LEI DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL: NORMAS MATERIAIS E PROCESSUAIS. IMPORTÂNCIA DA DISTINÇÃO.
Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito
De há muito, a doutrina processual conseguiu identificar as características essenciais que permitem fixar uma distinção segura entre a relação jurídico-material (objeto de uma lide) e a relação jurídico-processual, identificando no mesmo contexto quais institutos são de natureza puramente processual, como se dá com a competência. Igualmente pôde a doutrina processual constatar a existência de institutos bifrontes, como são aqueles que apresentam uma natureza jurídica mista, caso, por exemplo, da prescrição, observando-se que a legislação é que definirá se existe ou não essa natureza dúplice.
A identificação da natureza jurídica dos institutos que compõem a ciência do processo civil, como observa o genial CHIOVENDA, não apresenta uma finalidade apenas acadêmica ou teórica, porquanto os princípios e regras que se aplicam a esses institutos são diversos daqueles que regulam as relações jurídico-materiais, e isso é de importância prática.
Esse intróito é necessário porque o que sobreleva considerar aqui é radica no perscrutar acerca da natureza jurídica da matéria de que trata o artigo 49, parágrafo 1º., da lei federal 11.101/2005, a lei que regula o instituto da recuperação judicial, de modo que se possa estabelecer se o conteúdo dessa regra legal diz respeito à relação jurídico-material, à relação jurídico-processual, ou a ambas. Diz o referido dispositivo legal que:
“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”.
Parte da jurisprudência, com efeito, vem aplicando esse dispositivo legal como fundamento jurídico para decidir que a competência do juízo perante o qual se processa a ação de recuperação judicial não abarca a ação de execução fundada em título extrajudicial ajuizada contra o garante de uma empresa em regime de recuperação judicial, o que significa dizer que vem interpretando esse artigo como se tratasse da relação jurídico-processual, ou quando menos, de uma natureza jurídica mista (processual e material a um só tempo). No que, “concessa vênia”, configura-se equívoco.
Pois que o artigo 49, parágrafo 1º., da lei 11.101/2005 cuida apenas dos direitos e privilégios do credor em face do garante de uma empresa submetida ao regime de recuperação judicial, estatuindo a norma que o credor mantém incorporados a sua esfera jurídica esses direitos e privilégios, malgrado exista o processo de recuperação judicial. Direitos e privilégios em favor do credor que são aqueles direitos e privilégios que as normas de direito material preveem, asseguram e reconhecem. Não se trata, por óbvio, de matéria processual.
De natureza processual é a regra do artigo 6º. da lei 11.101, que trata da competência absoluta do juízo perante o qual corre o processo de recuperação judicial, que é o juízo competente para todas as ações e execuções em face do devedor, salvo determinadas e específicas exceções, que a mesma lei prevê taxativamente. Destarte, fora dessas exceções, a competência absoluta do juízo da recuperação judicial impõe-se, seja por razão de natureza lógica, seja porque assim previu o legislador, dado que, sobre ser conveniente e necessário que um só juízo possa decidir sobre as ações e execuções promovidas contra o devedor, isso constitui uma imposição de natureza lógica na medida em que, sem o agrupamento de todas essas ações e execuções sob a análise de um único juízo, não haveria como se identificar e classificar os créditos, providência necessária e indispensável para que se possa alcançar-se aquele nuclear objetivo que está fixado no artigo 47 da referida Lei, o de permitir a manutenção da empresa em regime de recuperação judicial, satisfazendo seus débitos segundo determinada ordem, a ser judicialmente estabelecida, salvando, tanto quanto possível, a existência da empresa. Assim, permitir o processamento das ações e execuções judiciais em diversos juízos tornaria impossível alcançar-se aquela finalidade.
Assim, quando a lei federal 11.101, por seu artigo 49, cuidando de matéria exclusivamente de direito material, assegura e protege o credor com seus direitos e privilégios em face dos garantes e coobrigados e fiadores da empresa sob recuperação judicial, está a ressalvar que esses direitos e privilégios serão mantidos e reconhecidos, conquanto esteja o devedor principal em regime de recuperação judicial, do que se pode concluir que o legislador terá aí considerado a prevalência do juízo universal da recuperação judicial inclusive para as ações e execuções ajuizadas contra os garantes, pois do contrário a norma do artigo 49, parágrafo 1º., revelar-se-ia desnecessária, dado que os garantes não estariam submetidos ao juízo universal da recuperação judicial. É exatamente por estarem sujeitos a esse juízo universal que o legislador cuidou ressaltar que os direitos e privilégios do credor estão assegurados e que devem ser reconhecidos como tais (com esses direitos e garantias) pelo juízo competente, que é o juízo da recuperação judicial.
A norma do artigo 49, parágrafo 1º., da lei federal 11.101, trata, portanto, apenas da relação jurídico-material, e não sobre competência, esta de natureza processual e regulada como tal pelo artigo 6º. da referida lei.