DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE BEM IMÓVEL. CONTROVÉRSIA INSTALADA E QUE RADICA QUANTO À VALIDEZ DE CLÁUSULA QUE PREVÊ A INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA E DE JUROS. CONTRATO CUJO PAGAMENTO É FEITO POR MEIO DE PARCELAS. NEGÓCIO IMOBILIÁRIO CUJAS PECULIARIDADES E CARACTERÍSTICAS FORAM MOLDADAS PELA REALIDADE BRASILEIRA E INCORPORADAS AO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO.
EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO NESSE TIPO DE CONTRATO QUE SOMENTE PODE SER ALCANÇADO QUANDO SE OBSERVA A INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA E DOS JUROS, DESTINADOS À RECOMPOSIÇÃO DO VALOR DA MOEDA E DO CAPITAL INVESTIDO. CLÁUSULA CONTRATUAL REDIGIDA EM LINGUAGEM CLARA. DIREITO DE INFORMAÇÃO QUANTO AO CONTEÚDO E ALCANCE DA CLÁUSULA CONTRATUAL RIGOROSAMENTE OBSERVADO. RECONHECIDA A VALIDEZ DA CLÁUSULA CONTRATUAL, AINDA QUE SE CONSIDERE O REGIME JURÍDICO-LEGAL DE PROTEÇÃO ESTABELECIDO PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS DE NULIDADE DA CLÁUSULA CONTRATUAL E DA REVISÃO DO VALOR DA PRESTAÇÃO MENSAL DO BEM IMÓVEL. RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO PELA RÉ INTEGRALMENTE PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA. ENCARGOS DE SUCUMBÊNCIA, SEM MAJORAÇÃO DE HONORÁRIOS DE ADVOGADO.
RELATÓRIO
Cuida-se de ação revisional de contrato de compromisso de compra e venda de imóvel com pedido de declaração de nulidade de cláusula contratual e restituição de valores, ajuizada por (…) em face de (…), alegando a autora ter com a ré firmado um contrato de compromisso de compra e venda de bem imóvel, sustentando nesse contexto que a cláusula terceira do contrato há que ser declarada nula, como o deve ser em virtude da aplicação do regime de proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, seja porque essa cláusula, segundo a autora, indevidamente prevê em favor da ré a prática ilegal de anatocismo, seja porque seu conteúdo não é claro o suficiente quanto aos efeitos econômicos que seriam projetados e que fizeram elevar o valor do imóvel a mais de noventa mil reais, um valor muito maior do que o valor de mercado, o que, enfatiza a autora, é o resultado de uma prestação mensal atual da ordem R$987,87, pugnando a autora pelo reconhecimento de que se trata de uma cláusula abusiva, e que assim se a declare nula, de maneira que o valor da prestação mensal mantenha-se em seu valor original, não sofrendo qualquer influxo decorrente da acoimada cláusula contratual, condenada a ré a restituir-lhe o que recebeu a mais.
A r. sentença julgou parcialmente procedentes as pretensões, declarando a nulidade da cláusula terceira do contrato, para que prevaleça o valor original da prestação, condenando a ré a restituir à autora o valor pago além do devido, “na modalidade simples”.
Recurso de apelação interposto pela requerida sob a alegação de que a r. sentença incidiu em equívoco ao levar em consideração uma afirmação do laudo pericial, no sentido de que o valor do imóvel seria de R$63.703.64 (sessenta e três mil setecentos e três reais e sessenta e quatro centavos), quando do contrato consta expressamente que o valor é de R$90.499,00 (noventa mil quatrocentos e noventa e nove reais), devendo prevalecer tanto a correção monetária quanto os juros de mora, pois que o contrato os prevê de maneira expressa, inclusive como se os deveriam calcular, enfatizando a ré-apelante que o valor do imóvel é condizente com o valor do mercado e que apenas se cuidou prever a incidência de correção monetária e de juros em razão do fato de o pagamento ter sido parcelado em doze anos, o que obrigava a que se fizesse respeitar um equilíbrio econômico-financeiro dada a acentuada quantidade de prestações, em número de cento e cinquenta, situação que legitima a incidência tanto da correção monetária, quanto dos juros, pugnando, pois, pela reforma da r. sentença, com a declaração de improcedência às pretensões.
Recurso de apelação interposto também pela autora com o objetivo de que se lhe reconheça o direito a receber em dobro o que pagou a mais, e que se afaste o regime de sucumbência recíproca estabelecido na r. sentença.
Recursos tempestivos, preparado o da requerida, sem preparo o da autora, beneficiária da gratuidade. Contrarrazões apresentadas apenas pela ré.
FUNDAMENTAÇÃO
É de rigor dar-se integral provimento ao recurso de apelação interposto pela ré, com a declaração de improcedência das pretensões formuladas na peça inicial, prejudicada a análise do recurso de apelação interposto pela autora. Senão vejamos.
Conquanto se trate de uma relação jurídico-material de consumo a que caracteriza a lide objeto deste processo, daí não advém que se possa reconhecer, sem mais, a abusividade da cláusula terceira do contrato que as partes firmaram. Como observa HUMBERTO THEODORO JUHNIOR, há a necessidade de se buscar um ponto de equilíbrio entre as posições contratuais quando sobre elas se deva aplicar o regime jurídico-legal fixado pelo Código de Defesa do Consumidor, equilíbrio que passa pela compreensão de que:
“A aferição da cláusula abusiva não se fez a partir do ânimo ou subjetivismo das contratantes: ‘A tendência hoje no direito comparado e na exegese do CDC é conectar a abusividade das cláusulas a um paradigma objetivo, em especial ao princípio da boa-fé objetiva; observar mais seu efeito, seu resultado e não tanto repreender uma atuação maliciosa ou não subjetiva”. (“Direitos do Consumidor”, p. 28, Forense editora).
Sobreleva considerar a natureza jurídica do contrato e do negócio imobiliário que a ele subjaz, sendo de relevo atentar para o que JOSÉ OSÓRIO DE AZEVEDO JUNIOR destacou quando observa que se trata do “mais brasileiro” dos contratos de direito civil, despertando a atenção da doutrina e em especial de um conhecido civilista português, ANTUNES VARELA, que a respeito escreveu: “Merece uma referência especial, no domínio das convenções geradoras da obrigação de contratar, o chamado ‘compromisso de compra e venda’. Trata-se de uma figura curiosa, com alguns traços originais, que despontou cedo no direito brasileiro (…), por influência de um diploma legislativo uruguaio”. (“Compromisso de Compra e Venda”, 3. Edição, p. 17, Malheiros editores).
Com feito, trata-se de um contrato cuja singular característica radica em possuir como objeto a aquisição de um bem imóvel mediante parcelas, de maneira que o valor total do bem é financiado, o que legitima, senão que exige que os contratantes pactuem a incidência da correção monetária e de juros.
Cláusulas que, assim, são bastante usuais e, de resto, necessárias em contratos dessa natureza, porquanto têm por objetivo manter, tanto quanto possível, atualizado o valor da prestação mensal em face da desvalorização da moeda ao longo do tempo em que as parcelas devam ser pagas pelo adquirente. O equilíbrio econômico-financeiro depende diretamente tanto da correção monetária quanto dos juros.
Quanto à correção monetária, a cláusula terceira do contrato fixa com clareza qual o indexador que seria adotado (o “IGP-M”), e, como assinalou o juízo de origem, as partes não controvertem quanto à aplicação desse indexador, que, aliás, é frequentemente adotado em contratos desse jaez.
No que concerne aos juros – que constituem uma válida e legítima forma de remuneração do capital investido pelo vendedor –, a referida cláusula contratual conta com um enunciado que é de fácil intelecção, ao estabelecer que, a cada período de doze meses, o valor da prestação mensal sofreria a incidência de juros de meio por cento, de maneira que a autora-apelada tinha pleno conhecimento de que o valor da prestação mensal não se manteria em seu valor histórico inicial, o que significa dizer que o dever de informação, que é exigido pelo Código de Defesa do Consumidor, foi rigorosamente observado pela ré-apelante.
Prevê a cláusula que se aplicaria uma taxa de juros de seis por cento ao ano, uma taxa que está prefixada e é razoável porque perfeitamente ajustada à finalidade dos juros, quando buscam, como no contrato em questão, recompor o valor do capital que a ré-apelante empregou no empreendimento, sendo de rigor observar que o contrato não prevê a incidência de juros compostos, não se havendo falar, portanto, em prática de anatocismo.
Obviamente que, incidindo, nos termos do contrato, a correção monetária e os juros de mora, cada qual para atender à sua precisa finalidade, o valor do imóvel é de ser calculado e fixado de acordo com a aplicação do indexador e da taxa de juros, o que justifica que o valor do imóvel tivesse sido fixado em R$90.449,00, como se vê de folha 22, reconhecendo-se razão à ré-apelante quando observa que a r. sentença incidiu em manifesto equívoco, tanto quanto o havia incidido a perícia, ao afirmar que não havia constado do contrato o valor total do imóvel objeto de parcelamento.
Portanto, trata-se de uma cláusula (a cláusula terceira) válida e que quadra perfeitamente tanto com o Ordenamento Jurídico em vigor, quanto com a finalidade de atualizar ao longo do tempo o valor da moeda, representado no valor da prestação mensal, quanto o de remunerar o capital empregado pela ré-apelante, não havendo, portanto, nenhuma abusividade na referida cláusula.
Por tais razões, deve-se dar integral provimento ao recurso da requerida, acolhendo-se seus fundamentos para concluir que inexiste abusividade na cláusula em questão, cláusula que é declarada válida e eficaz, julgando-se improcedentes as pretensões veiculadas na peça inicial.
Prejudicado, por óbvio, o exame do recurso de apelação interposto pela autora-apelante, recurso que versava sobre a devolução em dobro do que, na r. sentença, havia sido considerado como um valor indevido, e também quanto à sucumbência recíproca, a qual é de ser atribuída exclusivamente à autora.
Pelo meu voto, dá-se provimento integral ao recurso da requerida para julgar improcedentes as pretensões formuladas na peça inicial, não se conhecendo, outrossim, do recurso de apelação interposto pela autora.
Observada a condição suspensiva de exigibilidade prevista no artigo 98, parágrafo 3º, do CPC/2015, atribui-se a autora a sucumbência total, de maneira que se a condena a reembolsar a ré do que esta despendeu a título de despesas processuais, desde a data do respectivo desembolso, condenada a autora também em honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, devidamente corrigido desde seu ajuizamento. Modificada a base de cálculo, diversa, pois, daquela que foi adotada na r. sentença, não se pode aplicar a regra do artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR