MARCO CIVIL DA INTERNET. RESPONSABILIDADE DO PROVEDOR. CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 19 DA LEI DO MARCO CIVIL DA INTERNET

DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DE PROVEDOR DA INTERNET. PERFIL FALSO PUBLICADO EM REDE SOCIAL ASSOCIADO À IMAGEM DA AUTORA. REGIME DE RESPONSABILIDADE CIVIL FIXADO NO ARTIGO 19 DA LEI DO MARCO CIVIL DA INTERNET. RECONHECIDA A LEGALIDADE DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL QUE CONDICIONA A CARACTERIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIADE CIVIL NÃO CARACTERIZADA. RECURSO NÃO PROVIDO.

RELATÓRIO
Afirmando a ocorrência de reiterado descaso por parte da provedora de serviços de “Internet”, (…), em observar o dever de prevenir danos no ambiente digital das redes sociais que administra, sustenta a autora, (…), que a despeito de ter notificado a ré por diversas vezes, comunicando-lhe que havia dezenas de perfis falsos publicados com o nome da autora em rede social, muitos dos quais associados à pornografia, a ré desconsiderou as notificações, mantendo ativos os perfis falsos, causando prejuízo à vida privada e profissional da autora, que, nesse contexto, formulou pretensão cominatória para que a ré fosse obrigada a retirar a publicação dos perfis na rede social que administra, cumulando essa pretensão com a de natureza condenatória, pleiteando uma reparação por dano moral da ordem de R$30.000,00 (trinta mil reais).
A pretensão cominatória foi acolhida na r. sentença, que, contudo, negou à autora reparação por dano moral.
Interpôs a autora recurso de apelação, aduzindo que o artigo 19 da lei federal 12.965/2014 deve ser interpretado em conjunto com a proteção constitucional dos direitos à intimidade, imagem e do consumidor, e que por isso não pode vingar a r. sentença quanto a não ter reconhecido a responsabilidade civil da ré, quando, segundo a autora, sua conduta omissiva restou comprovada.
Recurso tempestivo, isento de preparo (fls. 209) e contra-arrazoado (fls. 1.662/1.680).
FUNDAMENTAÇÃO
Conheço do recurso de apelação, mas a ele nego provimento, mantida a r. sentença em sua integral fundamentação fático-jurídica.
Não controverteu a ré quanto a se caracterizarem como falsos os perfis que a autora enumerou e individualizou na peça inicial, tanto assim que, tão logo tomou conhecimento da tutela provisória de urgência que foi concedida neste processo, cuidou a ré de suprimir tais perfis da rede social que administra, embora adscrevesse, quanto a um dos perfis, em cujo conteúdo não há nada associado à autora.
A r. sentença, acolhendo a pretensão cominatória, e ratificando a eficácia da tutela provisória de urgência, salvo quanto ao perfil destacado pela ré, julgou procedente esse pedido, mas negou à autora a reparação por dano moral. E é exatamente nesse aspecto que radica o inconformismo da autora, trazendo uma interessante argumentação, ao defender a tese de que a intelecção do artigo 19 da lei 12.965/2014 (a “Lei do Marco Civil da Internet”) deve ser extraída em função do que estabelecem os direitos fundamentais que protegem a vida privada e a intimidade.
Prevê o artigo 19 da referida lei federal:
“Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Não há dúvida, pois, que segundo essa norma legal a responsabilidade civil do provedor de “Internet” somente se configura na hipótese em que, após ter sido oficialmente comunicado de uma ordem judicial que seja específica quanto ao conteúdo do que deva ser removido, não adote o provedor as providências adequadas e necessárias para a retirada desse conteúdo. Assim, não há dúvida de que o legislador infraconstitucional fixou uma condição indispensável à configuração da responsabilidade civil do provedor, ao fixar que essa responsabilidade somente surge se o provedor desatende à ordem judicial, independentemente do elemento subjetivo.
Portanto, tudo o que ocorre antes da ordem judicial, e que possa ter importância no contexto fático-jurídico para caracterizar ou não a responsabilidade civil, segundo estatui o referido artigo 19 não pode ser valorado pelo juiz como caracterizador da responsabilidade civil do provedor, que assim é excluída “ope legis”.
Obtempera a apelante que o legislador infraconstitucional terá sobre-excedido seu poder de regulação, invadindo espaço reservado à aplicação de normas de matriz constitucional, ao dispor sobre matéria que diz respeito de perto a direitos fundamentais, como são os direitos à intimidade à vida privada, e o teria feito, segundo a apelante, para indevidamente restringir o conteúdo desses direitos fundamentais, porque estabelecer uma condição para o surgimento da responsabilidade civil que não estaria no conteúdo das normas constitucionais, cujo alcance, segundo a apelante, teria sido indevidamente diminuído pela norma infraconstitucional.
Essa interessante questão nos conduz ao terreno da proteção jurídica da liberdade e de toda a problemática que surge quando de algum modo o legislador a limita, criando um conflito com a esfera jurídica do titular dessa liberdade. Não há dúvida de que, ao fixar uma condição para a caracterização da responsabilidade civil, com importantes efeitos gerados no campo da proteção a direitos fundamentais, o legislador infraconstitucional afetou de modo sensível o campo de proteção jurídica da autora enquanto a direitos fundamentais.
Deve-se ter presente que os direitos fundamentais formam a parte essencial de uma constituição de qualquer país realmente democrático, e em geral as normas jurídicas que os preveem apresentam um grau de abstração superior àquele encontrado nas demais normas jurídicas, o que determina que as normas dos direitos fundamentais sejam frequentemente abertas a várias interpretações. Essa forma característica das normas dos direitos fundamentais conduziu importante parte da doutrina a afirmar que o princípio da proporcionalidade nada mais é do que uma regra de interpretação.
E como regra de interpretação, o princípio da proporcionalidade permite analisar no caso presente se o legislador infraconstitucional terá enfraquecido, além de um justo limite, a proteção à autora, quando lhe nega o direito à reparação por dano moral, como cuidou a r. sentença fazer, aplicando o artigo 19 da Lei do Marco Civil da Internet, sob o fundamento de que a responsabilidade civil somente se caracterizaria se a ré, intimada a cumprir a tutela provisória de urgência, a isso tivesse criado algum óbice. A r. sentença, portanto, considerou válida a condição fixada no artigo 19 da referida lei, negando à autora a responsabilidade civil por dano moral.
Essa condição, conquanto interfira no conteúdo dos direitos fundamentais reconhecidos em favor da autora, não constitui uma medida que coloca a esfera jurídica da autora aquém de um mínimo razoável, porque não está a negar a reparação civil, mas apenas a condicioná-la um momento temporal que ao legislador pareceu adequado e conveniente, e que, em si, não oblitera a proteção jurídica, dado que a autora poderia ter ajuizado a ação tão logo tivesse atinado com a existência de perfis falsos associados a seu nome. E a ré, tão logo tomou conhecimento oficial da ação judicial, tratou de retirar a publicação dos perfis, desobrigando-se de suportar a responsabilidade civil.
Portanto, entendo que o artigo 19 da lei 12.965/2014, submetido a um controle difuso de constitucionalidade e sob o enfoque do princípio da proporcionalidade, não apresenta nenhuma ilegalidade substancial, devendo se admitir como válido o aspecto que o legislador infraconstitucional levou em conta, ao reconhecer que os provedores não dispõem de meios viáveis para executar um controle prévio sobre o conteúdo das publicações dos usuários das redes sociais.
Correta a r. sentença ao aplicar a condição prevista no conteúdo desse dispositivo de lei infraconstitucional, quando negou exista responsabilidade civil da ré. Portanto, seja quanto a esse aspecto, seja quanto ao provimento cominatório, pelo meu voto deve ser a r. sentença ser mantida, inclusive quanto a ter reconhecido como caracterizada a sucumbência recíproca no que diz respeito à pretensão ao provimento cominatório, impondo exclusivamente à autora a condenação por encargos de sucumbência quanto ao pedido de reparação por dano moral.
Pois que, por tais razões e sua substância, nego provimento ao recurso de apelação interposto pela autora, mantendo em seu conteúdo integral a r. sentença.
Adoto, outrossim, o regime de sucumbência recíproca quanto ao provimento cominatório, tal como foi reconhecido em primeiro grau. E quanto ao pedido condenatório – de reparação por dano moral –, em relação ao qual a autora sucumbiu, como corretamente considerou e aferiu a r. sentença, cuido majorar os honorários advocatícios nos termos do que determina o artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015, para que agora alcancem 11% (onze por cento) sobre o valor que havia sido quantificado na peça inicial (R$30.000,00), com atualização monetária a partir desta data.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
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