Por: Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito e Mestre em Direito-PUC/SP
Sumário: 1. Atuação do poder de polícia e o devido processo legal. 2. A Administração Pública em face dos atos lícitos e ilícitos do particular. 3. A ação cominatória no direito brasileiro. A evolução operada com a adoção da técnica da sentença mandamental. 4. Inadequação da Medida Provisional.
1. ATUAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL.
É da tradição do direito brasileiro – registra MOACYR AMARAL SANTOS em sua obra “Ações Cominatórias no Direito Brasileiro”, hoje infelizmente olvidada –, o entendimento de que a Administração Pública deve valer-se do processo judicial para implementar os atos que sejam decursivos do exercício do poder de polícia e que atinjam diretamente a propriedade privada, sendo-lhe lícito dispensá-lo (o processo) apenas nos casos em que caracterizada uma situação de urgência, para controle da qual lhe é dado atuar diretamente:
“Em verdade, a administração pública se encontra geralmente habilitada a fazer atuar seus atos de polícia pelas vias administrativas, de ordinário eficazes: embargo administrativo da obra, acompanhado de aplicação de multa; noutros casos, multas progressivas, cassações de licença, etc. Tais sejam as hipóteses e as condições, máxime em casos de extrema urgência, ela própria, e ainda pelas vias administrativas, poderá efetuar a demolição da obra, obstruir a vala, destruir a plantação, interditar o prédio, fazer cessar o uso nocivo da propriedade. Mas quando não ocorram estas hipóteses e aqueles remédios não sejam suficientes, porque suas determinações não sejam atendidas pelos particulares sobre os quais incidam, e se veja a administração na contingência de precisar intervir diretamente na propriedade privada, de nenhum modo poderá fazê-lo sem que a isso esteja autorizada por decisão judicial. É isso da tradição jurídica brasileira, desde a época dos juízes almotacés. (…)”.1
Trata-se, caro leitor, de um importante efeito extraído do conteúdo e alcance da regra de matriz constitucional que institui o devido processo legal (CF/1988, art. 5o., LIV), exigindo da Administração Pública submeta, em alguns casos, sua pretensão a um prévio controle jurisdicional. Mais ainda: de uma legitimação do poder pelo procedimento judicial, indissociável estrutura de um regime verdadeiramente democrático baseado na legalidade formal, que assegura ao particular a imparcialidade do juiz contrastada com o interesse (nem sempre público) da Administração Pública, que é colocada no papel de litigante e, como tal, obrigada a aceitar o risco de ter desatendida sua pretensão, o que não se daria, nem se dá quando se lhe permite a execução de seus próprios atos, hipótese em que evidentemente não verá jamais frustrada sua expectativa. Está aqui, aliás, uma importante distinção no plano ontológico entre os processos administrativo e judicial, como demonstra NIKLAS LUHMANN em sua linguagem costumeiramente hermética, mas precisa no que lhe vai subjacente:
“E é nisso que reside a diferença essencial perante os procedimentos judiciais. Perante o tribunal, a situação está de tal forma estruturada que, em cada processo, se paga uma desilusão de que perde um ou outro partido, de que ambos cedem e se põem de acordo. Nestas circunstâncias, vale a pena adaptar o processo à assimilação da desilusão e ao aprendizado. Os procedimentos de decisão programada condicionalmente da administração decorrem, em contrapartida, sem desilusões: cada um propõe o seu rendimento e o observa e não se pode, em geral, prever quais os processos que levam a uma desistência ou são frustrados. Neste estado de coisas, não tem sentido deixar, desde o início, decorrer todos os processos com decisões programadas condicionalmente sob a ficção duma falta de consenso: geralmente deve bastar para o caso da frustração pôr à disposição um processo semelhante ao processo judicial, portanto, só acionar mecanismos de legitimação quando se agudiza o problema da frustração”.2
Para tornar claro o pensamento de LUHMANN, aproveitemo-nos da intelecção que da aludida passagem faz TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, no prefácio da obra desse que é um dos mais importantes sociólogos do direito, traduzida para o português sob o título “Legitimação pelo Procedimento”: “No caso da administração, o processo se repete, com a diferença de que o decididor administrativo encontra meios para tomar suas decisões como se não houvesse decepcionado, remetendo suas condições de possibilidade ao legislativo e ao judiciário”.3 De fato, o “due process of law” impõe limites à Administração Pública, exigindo-se-lhe que em face de um direito com suporte constitucional – como o da propriedade –, aceite, com naturalidade, a idéia de submeter o poder de seu império ao controle jurisdicional: “O fato de a administração dever agir somente no sentido positivo da lei, isto é, quando lhe é por ela permitido, indica a incidência da cláusula due process no direito administrativo. A doutrina norte americana tem-se ocupado do tema, dizendo ser manifestação do devido processo legal o controle dos atos administrativos pela própria administração e pela via judicial. Os limites do poder de polícia da administração são controlados pela cláusula due process”.4
Explica-se, assim, o motivo de o princípio do devido processo legal derivar diretamente de um dogma tão caro a qualquer regime democrático, como é da separação dos poderes, hoje melhor compreendido em seu verdadeiro conteúdo, como demonstram os estudos desenvolvidos pelo constitucionalismo moderno, cuja gênese está em HEGEL.5
Positivamente, tanto mais relevante o direito envolvido no conflito de interesses, quanto menor parece ser o poder concedido à Administração Pública para a auto-executoriedade de seus atos, pois que isso o imporia o princípio do devido processo legal.
Destarte, como o Texto Constitucional de 1988 protege outros direitos, além do da propriedade, como os direitos à livre iniciativa e ao exercício de atividade profissional (artigo 170, inciso IV e parágrafo único), convém indagar se a necessidade do processo judicial a esses direitos também se estende, o que, em caso afirmativo, conduz à conclusão da obrigatoriedade de a Administração Pública utilizar-se do processo judicial quando pretenda interditar estabelecimento comercial sob o fundamento da ausência de licença de funcionamento, vedando-se-lhe a execução direta do ato de poder de polícia. E efetivamente, não é inusual ver-se a Administração Pública socorrendo-se da medida provisional prevista no artigo 888, inciso VIII, do Código de Processo Civil, quando se depara com um estabelecimento comercial instalado irregularmente e com a recalcitrância do particular, que não atende à ordem administrativa de fechamento, para o que, então, busca a Administração Pública a tutela jurisdicional que determine essa providência de natureza prática.
A questão que nesse contexto exsurge radica na análise da adequação (sob o aspecto processual) da medida provisional ao fim a que a destina o Poder Público (interdição de prédio comercial), não se controvertendo, neste trabalho, quanto aos limites da autotutela. Eis o tema aqui tratado.
2. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM FACE DOS ATOS LÍCITOS E ILÍCITOS DO PARTICULAR.
No regime do Código de Processo Civil de 1939, ao Poder Público permitia-se a propositura da ação cominatória para pedir a suspensão ou demolição da obra que contravenha a lei, regulamento ou postura. Era o que dispunha o artigo 302, inciso XI, daquele Diploma. Perscrutando o alcance do aludido dispositivo legal, defendia MOACYR AMARAL SANTOS a posição de “que os atos de polícia edilícia ou sanitária, no sistema brasileiro, não são executáveis diretamente e por força da própria administração de que provêm, mas sujeitos a controle preventivo do órgão jurisdicional” – e que, assim, tais atos somente se revestiriam de auto-executoriedade quando, “tendo em atenção à natureza do interesse público ameaçado, disponham sobre providência manifestamente urgente, hipótese em que a administração poderá, por força própria, dar-lhes execução por via administrativa”.6
Decerto, se sob o regime do Código de Processo Civil de 1939 – que previa a existência da ação cominatória –, afigurava-se válido obtemperar que o Poder Público, fora dos casos de urgência, deveria se socorrer da tutela jurisdicional para implementar providência apontoada no poder de polícia, se configurada a recalcitrância do particular, agora, em face do Código de Processo Civil em vigor (que aboliu o processo cominatório, pelo menos nos moldes em que estava delineado no Código anterior), terá lugar essa mesma conclusão? Ou seja: o Poder Público, no regime atual, em caso que não se configure a urgência, tem o direito de, ele próprio, “manu militare”, concretizar o ato administrativo decorrente do exercício do poder de polícia, ou lhe será mister socorrer-se da medida provisional, ou ainda de outra medida processual mais adequada, como a tutela específica para a obrigação de fazer, acolhida no artigo 461 do Código de Processo Civil a partir da nova redação que lhe foi dada pela Lei Federal número 8952/1994? E a urgência, seria ela, de fato, o critério a discrepar as situações em que o Poder Público poderia concretizar o efeito prático do ato administrativo dotado de auto-executoriedade, daquela em que não o poderia?
Para o desimplicar dessas questões e de outras que o tema provoca (como a que toca com a natureza da ação cominatória, objeto do próximo item), é indispensável considerar a diferenciação de regime que envolve a análise da validez, em face de um determinado direito positivo, do ato jurídico do particular, reclamando-se-lhe uma prévia qualificação como lícito ou ilícito, a partir do que a Administração Pública poderá ou não executar diretamente ato de poder de polícia. A questão, portanto, está localizada em um campo puramente dogmático.
De relevo anotar que a ação cominatória, no regime do Código de 1939, comportava a concessão de medida liminar para a situação de urgência. Dispunha o artigo 305 que: “Se na inicial ou no curso de ação cominatória que intentar, a União ou o Estado ou o Município alegar urgência, verificada por perito, executar-se-á incontinenti a providência requerida, ressalvando-se ao réu, na sentença final, o direito a indenização”. Ora, para a situação de urgência, como enfatizava MOACYR AMARAL SANTOS, não havia, no sistema do Código de 1939, a necessidade de o Poder Público valer-se do processo judicial para dar consecução prática a ato de poder de polícia, o que tornaria, consequentemente, inócuo esse dispositivo, porque desnecessária, diante da circunstância caracterizadora da emergência, o ajuizamento da ação judicial. A propósito, a emenda de número 80, da autoria do Deputado José Bonifácio Neto, que fez introduzir o inciso VIII ao artigo 888 do Código de 1973 (no Projeto, artigo 908, inciso VIII), esteava sua argumentação exatamente na necessidade de se dotar o Poder Público de um instrumento processual eficaz e consentâneo a situações de urgência, para o que se engendrava a figura da medida provisional. Confira-se:
“Extinguindo a ação cominatória, não contém o Projeto regra assimilável à do art. 305 do Código atual, que permita a execução urgente, imediata, de providências como a demolição de prédio em estado de ruína iminente e outras análogas. A sede própria para a disciplina da matéria é o artigo 908, que prevê medidas provisionais, de natureza cautelar, determináveis na pendência da ação principal ou mesmo antes da sua propositura. Entre essas medidas não pode deixar de figurar as que ora se recordam, destinadas a proteger a saúde, a segurança e outros relevantes interesses públicos.“ (“Código de Processo Civil – Histórico da Lei”, volume I, tomo I, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas).
Mas se nota aí um evidente paradoxo, porquanto o Poder Público, em caso de urgência, não precisaria, segundo entendia a doutrina processual, socorrer-se da tutela jurisdicional para dar execução a ato administrativo decorrente do poder de polícia; mas, ao mesmo tempo, o Ordenamento Processual contemplava a possibilidade de concessão de medida liminar para a hipótese de urgência, o que pressupunha não pudesse a Administração Pública, ainda em face da urgência, dispensar o processo judicial.
A urgência, portanto, não pode ser a pedra de toque a diferenciar as situações. Outro deve ser o critério.
Como é cediço, no Estado de Direito todos se subordinam ao império da Lei; assim também o Estado, o qual por isso sofre limitações ou restrições de ordem legal, que lhe obstam a auto-execução de determinados atos, quando sua realização provoca conflito com direitos constitucionalmente assegurados em favor do particular, a quem é concedido o direito ao devido processo (judicial) legal.
Em razão dessas limitações ou restrições, o Estado, da mesma forma como sucede com o cidadão, deve valer-se do direito de ação processual para a implementação de efeitos práticos de certos atos. A respeito, diz FREDERICO MARQUES, com a segurança habitual: “Esse direito à prestação jurisdicional do Estado, que o texto constitucional garante ao indivíduo, estende-se também ao próprio Estado, sempre que restrições a atividades de ordem administrativa que se realizam no interesse geral não permitam a auto-execução de determinados atos e funções, limitando, destarte, o poder de autodefesa que lhe é inerente. (…)”.7
Dentre os poderes administrativos, sobreleva o poder de polícia, que, segundo a consagrada definição de HELY LOPES MEIRELLES, é a “faculdade de que dispõe a Administração para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.8 É por meio do poder de polícia que o Estado condiciona, restringe ou impede a atividade dos particulares que se manifeste contrária à Lei, nociva ou inconveniente ao interesse público.
Mas, o ordenamento jurídico, como é de sobejo conhecido, não regula todas as condutas dos particulares. Há um espaço de liberdade que é deixado sem regulamentação. É o que KELSEN chama de “mínimo de liberdade”:
“A liberdade que, pela ordem jurídica, é negativamente deixada aos indivíduos pelo simples fato de aquela não lhes proibir uma determinada conduta, deve ser distinguida da liberdade que a ordem jurídica positivamente lhes garante. A liberdade de uma pessoa que assenta no fato de uma determinada conduta lhe ser permitida, por não ser proibida, é garantida pela ordem jurídica apenas na medida em que esta prescreve às outras pessoas o respeito desta liberdade, isto é, proíbe a conduta pela qual alguém é impedido de realizar uma conduta que lhe não é interdita e, neste sentido, lhe é permitida. Somente então pode a conduta não proibida – e, neste sentido negativo, permitida – valer como direito, isto é, como conteúdo de um direito que é o reflexo de uma obrigação que lhe corresponde.”9
A conduta praticada pelo indivíduo dentro desse “mínimo de liberdade” não é contrária à Lei; ela é permitida negativamente, ainda segundo a denominação de KELSEN. E porque a ordem jurídica não a proíbe, a conduta do particular é, nesse caso, livre.
Mas, em face de uma conduta negativamente permitida é possível a existência de um conflito de interesses. Pontifica KELSEN:
“Se não é proibida (e, neste sentido, é permitida) a conduta de um indivíduo que é contrária à conduta de um outro indivíduo também não proibida (e, neste sentido, permitida), é possível um conflito face ao qual a ordem jurídica não toma qualquer disposição. Esta não procura evitá-lo, como o faz relativamente a outros conflitos, proibindo a conduta de um indivíduo que é contrária à do outro – ou, por outras palavras, proibindo a realização do interesse de um que é contrário ao interesse de um outro. A ordem jurídica não pode, de forma alguma, procurar impedir todos os conflitos possíveis.10
Assim, ao condicionar ou restringir uma determinada atividade, poderá o Estado deparar-se com uma conduta negativamente permitida ao particular pelo ordenamento jurídico, mas que se revela incompatível com o interesse público. Surgindo, nessas circunstâncias, um conflito, deverá este ser resolvido pelo Poder Judiciário, que fixará, no caso concreto, qual o interesse juridicamente a proteger-se, vedando-se à Administração Pública a auto-executoriedade do ato administrativo. Consideremos, a título de hipótese, a seguinte situação, cotejando-a com o nosso direito positivo: a poda de árvores que estejam em área próxima a um aeroporto, e que em face da altura que atingiram, criem problema para a segurança de vôo. Se o particular obstaculizar a ação da Administração, impedindo o corte dessas árvores, o Estado não poderá executar por si a poda, cabendo-lhe provocar a atuação jurisdicional. É que a conduta de plantar árvores em propriedade particular não é, no Brasil, ilícita; assim, como a Lei não a proíbe, essa conduta é tida como permitida (negativamente regulamentada), somente cedendo passo se o determinar o Poder Judiciário, no exercício da atividade jurisdicional.
Outra, contudo, deverá ser a solução se o ordenamento jurídico regular determinada conduta do particular, proibindo-a num sentido positivo; o Estado, então, poderá, exercendo o poder de polícia, impedi-la, sem a necessidade de submeter sua pretensão a prévio controle pelo Poder Judiciário. Nesse caso, a Lei garante ao Estado, para a proteção do interesse público, a autodefesa em face de um ato ilícito, independentemente de caracterizar-se, ou não, uma situação de urgência.
É certo que a reação ao ato ilícito, em um regime democrático como o nosso, está centralizada cada vez mais na atuação do Poder Judiciário, como órgão dotado do poder para composição, à luz da lei e dos demais mecanismos de integração jurídica, dos conflitos de interesses. Mas ainda assim subsiste, inevitavelmente, um mínimo de autodefesa, que é concedido tanto ao particular (malgrado em escassos casos, como, por exemplo, na legítima defesa e no poder de correção do pai em relação ao filho), e especialmente ao Estado, prevalecente o interesse público, a justificar, assim, a auto-executoriedade, que, segundo HELY LOPES MEIRELLES, é “faculdade de a Administração decidir e executar diretamente a sua decisão por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário”, – como atributo do poder de polícia.
Daí que diante de uma conduta lícita, surgindo o conflito de interesses, a Administração Pública terá obrigatoriamente que se socorrer do direito de ação para buscar do Poder Judiciário a tutela jurisdicional que lhe permitirá condicionar, restringir ou impedir a atividade lícita do particular, porque diante desse tipo de conflito (de interesses acolhidos pelo ordenamento jurídico), a lei não indica, “a priori”, qual deva ser o interesse juridicamente protegido, e qual aquele que deve curvar-se. Se a conduta, entretanto, revela-se ilícita, a autodefesa garantirá à Administração Pública, independentemente da urgência, a executoriedade direta do ato administrativo, transferindo-se ao particular o direito de provocar o controle jurisdicional da questão que envolve a violação de sua esfera jurídica, para mantê-la (em favor da Administração Pública), ou para rechaçá-la, porque ilegal, reconhecido, então, em favor do particular o direito subjetivo de não suportar a ação da Administração Pública.
Vejamos o que a respeito afirma HELY LOPES MEIRELLES em seu “Direito de Construir”:
“A auto-executoriedade do ato de polícia administrativa é hoje reconhecida uniformemente pela doutrina. Quando se diz que o ato de polícia é auto-executório, pretende-se significar que ele traz em si mesmo a possibilidade de execução direta e imediata pela Administração. Em regra, para a prática do ato de polícia administrativa não há necessidade de prévia apreciação e decisão judiciária. A Administração fá-lo executar com seus próprios meios, garantida pela força pública, se necessário, ainda que o ato importe em apreensão ou destruição de coisas, embargo de construção, demolição de obras, interdição de atividade e o que mais se contiver na competência da autoridade administrativa que o determina.
“(…)
“Nem se opõe a essa conclusão o disposto nos arts. 287, 934 e 936 do Código de Processo Civil, uma vez que o pedido cominatório concedido ao Município é simples faculdade para acertamento judicial prévio das relações entre o particular e o Poder Público, se assim o desejar a Administração. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal, concluindo que no exercício regular da autotutela administrativa, pode a Administração executar diretamente os atos emanados de seu poder de polícia, sem utilizar-se de pedido cominatório que é posto à sua disposição em caráter facultativo”.11
Com efeito, diante de uma conduta ilícita, inverte-se a posição ativa: é ao particular, prejudicado pelo ato administrativo, que competirá utilizar-se do processo judicial, se quiser validamente resistir à conduta da Administração Pública. Ainda o publicista HELY LOPES MEIRELLES, explicitando agora a gênese e a essência que dão azo à diversidade de regimes. Note-se que não há nenhuma alusão à necessidade de que se configure uma situação de urgência para conceder-se à Administração Pública o poder de agir diretamente:
“Ao particular que se sentir ofendido pelo ato de polícia da Administração é que cabe recorrer ao Judiciário, uma vez que não pode fazer justiça por suas próprias mãos. E sobejam razões para essa diversidade de tratamento entre o particular e o Poder Público, porque aquele cuida egoisticamente de seus direitos e este tutela ou deve tutelar, altruisticamente o interesse da coletividade. Daí a judiciosa ponderação de Seabra Fagundes de que ‘a atividade administrativa resultaria inútil, às mais das vezes, e interesses dos mais relevantes seriam preteridos irremediavelmente, se, à simples oposição do sujeito passivo das obrigações públicas, carecesse o administrador de meios coercitivos imediatos para removê-lo. O próprio conceito de Poder Público leva à explicação dessa excepcional faculdade de exigir coativamente, por ato próprio e diretamente do administrado, o cumprimento sumário das prestações de que seja devedor”.12
De resto, o Estado, em decorrência do mínimo de autodefesa que o Ordenamento Jurídico assegura-lhe, pode executar diretamente o ato administrativo decorrente do poder de polícia, sobretudo em face do que dispõe o artigo 37, “caput”, da Constituição da República, com a nova redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de número 19, que acentua o predicado da eficiência, pelo qual deve conduzir-se a Administração Pública no exercício das atividades que lhe são confiadas. Eficiência que pode ser interpretada sob dois sentidos: um, que se liga à qualidade da atividade exigida do Poder Público (e que envolve também a presteza), e outro, no sentido do custo econômico, que será evitado, na medida em que os custos do processo judicial não existirão (porque desnecessário), salvo se lhe sobrevier a sucumbência na ação que lhe promover o particular.
Poder-se-ia pretextar com a aplicação do princípio do devido processo legal e com a proteção que por ele se concede ao particular quanto aos direitos de matriz constitucional, para, assim, vedar-se à Administração Pública a auto-executoriedade de seus atos. Mas acolhido esse entendimento, e desde logo surgiria um momentoso problema: é que se afiguraria difícil imaginar uma situação em que o exercício do poder de polícia pela Administração Pública não atingiria concretamente a esfera jurídica do particular; além disso, considerando a extensão numérica de direitos que o nosso Texto Constitucional de 1988 contempla, não se mostraria tarefa fácil a de encontrar uma situação que não envolveria, ainda que reflexamente, um direito constitucionalmente assegurado em favor do particular. Obrigar-se a Administração Pública, pois, a invocar, sempre, o controle jurisdicional, mesmo a despeito da prática pelo particular de um ato ilícito, é dificultar, senão suprimir a eficiência, pela qual a atividade de Administração Pública deve nortear-se.
A solução está em um raciocínio jurídico razoavelmente simples, e que se caracteriza pela obviedade em que vazado: é curial que, em se tratando de ato ilícito, nenhum direito ao particular assiste, ou pelo menos a Administração Pública não está obrigada a reconhecê-lo, senão no momento em que o Poder Judiciário declarar, no exercício da atividade jurisdicional, sua efetiva existência, quando se transmudará em ato válido. A dizer: se configurado o ato ilícito, é porque ausente está o direito.
3. A AÇÃO COMINATÓRIA NO DIREITO BRASILEIRO. A EVOLUÇÃO OPERADA COM A ADOÇÃO DA TÉCNICA DA SENTENÇA MANDAMENTAL.
A poucos processualistas, senão àqueles de espírito mais arguto, é dado notar que a ação cominatória constitui espécie do gênero “processo monitório”, cuja gênese está ligada à necessidade imposta pelo comércio jurídico (que reclama rapidez e economia) de que não se retarde injustificadamente, no processo, o cumprimento de uma obrigação.13 Dentre esses processualistas, destaca-se MOACYR AMARAL SANTOS, que na obra mencionada (“Ações Cominatórias”), surgida na década de cinqüenta, delineou, à luz do Código de Processo Civil então em vigor (de 1939) e denotando ter alcançado a madureza de seu pensamento processual,14 a relação entre os processos monitório e cominatório, como formas de tutela processual, pelas quais é possível abreviar-se, com utilidade, o momento da execução das obrigações em geral: “Não obstante as duas aludidas particularidades do processo cominatório – destinar-se ao adimplemento de obrigações de fazer ou não fazer e ser o mandado acompanhado de cominação de pena – que de leve o diversificam do processo monitório europeu contemporâneo, aquele com este se confunde na mesma categoria processual, tanto pelas razões que aconselham a sua instituição e pela função que desempenham, como ainda porque, em sua estrutura, se assinalam os mesmos caracteres que os distinguem dos demais processos”.15
A doutrina, atenta às idiossincrasias e vicissitudes do direito material no campo das obrigações, manifestadas na casuística dos tribunais, concebeu uma azada técnica a permitir a imediata execução de um direito, cuja existência ainda não se podia, com certeza, confirmar-se, malgrado se pudesse tê-lo como verossímil, adotando-se para tal objetivo uma figura semelhante ao do “processus executivus”, criação do processo medieval italiano,16 tendo a história reservado, nesse campo, um papel de destaque ao gênio sistematizador de CHIOVENDA, a quem coube a primazia de depreender de que forma a tutela jurisdicional poderia quadrar com a efetividade, reclamada pelo comércio para a proteção das obrigações do direito material. Bastou-lhe, com efeito, dar-se conta de que o tempo é elemento da vida, mas também é vital elemento do processo, e que o seu tempo próprio (que é o da duração da existência do processo), pode, se muito extenso, acabar aniquilando o direito material, para cuja proteção ele, o processo, foi criado. É que assim como sucede com uma narrativa literária em geral, o processo (que, aliás, é também uma espécie de narrativa – uma narrativa sob uma dicção jurídica de um fenômeno sociológico), possui dois tipos de tempo: o seu tempo próprio e efetivo, que é o da sua existência, e o tempo da relação material que é seu objeto.17 Daí que se esses dois tempos – o da existência do processo e o da relação material –, podem ser diversos, é possível prever que se o tempo do processo for consideravelmente longo, superando um tempo razoável para a solução da relação material, corre-se o risco de obliterar-se o principal predicado que o processo como instrumento de tutela deve apresentar: o da efetividade.
Em face desse importante obstáculo, atinou a processualística, no século XX, para uma eficaz solução, radicada na incoincidência temporal entre o trânsito em julgado e a execução, antecipando-se esta por meio dos processos de cognição sumária com prevalecente feição executória, como observa CHIOVENDA: “Temos, pois, aí, uma ação executória sem que conste direito a prestação; uma ação que não equivale à mera possibilidade de agir, concedida, com vimos, a todos, mas um direito atual concedido a determinada pessoa e consistente no poder de obter a execução, pôsto que, afinal, possa resultar que o direito à prestação não existe”.18
Aqui um parêntese: sem o perceber, CHIOVENDA, ao desmistificar o dogma que vinha do direito romano, baseado na insuperável necessidade de que o processo de conhecimento deveria ultimar-se para, somente então, iniciar-se o processo de execução, contribuía de modo significativo para que o tema da sentença mandamental deixasse de ser uma questão puramente acadêmica, para transformar-se no grande aliado do processualista na luta pela efetividade. As técnicas da tutela de emergência (tutela antecipatória para provimento condenatório e tutela específica para as obrigações de fazer e de não-fazer) decorrem, com efeito, exatamente daquela embrionária idéia do inventivo processualista italiano.
Daí a experiência adotada em várias legislações, centrada nos processos com cognição sumária e função executiva, o que ensejou a utilização do processo monitório para as obrigações de dar, e do processo cominatório para as obrigações de fazer e de não-fazer, como sucedeu no direito alemão,19 no direito italiano,20 e ainda no direito brasileiro,21 o qual adotou, ao tempo em que estiveram em vigor entre nós as Ordenações do Reino, o processo monitório sob a denominação de “ação decendiária” (também chamada de “assinação de dez dias”), criação genuína do foro português,22 depois extinto com a entrada em vigor do Código de 1939,23 mas novamente incorporado ao direito positivo brasileiro com a entrada em vigor da Lei Federal de número 9079/1995, colmatando, assim, lacuna do nosso direito, que à oportunidade já acolhia, como técnica de tutela diferenciada, a tutela jurisdicional antecipatória (Código de Defesa do Consumidor, artigo 84; CPC, artigos 273 e 461).
Esquadrinhando o Código de Processo Civil brasileiro em vigor, nomeadamente com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei Federal de número 8952/1994, vê-se que a exemplo do que se dava com o Código anterior, o Legislador ideou uma ação especial para as obrigações de fazer e de não-fazer, com um tipo de tutela jurisdicional diferenciada: no Código de 1939, a ação monitória; no Código de 1973, a tutela específica (artigo 461), dotando-a de provimento mandamental, mais consentâneo com as exigências advindas do direito material.
O que nos leva a concluir que, com a extinção da ação cominatória como ação de procedimento especial, deparou-se o Legislador com um escolho diante da necessidade de prever mecanismos processuais para a solução de situações de direito material, que antes tinham lugar sob aquela forma (a da ação cominatória); era o caso da demolição e da interdição pelo Poder Público. A idéia foi a sua inclusão (“estranha inclusão”, disse OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA ),24 entre as medidas provisionais (CPC, artigo 888, inciso VIII), cujo objetivo, contudo, não é o de assegurar, senão desde logo satisfazer, o que as descaracterizam como medidas cautelares.25
4. INADEQUAÇÃO DA MEDIDA PROVISIONAL.
O processualista HUMBERTO THEODORO JUNIOR, ao cuidar, em sua conhecida obra “Processo Cautelar”, das medidas provisionais relacionadas no artigo 888 do Código de Processo Civil, em especial a de interdição ou demolição de prédio, dá-nos notícia de que no regime do Código de Processo Civil de 1939, “a interdição ou demolição de prédio, para resguardar a saúde, a segurança ou outro interesse público era objeto de ação especial de mérito – a ação cominatória — que competia com exclusividade aos Poderes Públicos (art. 302, no. XI)”.26 De fato, como vimos, o artigo 302, inciso XI, do Código de Processo Civil de 1939, dispunha que competia a ação cominatória à União, ao Estado ou ao Município para pedir “a suspensão ou demolição da obra que contravenha a lei, regulamento ou postura.”. E o artigo 305 daquele Código autorizava a concessão de medida liminar, desde que comprovada urgência.
Mas, a partir da edição do Código de Processo Civil de 1973, abolida a ação cominatória como procedimento especial, a matéria foi regulada dentre os procedimentos cautelares, malgrado sua feição, evidentemente não-assecuratória, não se mostrar consentânea com eles. Com efeito, pontifica HUMBERTO THEODORO JUNIOR: “(…) Para a emergência de a demolição ou a interdição assumir feições de urgência ou inadiabilidade, prevê o novo Código a medida cautelar do art. 888, no. VIII, que possibilita sua concretização provisória antes do julgamento da ação principal a exemplo do que se passava com a antiga ação cominatória na hipótese do velho art. 305.”27
Destarte, na sistemática do Código de Processo Civil de 1973, a medida provisional de interdição ou demolição de prédio é satisfativa. É o que afirmam os processualistas em sua grande maioria, com apoio na jurisprudência dominante: “(…) tanto a demolição, como a interdição têm nítido caráter satisfativo e não simplesmente cautelar. Embora regulado entre as medidas cautelares, esse provimento não deixa de ser satisfativo de direito substancial, pois o deferimento da medida, na verdade não se faz para servir a outro processo, mas sim diante de um julgamento que reconhece desde logo a nocividade do uso da propriedade e a necessidade de fazê-la cessar em definitivo.”28
Tem-se considerado, outrossim, que a medida provisional prevista no artigo 888, inciso III, do Código de Processo Civil, não pode ter por fito empecer o exercício de atividade comercial,29 a robustecer a inadequação dessa medida no caso de o Poder Público pretender impor a interdição de estabelecimento comercial, para o que lhe é dado intervir diretamente, ainda que não configurada uma situação de urgência.
Do que aí fica recolhido, tem-se:
- que o Poder Público não está obrigado a submeter a prévio controle jurisdicional a validez de ato administrativo de poder de polícia, se configurado ato ilícito do particular, revelando-se inadequada, por conseqüência, a utilização da medida provisional (CPC, artigo 888, inciso VIII), se proposta com esse objetivo;
- que caracterizado o ato ilícito na conduta do particular que instala, sem obter prévia licença, estabelecimento comercial, pode a Administração Pública, ainda que inexistente uma situação de urgência, impor-lhe diretamente as penalidades que a lei preveja – como a de interdição, por exemplo –, transferindo-se ao particular a iniciativa de socorrer-se do processo judicial.
1 Ações Cominatórias no Direito Brasileiro, 2o. tomo, p. 693, 2a. tiragem, Max Limonad, 1958, São Paulo.
2 Legitimação pelo Procedimento, p. 170, tradução por Maria da Conceição Côrte-Real, Editora Universidade de Brasília, 1980.
3 Legitimação pelo Procedimento, p. 4.
4 Cf. Nelson Nery Junior, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, p. 38, RT, 6a. edição, São Paulo, 2000.
5 Cf. Princípios da Filosofia do Direito, item 272, p. 244-246, Martins Fontes, 2000, São Paulo.
6 Ações Cominatórias no Direito Brasileiro, 2o. tomo, p. 687.
7 Instituições de Direito Processual Civil, v. II, p. 23, Forense, 4a. edição, Rio de Janeiro.
8 Direito Administrativo Brasileiro, p. 110, RT, 15a. edição, São Paulo.
9 Teria Pura do Direito, p. 46, Martins Fontes, São Paulo, 1994. O tema foi por Kelsen retomado em sua obra póstuma, Teoria Geral das Normas, mas sem apresentar variação de posicionamento.
10 Teoria Pura do Direito, p. 46/48.
11 Direito de Construir, p. 91-92, 3a. edição, RT, 1979, São Paulo.
12 Direito de Construir, p. 92.
13 E foi exatamente por meio da preocupação do processo com a tutela das obrigações que se operou uma verdadeira aproximação entre o direito processual e o direito material.
14 Pelo que deu a conhecer em sua “Introdução ao Estudo do Processo Cominatório no Direito Brasileiro”, obra publicada em 1953 pela editora Max Limonad.
15 Ações Cominatórias no Direito Brasileiro, 1o. tomo, p,. 150-151. Ressalve-se que em passagem anterior, na mesma obra, Moacyr Amaral Santos afirmara que o processo cominatório não se podia incluir entre os monitórios (p. 145).
16 Cf. Enrico Tullio Liebman, in Instituições de Direito Processual Civil, v, 1, p. 243-244, nota 4, Saraiva, 1969, São Paulo.
17 Utilizo-me aqui, como uma espécie de paráfrase, de uma passagem do conhecido livro de Thomas Mann, “A Montanha Mágica” (cap. VII, “Passeio pela Praia”), p. 653-654, Círculo do Livro.
18 Instituições de Direito Processual Civil, v. 1, p. 235.
19 Cf. Friedrich Lent, Diritto Processuale Civile Tedesco, p. 331, Morano Editore, 1962, Napoli.
20 Cf. Salvatore Satta, Direito Processual Civil, v. II, p. 687, tradução por Luiz Autuori, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1973.
21 Cf. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil [de 1939], v. III, p. 93, Forense, 1948.
22 Cf. José Rogério Cruz e Tucci, Ação Monitória, p. 33, RT, 1995.
23 Registre-se que no regime dual de competência em matéria processual, instalado a partir da Constituição de 1891, a ação decendiária foi mantida por alguns Códigos Estaduais, como o de São Paulo, por exemplo.
24 Do Processo Cautelar, p. 550, 2a. edição, Forense, Rio de Janeiro, 1999.
25 Cf. Alfredo de Araújo Lopes da Costa, Medidas Preventivas, p. 110 e 123, 3a. edição, Sugestões Literárias, 1966, São Paulo.
26 Processo Cautelar, p. 404, 12a. edição, Leud, 1990, São Paulo.
27 Processo Cautelar, p. 404.
28 TJSP, Agr. no. 89.423-1, rel. Godofredo Mauro. E dessa posição não tem discrepado o STJ: REsp no. 29.633/SP, rel. Ministro Antonio de Pádua Ribeiro.
29 Cf. STJ: Resp. no. 39.071/SP, rel. Hélio Mosimann.