AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE, SOB ALEGAÇÃO DE OMISSÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA EM PRESTAR SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA, BUSCA OBTER PROVIMENTO QUE A OBRIGUE A AJUIZAR AÇÃO JUDICIAOL EM FAVOR DE NECESSITADO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COM A PONDERAÇÃO ENTRE OS INTERESSES EM CONFLITO.

PREVALÊNCIA DA POSIÇÃO JURÍDICA DA DEFENSORIA PÚBLICA, EMBASADA NO DIREITO À AUTONOMIA FUNCIONAL. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

Vistos.

                                      Cuida-se de ação promovida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, pela qual alega ter havido de parte da requerida, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por meio de sua Defensoria Pública, injustificada omissão no prestar serviço de assistência jurídica a pessoa necessitada,  sustentando o MINISTÉRIO PÚBLICO, nesse contexto, que a atuação da Defensoria Pública em favor dos necessitados é ato “vinculado, compulsório, obrigatório, não mera faculdade ou opção institucional de formação de juízo de valor sobre a pretensão do assistido” (sic), não lhe cabendo, pois, a recusa a atender aqueles que a procuram, como ocorreu com a pessoa de (…), vendedora ambulante e portadora de deficiência física, que tivera revogado o termo de permissão de uso para o trabalho de mercancia em via pública e que buscou o serviço de assistência jurídica prestado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo com o objetivo de que de parte dessa Instituição houvesse a defesa de seus direitos, a serem implementados por via jurisdicional, mas a Defensoria, segundo o MINISTÉRIO PÚBLICO, “arvorando-se na condição de órgão julgador, em substituição indevida ao Judiciário”, (sic) negou-se a promover a ação judicial, deixando com isso sob indevida proteção a esfera jurídica daquela pessoa, descumprindo o dever fundamental que a Constituição da República de 1988 fixou-lhe, que é o de prestar esse tipo de serviço essencial. Daí a pretensão formulada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO quanto a obrigar-se a ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO a indicar defensor público que efetive o serviço de assistência jurídica integral e gratuita em favor de (…), promovendo em seu nome a ação judicial que lhe garanta a continuidade de sua atividade de ambulante, sob pena de a ré, se recalcitrante, suportar multa.

                                      A peça inicial está instruída com a documentação de folhas 18/99.

                                      Medida liminar concedida, mas em menor escala do que a pretendida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO; assim, para obrigar a ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO a indicar órgão com o qual mantenha convênio de prestação de serviço de assistência jurídica, para que fosse analisada a situação  da pessoa indicada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO (folhas 104/109). Inconformado com o teor dessa Decisão, o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs agravo de instrumento (folhas 130/140), mas sem obter a concessão de efeito ativo (v. Acórdão as folhas 159/160); recurso julgado em 19 de setembro de 2012, negando-se provimento.

                                      Citada, a ré contestou para, sob o argumento de possuir a Defensoria Pública autonomia funcional e administrativa, arguir sua ilegitimidade, acoimando, outrossim, a utilização da ação civil pública, por se revelar meio processual inadequado à discussão do tema. Alega ainda que o serviço de assistência jurídica foi devidamente prestado, com a análise pela Defensoria Pública da situação jurídica de (…) , indicando-se à ocasião que não havia viabilidade jurídica no promover qualquer ação judicial, opção que deve ser prestigiada porquanto estabelecida no contexto da autonomia funcional de que dotada a Defensoria Pública, que não está obrigada a promover ação judicial em todos os casos em que lhe seja solicitada a atuação (folhas 163/169, com documentos as folhas 170/178).

                                      Réplica as folhas 194/210.

                                      Registre-se a interposição pela ré de agravo em forma retida (folhas 179/183), recurso recebido e processado em forma regular (folha 186), com resposta do MINISTÉRIO PÚBLICO as folhas 191/193.

         É o RELATÓRIO.

         FUNDAMENTO e DECIDO.

                                      A relação jurídico-material que forma o objeto desta demanda é exclusivamente de direito, a permitir se a julgue antecipadamente, conforme autoriza o artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao rito da ação civil pública.

                                      Ação civil pública que é azado remédio processual ao fim a que o destinou o MINISTÉRIO PÚBLICO, que é o de trazer ao exame do Poder Judiciário uma  situação em que teria havido omissão estatal na proteção a um direito fundamental de pessoa necessitada; no caso, do direito fundamental à prestação do serviço de assistência jurídica, garantido em nossa Constituição, a conferir legitimidade ao MINISTÉRIO PÚBLICO, para buscar a tutela jurisdicional que possa obrigar o Poder Público a implementar esse direito, se ao final se revelar injustificada a omissão.  A propósito, a doutrina alemã mais recente vem fixando que a administração da Justiça é um bem jurídico-constitucional, por se reconhecer que é por meio do processo judicial que os direitos fundamentais podem ser materializados  (cf. Peter Häberle, La Garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales, p. 15, tradução por Joaauín Brage Camazano, Dyhkinson editorial, Madrid, 2003). Assim, bem caracterizada a adequação da ação civil pública à lide que ela veicula.

                                      O fato de a Defensoria Pública do Estado de São Paulo possuir autonomia financeira e administrativa não lhe confere a personalidade judiciária necessária a que figure como parte na ação civil pública. Assim como ocorre com outros órgãos despersonalizados, caso, por exemplo, do tribunal de contas,  a defensoria pública em Juízo é representada pela Fazenda Pública. Daí a legitimidade passiva da FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO para, em Juízo, responder por ato (omissivo) imputado a seu órgão, no caso, à sua Defensoria Pública. Mantenho assim a Decisão agravada.

                                      Analisa-se o mérito da pretensão, assinalando que, em se alegando a omissão na proteção a um direito fundamental (no caso, o direito fundamental de receber do Poder Público um serviço de assistência jurídica), é indispensável realizar-se um juízo de ponderação, forma engendrada pelo Direito para a solução desse tipo de conflito entre o Estado e o particular.

                                      No juízo de ponderação, analisa-se, assim, se a omissão à proteção de um determinado direito fundamental  configura-se, ou se as circunstâncias do caso em concreto permitem justificar a não prestação pelo Estado de uma conduta em favor do particular. Importante lembrar aqui a distinção consagrada em doutrina acerca  dos direitos fundamentais, separando-os em dois tipos diferentes: de um lado, os direitos fundamentais de defesa, que são aqueles nos quais o particular sofre um indevida ou desproporcionada restrição à sua liberdade por ato do Poder Público, pleiteando o particular ao Poder Judiciário que faça cessar a restrição à sua liberdade; de outro lado, os direitos fundamentais à proteção, que são aqueles em que se configura a omissão estatal, pleiteando o particular nesse tipo de situação que o Poder Judiciário obrigue o Estado a fazer o que ele não fez.

                                      Mas seja para os direitos fundamentais de defesa, seja para os de proteção, aplica-se o mesmo juízo de ponderação, embora seja de se ressaltar que no caso dos direitos fundamentais de proteção, como se exige um determinado comportamento do Poder Público, cabe ao Poder Judiciário atuar com redobrada cautela, evitando obrigar o Público ao que ele, legitimamente,  não estava obrigado a fazer, analisadas as circunstâncias do caso em concreto. O princípio da separação de poderes é de ser sempre lembrado nesse tipo de caso.

                                      No caso presente, trata-se de um direito fundamental de proteção, pois que o MINISTÉRIO PÚBLICO afirma que a ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, deixou, por sua Defensoria Pública, de ajuizar em favor de uma pessoa necessitada uma ação judicial.  Assim, a análise pela ponderação busca identificar se houve ou não de parte do Estado uma injustificada omissão, ou, se ao contrário, não lhe seria de exigir, nas circunstâncias subjacentes, uma outra conduta, diversa daquela  que adotou.

                                      Sob esse enfoque, tem-se a considerar que a Defensoria Pública não está obrigada a ajuizar, sempre e em todos os casos, uma ação judicial. O que se lhe pode exigir é que preste um adequado serviço de assistência jurídica integral, cujo conteúdo não pode ser equiparado ao de lhe impor, sempre, a obrigatoriedade de buscar a tutela jurisdicional, se a sua análise da situação jurídica indicar a inviabilidade de se fazê-lo. Com efeito, a Constituição da República de 1988 conferiu-lhe a autonomia funcional necessária a permitir-lhe uma análise, sob sua ótica, da forma como agir,  do momento em que agir, e ainda, se lhe cabe agir. Aliás, exatamente como sucede em relação ao Ministério Público, que possui a mesma autonomia funcional, não sendo de se obrigar-lhe, portanto, promova uma ação judicial, quando a sua análise da questão recomendar o contrário.

                                      O dever fundamental que ao Poder Público foi fixado pela Constituição da República de 1988 de garantir a todos os efetivamente necessitados um serviço de assistência jurídica integral e gratuita (artigo 5o., inciso LXXIV), deve, pois, harmonizar-se com a autonomia funcional garantia à Defensoria Pública, de modo que se possa lhe obrigar a agir apenas quando as circunstâncias de um caso concreto bem demonstrem que houve uma injustificada omissão à proteção de um direito fundamental, ou seja, que a propositura de uma ação judicial teria, no caso,  grandes chances de contar com êxito.

                                      A discricionariedade administrativa, que envolve a autonomia funcional da Defensoria Pública, deve ser também considerada no juízo de ponderação, não sendo lícito ao Poder Judiciário impor ao Poder Público implemente um direito fundamental quando as circunstâncias do caso em concreto patenteiem que a omissão do Poder Público não é injustificada, encontrando razões suficientes que a legitimem.

                                      No caso em questão, pormenorizou a ré, por sua Defensoria Pública, todas as providências que foram realizadas na análise da situação jurídica de (…), conforme se vê de folhas 225/228, 237/242 e 254/280, que bem evidenciam que ao contrário do que afirma o MINISTÉRIO PÚBLICO, foi prestado em favor daquela um adequado serviço de assistência jurídica, compatível com a situação jurídica daquela pessoa, com a análise do tipo de vínculo jurídico (precário) que ela mantém com a Prefeitura de São Paulo na condição de vendedora ambulante, e de outras circunstâncias do caso em concreto, que, em uma legítima análise de parte da Defensoria Pública, indicam-lhe a não viabilidade de se promover, naquele momento, uma ação judicial. Noticiou a Defensoria, outrossim, que continua a estudar a situação jurídica, atenta que está no andamento de uma ação coletiva que pode eventualmente beneficiar  (…).

                                      Destarte, ao cabo cabe concluir, em um juízo de ponderação, que não se configura a indevida desproteção ao direito fundamental de (…), ao contrário, portanto, do que asseverou o MINISTÉRIO PÚBLICO, cuja pretensão, por isso, é insubsistente, cessada a eficácia da medida liminar, que, aliás, já produziu seus efeitos, na medida em que o serviço de prestação jurídica continua a ser realizado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de (…).

                                      POSTO ISSO, JULGO IMPROCEDENTE o pedido, declarando a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil.

                                      Não há encargos de sucumbência, segundo o que prevê o artigo 18 da Lei Federal de número 7.347/1985.

                                      Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença; o MINISTÉRIO PÚBLICO, pessoalmente.