LITISCONSÓRCIO PASSIVO NO JUIZADO ESPECIAL DE FAZENDA PÚBLICA. NÃO CABIMENTO

O LITISCONSÓRCIO PASSIVO E A LEGITIMIDADE “AD CAUSAM” NO JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA.
Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

1.
A lei federal de número 12.153/2009 – que instituiu o juizado especial da fazenda pública estadual -, em seu artigo 5º. fixou quem pode ser parte nas ações de competência desse juizado: como autor, as pessoas físicas, as microempresas e as empresas de pequeno porte; e como réu, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios, bem como as autarquias, fundações e empresas públicas a eles vinculadas. Há um consenso na doutrina e jurisprudência no sentido de que esse rol é taxativo.

Mas como a Lei 12.153 não veda expressamente a formação do litisconsórcio, e como de resto ele é admitido pelo artigo 10 da Lei federal 9.099/1995 (Lei que é considerada como norma geral no sistema dos juizados), surge a questão: a pessoa física, ou a pessoa jurídica de direito privado, pode ser demandada, como litisconsorte passivo, nas ações de competência do juizado especial de fazenda pública?

Na jurisprudência, o entendimento hoje majoritário é no sentido de que, em se configurando o litisconsórcio passivo necessário, a competência do juizado especial de fazenda pública mantém-se quando estejam a ser demandados um ente público e, como seu litisconsorte, uma pessoa física ou pessoa jurídica de direito privado.

Já no caso do litisconsórcio passivo facultativo, a posição dominante é no sentido de que se deve excluir da ação a pessoa física/jurídica de direito privado por força da aplicação do artigo 327, parágrafo 1º., inciso II, do Código de Processo Civil de 2015, que dentre os requisitos à cumulação de demandas, exige que o juízo seja competente para conhecer de todas as demandas cumuladas. Pois como o juizado especial da fazenda pública não é competente para examinar a relação jurídico-material (de natureza privada) estabelecida entre o autor e a pessoa física/jurídica de direito privado, não se admite o litisconsórcio passivo facultativo em consequência de não se autorizar a cumulação de demandas.

Assim, quando, em uma ação promovida no sistema do juizado especial de fazenda pública, ocorre de o autor litigar também contra uma pessoa física ou jurídica de direito privado, a competência do juizado mantém-se se o litisconsórcio é necessário, e deixa de existir, em parte, no caso de o litisconsórcio ser facultativo, porque nesse caso exclui-se da ação a demanda cumulada contra a pessoa física/jurídica de direito privado, cabendo ao juizado conhecer tão somente da ação proposta contra o ente público.

Segundo a jurisprudência, a diferença de tratamento entre o litisconsórcio passivo facultativo e o necessário decorre de, neste último, a cumulação subjetiva ser indispensável, porque a relação jurídico-material impõe a presença de todos aqueles que se relacionam com o objeto litigioso, sem o que o provimento jurisdicional é de ser declarado nulo, por não poder gerar efeito sobre a esfera jurídica de quem não foi parte no processo. Efetivamente, como observa PONTES DE MIRANDA, o conceito de “litisconsórcio necessário” é extraído diretamente da relação jurídico-material que forma o objeto do processo, de modo que a aplicação do instituto do litisconsórcio passivo necessário ao sistema do juizado especial de fazenda pública, tanto quanto ocorre no processo comum, deve-se à relação jurídico-material, o que permite concluir que nenhum sistema processual pode a princípio excluir o litisconsórcio.

2.
Há, contudo, um importante aspecto até aqui olvidado na análise dessa matéria. É que a condição de litisconsorte somente surge quando a legitimidade “ad causam” esteja previamente caracterizada. De modo que se um determinado sistema processual restringe a condição de parte, como faz o sistema do juizado especial de fazenda pública, não conferindo a condição de parte passiva a uma pessoa física ou jurídica de direito privado, o litisconsórcio passivo, facultativo ou necessário, não pode ser admitido nesse sistema processual, quando o litisconsorte seja uma pessoa física ou jurídica.

Escreveu DINAMARCO em sua famosa obra “Litisconsórcio”, de 1984:

“antes de saber se dois sujeitos poderão estar juntos no mesmo lado da relação processual é preciso saber se cada um deles poderia de algum modo estar em juízo, naquela posição. Essa regra aplica-se a qualquer espécie de litisconsórcio, seja ele facultativo ou necessário, unitário ou comum, ativo ou passivo, inicial ou ulterior”.

No direito brasileiro, PONTES DE MIRANDA foi o primeiro a tratar do tema, ao enfatizar que a análise do cabimento ou não do litisconsórcio somente pode ser feita posteriormente ao exame da legitimidade de parte, cunhando uma frase que bem ilustra essa ideia tão expressiva, e que viria a se tornar citação frequente em todos os processualistas que escreveram sobre o litisconsórcio: “Quem não pode entrar na porta, por faltar-lhe ingresso, não pode entrar indo com outrem”.

Pontifica PONTES DE MIRANDA:

“Quando se trata de saber se cabe, ou não, litisconsórcio, não mais se discute se há a legitimidade de parte, porque, sem essa, não pode haver litisconsórcio: a pessoa não poderia ser legitimada como parte, mesmo para a propositura isolada de ação.
“Assim, antes de se responder a questões como (…) Podem A e B ser litisconsortes? (…) Podem B e C ser citados, como litisconsortes, na ação em que é parte A?. É preciso que se responda a outras questões, que são anteriores: Pode A ser parte? Pode B ser parte? Pode C ser parte”.

Trata-se, como observou DINAMARCO, de um encadeamento lógico desenvolvido por LIEBMAN, que em lugar de examinar o instituto do litisconsórcio isoladamente como fazia a doutrina até então, considerou, na esteira de um estudo publicado por CHIOVENDA em seus famosos “Saggi” (ensaios), que o litisconsórcio decorre da existência de relações processuais com interesses múltiplos em um só processo, mas que isso não exclui que se deva aferir da indispensável presença da legitimidade para a causa de todos aqueles que sejam os titulares desses interesses. Daí a percuciente observação de LIEBMAN quanto a constituir a legitimidade para a causa um requisito prévio e indispensável ao litisconsórcio, ao adscrever que se deve indagar

“se la domanda possa essere proposta nei confronti di uno solo o di alcuni dei titolari del rapporto, oppure se debba essere proposta necessariamente nei confronti di tutti: è, com’è chiaro, um quesito intorno ala legittimazione ad agire”.

Convém registrar que muito embora LIEBMAN estivesse a tratar apenas do litisconsórcio necessário, ele acabaria por descortinar algo essencial e de aplicação a todos os tipos de litisconsórcio (necessário ou facultativo, unitário ou simples, ativo ou passivo), ao afirmar que a legitimação para a causa constitui uma questão prévia ao exame da relações jurídico-processuais que dão origem ao litisconsórcio. Com efeito, o fato de o litisconsórcio necessário radicar diretamente na relação jurídico-material, levou LIEBMAN a concentrar-se detidamente no exame da legitimidade para a causa, por considerar que a relação jurídico-material obriga a que todos os legitimados (ativos e passivos) componham a demanda, a qual não pode ser julgada isoladamente. A partir daí e do avanço dos estudos acerca da ação processual, a doutrina constatou que a legitimidade para a causa não constitui requisito prévio apenas ao litisconsórcio necessário, mas ao facultativo e a todos os tipos de litisconsórcio.

Há, portanto, uma condição “sine qua non” para a formação do litisconsórcio: a de que haja legitimidade para a causa daquele apontado como litisconsorte. E isso ocorre tanto no litisconsórcio necessário, quanto no facultativo, seja ativo, seja passivo, simples ou unitário.

Como diz o processualista italiano, SALVATORE SATTA, a ideia de parte no processo envolve múltiplos problemas, e dentre eles está aquele que se mostra importante no caso do litisconsórcio: é que a condição de parte é de ser analisada também sob o aspecto do tipo de ação utilizado, e não apenas com base na titularidade do direito material invocado no processo. Daí que o legislador pode limitar a condição de parte em um específico sistema processual, como ocorre com a Lei federal 12.153, que de modo expresso fixou quem pode ser parte nas ações do juizado especial de fazenda pública, não conferindo a legitimidade passiva às pessoas físicas e jurídicas de direito privado.

3.
No específico sistema processual instituído pela Lei federal de número 12.153, a dizer, no sistema do juizado especial de fazenda pública estadual, restringiu-se a legitimidade passiva, o que é de ser observado no litisconsórcio passivo, facultativo e necessário. Destarte, a pessoa física ou jurídica de direito privado não pode ser demandada nesse sistema processual – e por não possuir a legitimidade (passiva) para a causa, não pode ser litisconsorte passiva.

Equivocada, portanto, a jurisprudência ao admitir, no sistema processual do juizado especial de fazenda pública estadual, o litisconsórcio passivo (necessário ou facultativo) entre um ente público e uma pessoa física ou jurídica de direito privado, por olvidar do requisito indispensável da legitimidade “ad causam”. Com efeito, como a pessoa física ou jurídica de direito privado não pode ser parte passiva no sistema processual do juizado especial de fazenda pública, não possuindo, portanto, a legitimidade “ad causam”, não pode ser litisconsorte passiva. Conforme a lição de BARBOSA MOREIRA, se a pessoa física ou jurídica de direito privado na pode entrar, como réu, na “porta” do sistema do juizado especial de fazenda pública, por lhe faltar o “ingresso” (a legitimidade passiva), não pode entrar indo junto com o ente público demandado.

Há em cada sistema processual certos aspectos que o particularizam, que o moldam, e que buscam atender a determinados objetivos. No caso do sistema processual do juizado especial de fazenda pública, a simplicidade e a celeridade, que constituem seus princípios nucleares, determinaram ao legislador fizesse um corte na legitimação passiva, com efeitos que se projetaram sobre o litisconsórcio passivo.

Para concluir, importante observar que, inadmitido o litisconsórcio passivo necessário no juizado especial de fazenda pública, a extinção do processo, sem resolução do mérito, por ausência de condição da ação (legitimidade para a causa) é medida de rigor, porque é indispensável, no litisconsórcio necessário, que a ação seja examinada com a presença de todos os envolvidos na relação jurídico-material objeto do litígio, de forma que o juizado especial da fazenda pública não pode separar as lides entre quem pode ser litisconsorte (o ente público), e quem não o pode ser (a pessoa física ou jurídica de direito privado). Solução diversa deverá ser adotada ao litisconsórcio passivo facultativo, porque nesse caso se deve apenas excluir o litisconsorte (a pessoa física ou jurídica de direito privado), por lhe faltar a condição de parte, mantendo-se a ação no juizado para o exame da ação promovida contra o ente público.

1 Comentários ao Código de Processo Civil (de 1973), tomo II, 2ª. ed, 1974, editora Forense.
2 Instituições de Direito Processual Civil, v. II, 5ª. ed, p. 340, Malheiros editores, 2005, São Paulo
3 Comentários ao Código de Processo Civil, tomo II, p. 9.
4 Fundamentos do Processo Civil Moderno, v. II, p. 1205, 5ª. edição, Malheiros editores.
5 Trad.: “se a demanda pode ser proposta frente a um somente ou a alguns dos titulares da relação, ou se deve ser proposta necessariamente em face de todos; é, como é claro, uma questão em torno da legitimidade para agir”. (“Manuale di Diritto Processuale Civile”, I, 3ª. ed, Giuffrè editore, 1973.
6 Direito Processual Civil, trad. Luiz Autuori, v. I, p. 129, editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1973.