Processo número 1007659-15.2020
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital
Vistos.
Formulando embargos, questiona a embargante, (…), a utilização da ação monitória, controvertendo sobre a natureza jurídica do contrato erigido como prova escrita pela embargada, (…), alegando a embargante que a relação contratual assumiu na prática uma natureza distinta daquela formalmente fixada no contrato, nomeadamente quando nele se previu expressamente a recompra dos títulos, o que desnaturou o contrato, que assim não pode ser considerado como um contrato apenas de cessão de créditos, de modo que, segundo a embargante, a relação negocial seria nula porque a embargada não conta com autorização legal para realizar operações financeiras, como são aquelas que envolveram a recompra dos títulos, o que, no entender da embargante, descaracteriza a prova escrita, tornando inadequada a ação monitória.
Embargos recebidos e respondidos pela embargada, que sustenta constituir-se em um fundo de investimentos, não tendo exercido em tempo algum a atividade de securitização, nem a uma empresa que exerce a atividade típica de “factoring”, aduzindo nesse contexto que as operações realizadas com a embargante caracterizam-se desde sempre como relativas a um contrato típico de cessão de créditos, e que a cláusula de recompra dos títulos que foi inserida no contrato não o descaracteriza, nem modificou a sua natureza jurídica, e que a prova escrita é de ser reconhecida nesse tipo de contrato.
É o RELATÓRIO.
FUNDAMENTO.
Acolhem-se, com efeito, estes embargos visto que não se configura a existência de prova escrita nos moldes e sob o rigor que o Código de Processo Civil de 2015 exige para o cabimento da ação monitória.
Importante sublinhar que a ação monitória foi introduzida em nosso ordenamento jurídico em vigor em 1995, com a lei federal 9.079, e passou a integrar o rol de ações, procedimentos e tutelas que, em doutrina, são denominadas de técnica de tutela jurisdicional diferenciada, surgidas no bojo de um fenômeno que se instalou especialmente na Itália (a expressão “tutela jurisdicional diferenciada”, foi cunhada pelo processualista italiano, ANDREA PROTO PISANI). Buscava-se, pois, abreviar de algum modo razoável o tempo de duração do procedimento ordinário, engendrando-se assim técnicas antecipar ou o provimento jurisdicional ou seus efeitos, ou ainda a sua eficácia. A ação monitória surge exatamente com essa finalidade e dentro do fenômeno da “tutela jurisdicional diferenciada”.
O procedimento monitório, ou também denominado de procedimento injuntivo, caracteriza-se por ensejar a formação de um título executivo judicial em um procedimento mais célere, adotada uma cognição sumária, de forma que o autor não estaria obrigado a suportar o longo tempo de trâmite de um procedimento ordinário com sua cognição plena e exauriente, desde que possua uma “prova escrita”. Como afirma JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, em monografia sobre o tema:
“Este tipo de tutela jurisdicional diferenciada tem então por escopo (…) superar a inércia do devedor, incitando-o a abandonar a ‘conjura de silêncio’, o ‘coma jurídico’, ao possibilitar, mediante procedimento simples e expedito, a obtenção, pelo credor, de título executivo. ‘Esta é a filosofia do procedimento injuntivo, que se inicia com um mandado do juiz dirigido ao devedor para que este efetue o pagamento ou impugne o débito, sob pena de ser formado um título executivo que ensejará futura execução. Numa palavra, a sua originalidade encontra-se na situação de vantagem inicial do credor, fazendo com que o devedor suporte as consequências de sua inércia”. (“Ação Monitória”, p. 23, RT).
Mas essa vantagem na posição do autor da ação monitoria deve justificar-se pela existência de um especial requisito: o da prova escrita, que, segundo Carnelutti, consiste em um “documento escrito do qual o juiz infere diretamente, ao cabo do decreto de injunção, a existência da relação jurídica correspondente à pretensão do recorrente”. (tradução nossa, apud JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI na obra mencionada, p. 41).
Destarte, a prova escrita constitui em nosso CPC/2015, como era também no CPC/1973, uma condição específica de admissibilidade da ação monitória, o que significa dizer que se não há essa condição específica, não há como justificar a vantagem processual em favor do autor, que deve suportar a anormal extinção da ação monitória, por ausência do interesse de agir, e remetido ao procedimento ordinário. É o que deve suceder no caso em questão.
Com efeito, o nosso Ordenamento Jurídico em vigor confere uma acentuada margem de liberdade contratual, o que significa reconhecer que as partes podem modificar aqueles tipos contratuais que a lei tenha fixado, e essa modificação pode ser tão significativa a ponto de modificar a natureza jurídica do contrato, conforme a reunião de cláusulas que ocorra no instrumento da avença. Assim, por exemplo, no caso do contrato de “factoring”, as partes podem eventualmente estabelecer a responsabilidade civil do cedente pela solvência do devedor/sacado, mas inserindo uma cláusula dessa ordem terão descaracterizado o contrato de “factoring”, dada a invalidez desse tipo de cláusula no regime jurídico-legal aplicável ao contrato de “factoring”.
Destarte, a natureza jurídica de um contrato é encontrada não pelo que dizem formalmente suas cláusulas, senão pelo que revela a materialização das operações realizadas, as quais, assumindo uma finalidade diversa daquela contratada, podem modificar a essência do contrato, surgindo a partir daí um novo tipo de contrato, que pode ser a reunião de dois ou mais tipos legais de contrato.
Assim é que, no caso do contrato em questão, conquanto se tratasse, no plano formal, de um contrato de cessão de créditos, ao inserir-se dentre suas cláusulas a que prevê e autoriza a recompra dos títulos cedidos, modificou-se a essência da relação negocial, que passou a abarcar uma operação que sobre-excede o tipo legal do contrato de cessão de crédito, fazendo-o equiparar ou se assemelhar a um contrato de “factoring”. Conforme se enfatiza, é pela realidade das operações que ocorrem no bojo de uma relação contratual que se pode fixar, com segurança, a real natureza jurídica de um contrato. A inserção de uma cláusula de recompra dos títulos é que determina a realidade da relação jurídico-contratual firmada entre as partes, que não se circunscreve ao contrato de cessão de créditos, conquanto mantenha essa essência, justaposta a outra, que transmuda o contrato em algo que pode não corresponder integralmente a um contrato de “factoring”, mas que tem muito de sua natureza.
Ganha acentuada relevância, pois, o que a embargante argumenta quando questiona a validez do contrato, dado que a embargada, em não sendo uma empresa financeira, não poderia praticar atos dessa natureza, instalando a respeito uma controvérsia jurídica cujo desimplicar é fundamental para se definir qual a natureza jurídica do contrato, e a partir daí se o contrato real é ou não válido.
Havendo, pois, uma controvérsia que se instala em aspectos substanciais da relação contratual, como neste caso, não se pode juridicamente qualificar o contrato apresentado pela embargada como “prova escrita”, não certamente para legitimar o uso da ação monitória.
Diante do grau e da extensão da controvérsia fática, não se pode conferir à embargada uma vantagem processual, dispensando-a de se submeter a um procedimento ordinário, dotado de cognição plena e exauriente, procedimento que, a rigor, já existe na ação que o embargante ajuizou, no bojo do qual poderão as partes, embargante e embargada, ali produzir as provas adequadas à demonstração da realidade do objeto contrato e particularmente de sua execução, sobretudo no que diz respeito às operações de recompra de títulos, previstas na avença.
Ou seja, não se pode aqui, nesta ação monitória, confirmar exista a relação jurídico-material nos moldes em que a afirma a embargada, havendo a imperiosa necessidade de se perscrutar, em cognição plena e exauriente, a dizer, em procedimento ordinário, acerca dessa relação contratual e de sua verdadeira natureza jurídica.
POSTO ISSO, acolho os embargos à ação monitória, por força de reconhecer e declarar a inexistência de prova escrita que autorize o manejo da ação monitória. Declaro a extinção destes embargos à ação monitória, com julgamento de seu mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, e em consequência, por ausência de interesse específico de agir (prova escrita), julgo extinta a ação monitória em razão da aplicação subsidiária do artigo 485, inciso VI, do mesmo Código.
Condeno a embargada no reembolso à embargante do que este despendeu com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária a partir do desembolso. Condenado a embargada também em honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à ação monitória.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 9 de junho de 2021.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO