PLANO MÉDICO NÃO ADAPTADO À LEI FEDERAL 9.656/1998. COBERTURA CONTRATUAL QUE DEVE SER INTERPRETADA DE ACORDO COM O CONTEÚDO DO ARTIGO 196 DA CF/1988. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO

Processo número 1012199-09-2020
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital

Vistos.

A autora (…), qualificada a folha 1, invocando a validez e eficácia de um contrato celebrado com a ré (…), afirma que, em se tratando de um contrato de plano de saúde, deve-se considerar a cobertura contratual de modo que lhe propicie o melhor tratamento médico adequado a seu quadro clínico, observados os avanços da Ciência Médica, o que a ré, contudo, desconsiderou, quando lhe negou o custeio de determinados medicamentos, buscando a autora, nesse contexto, fático-jurídico, que se declare existir a cobertura contratual, para que então se obrigue a ré a custear e lhe fornecer tais medicamentos pelo tempo necessário e segundo a dosagem prescrita. Peça inicial aditada as folhas 101/103. Adota-se o rito comum.

Concedeu-se a tutela provisória de urgência (folhas 92/93), cuja eficácia subsiste.

Citada, a ré contestou, defendendo a prevalência das cláusulas que expressamente excluem a cobertura médica, quando, como no caso, em questão trata-se de contrato firmado em 1992 e não adaptado à lei federal 9.656/1998, de modo que a cobertura contratual não pode ser ampliada como quer a autora.

Réplica apresentada.

É o RELATÓRIO.

FUNDAMENTO e DECIDO.

A relação jurídico-material que forma o objeto desta lide é exclusivamente de direito, o que autoriza se proceda ao julgamento antecipado da lide. De resto, as partes assim o requereram.

Registre-se que não há matéria preliminar que penda de análise.

Quanto ao mérito da pretensão.

Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidos nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.

Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.

No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica da autora não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevaleça a argumentação de que como o contrato em questão fora firmado em 1992 e não está adaptado às disposições da lei federal 9.656/1998, não pode ser ampliada a cobertura contratual para propiciar à autora o custeio dos medicamentos de que ela necessita.

A análise que é aqui se leva a cabo radica em considerar sobretudo que o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, deve ser utilizado como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem a autora e a ré.

A Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos e tratamentos terapêuticos, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.

A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A intepretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.

O artigo 196 da Constituição de 1988 garante ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam a autora e a ré.

Destarte, havendo um novo medicamento que tem sido prescrito, comprovada sua eficácia, tanto assim que a médica que dirige o tratamento médico a que a autora submete-se prescreve esse medicamento, daí resultar que, desobrigar a ré de propiciar a autora o acesso a esse medicamento é colocar a esfera jurídica da autora aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar à autora o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima. É irrelevante, portanto, que se trate de um contrato firmado antes da entrada em vigor da lei federal 9.656/1998 e que não tenha sido aditado para adaptação às disposições dessa lei federal, porque o que sobreleva considerar é o objeto do contrato e a interpretação de suas cláusulas na perspectiva das normas de direitos fundamentais, atuando estas como imperativos de tutela que supeditam um importante material hermenêutico a ser considerado e aplicado na relação contratual em questão.

Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor da autora seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.

Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.

POSTO ISSO, ponderando os interesses em conflito, entendo que a liberdade contratual, na medida em que a ré a invoca, colocaria, se prevalecente essa medida, a posição jurídica da autora aquém de uma proteção mínima, e por isso, interpretando as normas contratuais, e as aplicando diante dos argumentos que foram mencionados, decido deva prevalecer a posição jurídica da autora, de modo que lhe reconheço o direito subjetivo a contar com a cobertura contratual para abarcar o custeio integral dos medicamentos prescritos, na quantidade prescrita e pelo tempo previsto na documentação médica apresentada pela autora, JULGANDO PROCEDENTE o pedido, pois, e ratificando a tutela provisória de urgência, agora transmudada em tutela antecipada, acrescendo que se fixa, para a hipótese de recalcitrância, a multa diária fixada em R$30.000,00 (trinta mil reais), azado patamar a gerar na ré a convicção de que deva cumprir esta sentença, nomeadamente a tutela provisória de urgência de natureza antecipada, nela concedida. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 485, inciso I, do Código de Processo Civil.

Condeno a ré a reembolsar a autora do quanto ela tenha despendido com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária a partir do desembolso. Condeno a ré também no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, devidamente corrigido.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 13 de abril de 2021.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO