra a tese aqui desenvolvida: a de que o sujeito passivo do ICMS no caso da energia elétrica é, por força de Lei, a concessionária do serviço, o que afastaria a identidade de base de cálculo da contribuição para custeio do serviço de iluminação pública, cujo sujeito passivo é aquele que diretamente consome a energia elétrica. Abstraindo, porque menos relevante, da questão acerca da importância de se levar em conta a repercussão econômica do tributo, como vem entendendo hodiernamente a jurisprudência brasileira para conceder ao real contribuinte (contribuinte de fato) o direito de ação para discutir o ICMS,30 é de se considerar prevalecentemente que a base de cálculo deve ter correlação com o elemento objetivo ou material do pressuposto do fato imponível, e não com o elemento subjetivo deste. Lembre-se, demais, que para a compreensão da natureza jurídica do tributo é irrelevante a posição do sujeito passivo.31

Em resumo, verifica-se que a base de cálculo da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública é o consumo de energia elétrica. Tanto assim que a Lei Municipal de São Paulo cuidou vincular o reajuste do valor da contribuição à mesma escala do reajuste da tarifa de energia elétrica (artigo 4o., parágrafo único). Daí porque caracterizada a identidade de base de cálculo com o ICMS que incide sobre a energia elétrica.

4. VÍCIO FORMAL NO PROCESSO LEGISLATIVO DA EMENDA CONSTITUCIONAL DE NÚMERO 39.

Também é oportuno adscrever que se constata vício de ordem formal no procedimento legislativo que conduziu à aprovação da Emenda Constitucional de número 39. Com efeito, exige o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução de número 17/1989), em seu artigo 202, parágrafo 6o., que a proposta de emenda constitucional deverá ser submetida a dois turnos de discussão e votação, com obrigatório interstício de cinco sessões. Norma de procedimento que é de ordem pública, e por isso é obrigatória, e que violada configura vício de ordem formal no processo legislativo.

A proposta de Emenda Constitucional (PEC 559/2002), que deu origem à Emenda de número 39, foi aprovada em 18 de dezembro de 2002 pelo Plenário da Câmara dos Deputados, após a votação, em um mesmo dia, dos dois turnos, o que foi possível devido a um acordo de lideranças partidárias, em função do qual se dispensou a exigência do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que exige um interstício de cinco sessões entre o primeiro e o segundo turnos de discussão e votação.

Embora se trate de questão interna corporis do Poder Legislativo, cujo controle o Poder Judiciário não pode realizar, segundo posicionamento do Supremo Tribunal Federal,32 é vício que se deve levar em conta no controle material da constitucionalidade.

5. CONCLUSÃO.

De posse desses dados, é autorizado concluir que inconstitucional a contribuição especial para custeio do serviço de iluminação publica, instituída pela Emenda Constitucional de número 39 (artigo 149-A da Carta de 1988), em face da identidade de sua base de cálculo (consumo de energia elétrica) com a do ICMS incidente sobre energia elétrica.

1 Crítica da Razão Pura, prefácio da segunda edição, p. 16, Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, Lisboa.

2 A propósito, lembremo-nos de Alfredo Becker e da referência que ele faz ao fenômeno patológico-tributário experimentado no Brasil: “E a mais confusa e ridícula das mentalidades pseudo-jurídicas é a que predomina no Direito Tributário; neste campo ‘há burrices que, de tão humildes, chegam a ser pureza e têm algo de franciscano. Outras há, porém, tão vigorosas e entusiásticas, que conseguem imobilizar por completo o nosso espírito para a contemplação do espetáculo”. (in Teoria Geral do Direito Tributário, p. 6-7, 3ª edição, Lejus, São Paulo).

3 Vários Municípios tentaram instituir a taxa da iluminação pública. Mas o STF, em posição granítica, considerou-a sempre inconstitucional, alicerçado no fundamento de que se trata de um serviço público indivisível, prestado “uti universi” e não “uti singuli” (cf. RE. 226.550-1, rel. Min. Moreira Alves, j. 18.6.1999).

4 Cf. Geraldo Ataliba, Hipótese de Incidência Tributária, p. 172, 5ª edição, Malheiros editores, 1992.

5 Cf. Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, p. 336, 10ª edição, Forense.

6 Relaciona Aliomar Baleeiro várias taxas cuja validez acoimou-se exatamente em virtude desse vício (in Direito Tributário Brasileiro, p. 337-344).

7 Fenômeno, contudo, que não ocorre somente no Brasil, como observa Hector Villegas, exemplificando com os casos da sua Argentina e Uruguai (in “Verdades e Ficções em torno do Tributo denominado Taxa”, Revista de Direito Público no. 17, Cadernos de Direito Tributário, p. 322-339).

8 Justificado o açodamento em face da exigência quanto à anterioridade (CF, artigo 149-A, “caput”, e artigo 150, III).

9 Teoria Geral do Direito Tributário, p. 373.

10 Hipótese de Incidência Tributária, p. 174.

11 Teoria Geral do Direito Tributário, p. 371.

12 Instituzioni di Diritto Tributario, p. 160, Giuffrè Editore, 1965.

13 Ainda a Distinção entre Taxa e Imposto, Revista de Direito Público no. 21, Cadernos de Direito Tributário, p. 299-324.

14 Que vai até a possibilidade de escolher quem não tem relação direta com o fato gerador (Código Tributário Nacional, artigo 121), inclusive com relação às taxas (cf. Rubens Gomes de Sousa, Sujeito Passivo das Taxas , Revista de Direito Público no. 16, Cadernos de Direito Tributário, p. 346-353).

15 O que não significa que o produto da arrecadação tenha que ser destinado ao custeio do serviço; é que a destinação legal do produto da arrecadação não é elemento de caracterização da espécie tributária (cf. Bernardo Ribeiro de Moraes, Doutrina e Prática das Taxas, p. 77, RT, 1976).

16 Ainda a Distinção entre Taxa e Imposto, p. 300-301.

17 Hector B. Villegas, Verdades e Ficções em torno do Tributo Taxa, Revista de Direito Público no. 17, Cadernos de Direito Tributário, p. 322-339.

18 Hipótese de Incidência Tributária, p. 172-173.

19 O que é mais freqüente, como observa Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária, p. 174).

20 Verdades e Ficções em torno do Tributo denominado Taxa, p. 337.

21 Hipótese de Incidência Tributária, p. 174.

22 Imposto Predial e Taxas Urbanas, Revista de Direito Pública no. 11, p. 118-139.

23 Ainda assim vários Municípios continuaram indevidamente a instituí-la e a cobrá-la.

24 Como dizia Eugênio Gudin, “O que todo governo que chega aprende mais rapidamente do governo que sai é a arte de aumentar gastos e impostos”.

25 Na CF de 1969, o consumo de energia elétrica configurava hipótese de incidência de imposto que era da competência da União Federal (artigo 21, inciso VIII).

26 Cf. Geraldo Ataliba, Hipótese de Incidência Tributária, p. 104.

27 Teoria Geral do Direito Tributário, p. 378.

28 E por ele mesmo atenuada, em especial depois da entrada em vigor da CF/1988, como se nota de edições mais recentes de sua obra “Hipótese de Incidência Tributária”.

29 Imposto Predial e Taxas Urbanas, p. 131.

30 Nesse sentido: STJ, RESP no. 209485, SP, 2a. T, Rel Min. Francisco Peçanha Martins, DJU, 29.4.2002.

31 Cf. Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do Direito Tributário, p. 380-381.

32 (STF – MS 22.503-3 – DF – TP – Rel. p/ o Ac. Min. Maurício Corrêa – DJU 06.06.1997).