OS IMPOSTOS REAIS E A PROGRESSIVIDADE FISCAL

SUMÁRIO: 1- INTRODUÇÃO. 2- A NATUREZA JURÍDICA DO PRESSUPOSTO DO FATO IMPONÍVEL E SUA DESTACADA IMPORTÂNCIA NA COMPREENSÃO DA ESSÊNCIA DA RELAÇÃO TRIBUTÁRIA. 3- O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E A TÉCNICA DA PROGRESSIVIDADE FISCAL: SUA APLICAÇÃO AOS IMPOSTOS REAIS.

1. INTRODUÇÃO

Com a edição da Emenda Constitucional de número 29, em setembro de 2000, voltou à carga, entre nós, uma discussão que se iniciara nomeadamente em 1991,1 quando o Supremo Tribunal Federal declarara, em sede de recurso extraordinário,2 a invalidez de lei municipal3 que instituíra o regime da progressividade fiscal para o IPTU – Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana. Sob color, pois, de que a Constituição da República de 1988 acolhera a classificação dos impostos em pessoais e reais, decidiu o Supremo Tribunal Federal, àquela ocasião, que o IPTU, porque “inequivocadamente um imposto real”, não poderia suportar o regime da progressividade fiscal, técnica reservada apenas aos impostos de natureza pessoal, aos quais o princípio da capacidade contributiva, assim, aplicar-se-ia. Acentuara o Ministro MOREIRA ALVES, de quem partira o voto condutor para o posicionamento então acolhido por aquele Tribunal, que a expressão “sempre que possível”, abarcada na redação do artigo 145, parágrafo 1º, da Carta de 1988, deveria ser entendida de forma que se excluíssem da progressividade fiscal os impostos reais, como o IPTU.

Cifrou-se esse julgamento na idéia de que a progressividade fiscal não poderia incidir sobre os impostos reais, porque nestes não se levaria em consideração a pessoa do sujeito passivo. Daí a dicção empregada no v. Aresto, no sentido de que “no sistema tributário nacional, é o IPTU inequivocadamente um imposto real, porquanto tem ele como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado na zona urbana do Município, sem levar em consideração a pessoa do proprietário, do titular do domínio útil ou do possuidor, tanto assim que o Código Tributário Nacional ao definir seu fato gerador e sua base de cálculo não leva em conta as condições da pessoa do sujeito passivo. (…)”.4

Deu-se a esse posicionamento livre curso para, assim, cristalizar na jurisprudência brasileira a tese de que a técnica da progressividade fiscal não poderia alcançar os

1 Antes disso, em 1975, o Supremo Tribunal Federal apreciara a progressividade do imposto territorial urbano implantada pelo Município de Americana, Estado de São Paulo (Lei Municipal de número 614/1964), e que se baseava na utilização de um adicional variável ou progressivo para os proprietários de mais de um lote. Naquele julgamento, entendeu o Supremo Tribunal Federal, por maioria de seus Ministros, vencido o insigne ALIOMAR BALEEIRO, que a Lei em questão, ao criar um imposto adicional ao imposto territorial, violava a competência tributária destinada aos Municípios. Assim, embora a questão da progressividade tivesse sido ventilada nesse julgamento, nomeadamente em face do posicionamento do Ministro ALIOMAR BALEEIRO, a decisão pela invalidez da mencionada lei municipal foi esteada noutro argumento: no da invasão de competência tributária conferida à União Federal. A Súmula de número 589, editada pelo mesmo Supremo Tribunal Federal, consubstancia esse posicionamento.

2 RE nº 153.771, Relator Ministro MOREIRA ALVES.

3 Lei de número 5641/1989, do Município de Belo Horizonte.

4 RE nº 153.771.

impostos classificados como reais, salvo na hipótese em que a progressividade tivesse um fim extrafiscal (Constituição de 1988, artigo 182, parágrafo 4o., inciso II).

Assentado esse entendimento na jurisprudência, era natural que a doutrina brasileira suportasse o mesmo influxo. Chegou-se, assim, a estádio em que não se discutia seriamente a questão, pacificada no dogma segundo o qual a progressividade fiscal não poderia ser técnica a empregar-se nos impostos reais, como no caso do imposto predial. Apenas alguns tributaristas brasileiros cuidaram de objetar, mas o fizeram sem consistência, ora defendendo a idéia de que a classificação dos impostos em reais e pessoais não era uma classificação jurídica e que por isso não se prestava a nenhum fim,1 ora para sustentar que a progressividade fiscal serviria apenas como uma forma de compensação ou retribuição em um sistema em que imperasse a justiça fiscal, dês que prevalecente o princípio da capacidade contributiva.2

Que se trata o IPTU, na conformação que lhe dá o Sistema Tributário Nacional, de um imposto real, não se pode por toda a evidência controverter. Nesse tipo de imposto, como pontifica o insuperável tributarista alemão ALBERT HENSEL, o Legislador considera como prevalecente a unidade econômica (a propriedade, por exemplo), que como tal influi em modo decisivo sobre o lado objetivo da “fattispecie”, ao contrário do que se dá com o imposto pessoal, cuja conformação atinge uma determinada pessoa.3 Desse modo, como o imposto predial, na forma como está regulado no Sistema Tributário Brasileiro, tem seu fato gerador sobre a propriedade de bem imóvel, é de se concluir que o Legislador considerou em primeiro lugar, na estrutura de sua hipótese de incidência, um dado objetivo, que é a propriedade (transformado, assim, em um signo presuntivo de capacidade contributiva), o que permite, sem óbice, classificá-lo como um imposto real.

Mas daí não se pode deduzir a conclusão, defendida pela maioria da doutrina nacional como se se tratasse de um princípio dogmático, que a progressividade fiscal com os impostos reais não seja consentânea. Esse equívoco tem sua gênese na imprecisão conceitual que envolve, de um lado, a natureza jurídica do pressuposto de fato do tributo, e de outro, a compreensão do que, em essência, é a relação jurídica que existe entre o fisco e o sujeito passivo do tributo.

Partindo, pois, de uma imprescindível análise ontológica do pressuposto do fato imponível, objetiva-se aqui demonstrar, ainda que concisamente, que a classificação dos impostos em reais e pessoais, sobre não ser infrutuosa ou que se possa dispensar (senão que é indispensável para compreender a natureza jurídica dos tributos), não elide a possibilidade de se adotar a técnica da progressividade fiscal não só para o IPTU, mas também para qualquer outro imposto real.

2. A NATUREZA JURÍDICA DO PRESSUPOSTO DO FATO IMPONÍVEL E SUA DESTACADA IMPORTÂNCIA NA COMPREENSÃO DA ESSÊNCIA DA RELAÇÃO TRIBUTÁRIA.

Dos ramos tradicionais que compõem a Ciência Jurídica, o Direito Tributário foi aquele que mais tardiamente conquistou sua autonomia científica, e ainda assim com enfrentamento de séria resistência de parte dos financistas, dos administrativistas e também dos civilistas.

E precisamente porque só pode desprender-se da Ciência das Finanças em tempo relativamente recente – logo depois da Primeira Guerra Mundial –, é que o Direito Tributário não logrou obter, até agora, a elaboração de uma teoria geral consistente e que pudesse abarcar um granítico estudo teórico e sistemático dos institutos que formam sua tessitura. Poucas iniciativas tentaram levar a cabo esse ambicioso e relevante projeto, destacando-se nesse contexto a monografia do italiano DINO JARACH sobre o fato imponível, publicada em 1943.4

De feito, nem sequer a Teoria Geral do Direito tem se preocupado em examinar, com maior detença, a realidade tributária dentro de sua especificidade, fazendo tábua rasa do contributo que esse estudo poderia trazer à Ciência do Direito, visto que é no Direito Tributário que o fenômeno da relação jurídica aparece mais bem projetado.

Tudo isto se nos ocupa neste momento apenas de modo marginal, para demonstrar que o estádio pouco evoluído dos estudos do Direito Tributário causa, ainda, uma má compreensão do que significam conceitos que estão integrados no campo da relação jurídica tributária, com reflexo, por exemplo, na incorreta aplicação que se faz de uma importante teoria, como a que classifica os impostos em pessoais e reais. E o que é deveras curioso, isso depois de a doutrina do Direito Tributário ter atingido, com acentuada celeridade, o acme de uma elaboração sistemática, no que se depreende uma distinção significativa com a história da Ciência Processual, cuja novel autonomia científica, conquistada apenas em 1868, veio acompanhada de um desenvolvimento sistemático em contínua evolução, a ponto que os principais institutos do processo lograram obter, em tempo relativamente diminuto, uma concreta e adequada dimensão científica, sem registrar um retrocesso expressivo. No caso do Direito Tributário, posto que sua evolução tivesse se dado em condições similares às da Ciência Processual quanto ao tempo ainda recente em que transcorreu, sua autonomia dogmática não se revelou assim tão consistente, nem refratária a retrocessos importantes.

Com efeito, malgrado as primeiras obras de Direito Tributário tivessem aparecido somente na década de trinta,5 esse atraso científico não impediu que a doutrina, sobretudo alemã e italiana, desenvolvesse, com distinta perfeição, conceitos que patenteariam a natureza e a essência do tributo, desimplicando, por exemplo, a natureza jurídica do fato imponível, que, segundo o já citado HENSEL, é “o conjunto de pressupostos abstratos, contidos nas normas de Direito tributário material, de cuja concreta existência (realização do pressuposto de fato) derivam determinadas conseqüências jurídicas.”.

Identificava a doutrina, outrossim, o que se constituía como “pressuposto de fato do imposto”, (“Steuer-Tatbestand”, no Direito Alemão; “fattispecie”, no Direito Italiano, “hecho imponible”, no Direito Espanhol,6 ou “fato gerador”, esta última a dicção adotada no Direito Brasileiro por força nomeadamente da divulgação da obra de GASTON JÉZE, e que acabou por adquirir foros de expressão legal, incorporada que foi ao texto do Código Tributário Nacional),7 assim identificado como o fato ou conjunto de fatos a que o legislador vincula o nascimento da obrigação jurídica de pagar um determinado tributo.8

Delineava-se, assim, a figura do pressuposto do fato imponível, caracterizada como sendo a reunião, na norma jurídica abstrata, dos elementos que o Legislador leva em conta no mundo circundante (no mundo fático, pois) para definir a “fattispecie”, e de cuja diversidade advém as várias espécies de tributos.

Demais, entreviu a doutrina que exatamente como ocorre com qualquer norma jurídica – que existe para ser aplicada a eventos fáticos, mas que para isso deve ser objeto de um enunciado ou proposição –, assim se dá com o pressuposto do fato imponível, que se revela sob a forma de um enunciado na norma jurídico-tributária. Como pontifica KARL LARENZ: “As proposições jurídicas devem ser ‘aplicadas’ a eventos fáticos, a uma situação de fato que se verificou. (…) isto só é possível na medida em que a situação de fato verificada é enunciada. O que no fato-tipo de um juízo aparece como ‘situação de fato’ é a situação de fato como enunciado. (…)”.9

Nesse contexto, constatou-se que embora a relação jurídico-tributária existisse por força de lei, era fundamental, para seu nascimento, que se verificassem, “na realidade fática, o fato ou os fatos definidos abstratamente, pela lei, como pressupostos da obrigação”.10 Principiava-se assim a sistematização do conceito de relação jurídico-tributária, graças sobretudo à genialidade do mestre italiano ACHILLE DONATO GIANNINI, que ao tema dedicou, já em 1937, importante escrito (“Il Rapporto Giuridico d’Imposta”, Giuffré, Milão, 1937, págs. 22 e seguintes).

Significavam esses conceitos – o de pressuposto do fato imponível e o de relação jurídico-tributária – senão o desenvolvimento mais particularizado de noções com as quais a Ciência do Direito labora ao tratar da forma como o Direito opera em relação ao mundo circundante. A propósito, como demonstrara CARNELUTTI, o fato jurídico representa o modo de operar do Direito, esteado na distinção entre norma e fato, de forma que a previsão jurídica resulta, por conseqüência, da combinação de uma situação jurídica e de um fato material: “Quando, pois, se diz que o fato jurídico é um fato material que produz efeitos jurídicos, importa, antes de mais, ter presente tudo isto, e portanto, notar que o fato material não tem uma função de causa mas de ocasião dos chamados efeitos jurídicos, isto é, da nova situação jurídica. Convém além disso acrescentar que a juridicidade do fato verdadeiramente consiste em a mutação material ser acompanhada da mutação jurídica, e que, por isso, o fato torna-se jurídico propriamente por virtude de tal mutação, de modo que o fato jurídico mais exatamente se definirá como sendo a mutação de uma situação jurídica, ou por outras palavras, como sendo um fato material acompanhado da mutação de uma situação jurídica. (…)”.11

Recolhidos esses dados, passou a doutrina a examinar com maior atenção o instituto nuclear do Direito Tributário: o do pressuposto do fato imponível, assim erigido desde logo em capítulo central de estudo dos tributaristas, e cuja análise permitiu compreender que a partir do pressuposto de fato, fixavam-se nomeadamente os fatos objetivos contidos na definição legal do tributo e se determinava objetivamente o sujeito passivo; e ainda, que dele adivinha o nascimento da obrigação tributária e se individualizava, desde um ponto de vista jurídico, as diferentes espécies de tributos.12

Assim, a concentração do Direito Tributário na análise do pressuposto do fato imponível, além de ter dado origem à criação de uma verdadeira escola capitaneada por DINO JARACH, com a produção de expressivos resultados no caminho da elaboração de uma teoria geral, deu azo a vislumbrar que na conformação do pressuposto do fato atuavam dois elementos, de cuja reunião, em uma só figura, emanava o que HENSEL, com rara felicidade, denominou de “o lado objetivo da ‘fattispecie”, como que para discrepá-lo do lado subjetivo configurador da relação jurídico-tributária, nascida a partir da concreção do fato previsto na norma (pressuposto de fato).

Caracteriza-se o elemento objetivo do pressuposto de fato, destarte, pela apropriação de dados do mundo econômico que, integrados ao Direito – que sobre eles opera à sua maneira – configuram o fato imponível, demarcando, por conseqüência, o objeto da imposição tributária (objeto do imposto). Por isso que se pode dizer que embora o Direito Tributário se valha, na maioria das vezes, de conceitos econômicos, concede-lhes um sentido jurídico próprio. É o que ocorre, por exemplo, com o imposto predial, cujo pressuposto de fato não é a existência da terra ou do imóvel, senão a propriedade, no sentido que o Direito lhe empresta.13 Pois que esses fatos, quando caem no mundo do Direito, passam a ser conceitos jurídicos.

Já o elemento subjetivo do pressuposto do fato imponível tem a finalidade de configurar, em certos impostos, o próprio elemento objetivo do fato imponível, vinculando-o a uma determinada pessoa, como ocorre, por exemplo, com o imposto sobre a renda.

Ou seja: é da forma como o Legislador maneja os elementos que constituem o pressuposto do fato imponível – ora dando como prevalecente o elemento objetivo, ora prestigiando o elemento subjetivo –, que se pode classificar os impostos em reais e pessoais. Assim, se é a unidade econômica que como tal influi em modo decisivo sobre o lado objetivo da “fattispecie”, tem-se aí um imposto real, como ocorre, por exemplo, com o IPTU; se, ao contrário, em primeiro plano está a pessoa, que serve como fundamento jurídico da atribuição para determinada unidade econômica, o imposto, então, é pessoal (imposto sobre a renda). Não obstante, na conformação do pressuposto do fato imponível de qualquer imposto, pessoal ou real, atuam sempre os dois elementos, objetivo e subjetivo, variando tão-somente a posição de destaque de cada um. Sem o elemento objetivo, com efeito, não se poderia perscrutar quanto ao material imponível; ausente o elemento subjetivo, e não poderia nascer a relação jurídica, em cujo conceito, como pontifica GIORGIO DEL VECCHIO, há sempre um substrato real nas coisas ou pessoas, elementos ou termos da relação jurídica que o Direito não cria, já que lhe são anteriores, senão que apenas os determina e os disciplina.14

Por isso se equivoca quem afirma que a classificação dos impostos em reais e pessoais não seja uma classificação jurídica, mas meramente econômica.15 Como o Direito Tributário normalmente se utiliza, como material imponível, de riquezas econômicas, é evidente que o pressuposto de fato abrange sempre conceitos econômicos. Mas como observa JARACH, os conceitos econômicos e políticos, quando assimilados pelo Direito, passam a ser classificados como jurídicos.16 A ponto que o Direito pode mesmo transformar esses conceitos econômicos, emprestando-lhes outro significado, válido apenas juridicamente e no contexto de uma determinada norma.17 Em epítome, é a transformação do fenômeno econômico, que é a matéria-prima com a qual opera o Direito Tributário, em conceito revelado sob a forma de uma norma jurídica. De resto, se o objeto de qualquer imposto é sempre um fato econômico, é evidente que toda classificação que envolver o imposto será necessariamente uma classificação econômica, o que não significa que não seja, também e principalmente, uma classificação jurídica.18

É, portanto, a partir da análise do pressuposto de fato que se podem classificar os impostos, cabendo adscrever, como fez SAINZ DE BUJANDA, que não há, no terreno fiscal, vinculação do sujeito passivo ao sujeito ativo que não esteja alicerçada no fato imponível.19

3. O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E A TÉCNICA DA PROGRESSIVIDADE FISCAL: SUA APLICAÇÃO AOS IMPOSTOS REAIS.

Da decomposição do pressuposto de fato em dois elementos, objetivo e subjetivo, adveio, entrementes, o equívoco em que incidiu não só a doutrina brasileira, mas também boa parte da doutrina estrangeira, ao afirmar, como fez, por exemplo, LUIGI EINAUDI, no início do século XX, que a progressividade no campo do imposto real era fenômeno que somente poderia ser produzido com fins extrafiscais. Dizia, então, esse autor italiano que, “Uma característica sumamente importante do imposto real é a de não implicar uma escala variável progressiva dos tipos de gravame. (…) Quando se fala do sacrifício derivado do imposto, fala-se sempre do sacrifício em relação com os contribuintes, porque o sacrifício se sente pelas pessoas, não por coisas”.20

É de se levar em conta, todavia, que naquele comenos, albores do século XX, não se tinha ainda conformada a autonomia científica do Direito Tributário (o próprio EINAUDI escrevia no campo das Ciências das Finanças, e suas primeiras lições datam de 1902), e que por isso ainda não se mostrava possível lobrigar a verdadeira essência da relação jurídico-tributária, o que somente logrou condições de existência no momento em que se considerou o pressuposto do fato imponível como instituto fundamental do Direito Tributário.

A origem dessa imprecisão conceitual pode ser encontrada, por conseqüência, no considerar o elemento subjetivo que está envolvido com o fato gerador (com a obrigação tributária), como se fosse o mesmo elemento subjetivo que constitui o elemento do pressuposto de fato e que caracteriza os impostos pessoais. Desse equívoco fala-nos DINO JARACH, ao acentuar que no caso dos impostos reais, porque a determinação do sujeito passivo está apontoada em um fato jurídico (elemento objetivo) que dá nascimento à relação tributária, obnubila-se a idéia de que a relação jurídica, também nesse caso, é uma relação obrigacional e pessoal: “El equívoco de considerar de naturaleza real y no personal u obligatoria la relación tributaria es causado también porque en las leyes fiscales muy a menudo se agrega a la relación tributaria stricto sensu un derecho real de garantía sobre el objeto, como ser la mercadería en los tributos aduaneros y de consumo, los terrenos o los inmuebles en los tributos como el impuesto territorial o la contribución de mejoras. Se considera, pues, la relación tributaria como una carga real o un derecho real, por la falta de análisis que hemos puesto en evidencia recién, por no distinguir la propia relación tributaria, que es de naturaleza personal, de las relaciones acessorias, como la garantía, que pueden ser de naturaleza real.”21

E mesmo nos impostos pessoais, o fundamento jurídico criador da relação jurídico-tributária não é a simples relação entre sujeito ativo e sujeito passivo, mas é o fato gerador que lhe está subjacente; a dizer, a imprescindível simbiose entre os elementos objetivo e subjetivo como elementos configuradores do pressuposto do fato imponível. Daí que muito embora o elemento subjetivo possa servir, nos impostos pessoais, para a configuração do pressuposto do fato imponível, oferecendo-lhe uma significação estrutural para o seu elemento objetivo, com ele não se confunde o elemento subjetivo que se manifesta no nascimento da obrigação tributária, em função do qual se atribui aos sujeitos envolvidos na relação tributária a pretensão do pagamento do tributo ou a obrigação de satisfazê-lo.22 Tanto assim que poder haver incoincidência entre o elemento subjetivo do fato imponível e aquele que caracteriza a relação jurídica tributária, como ocorre no caso do responsável tributário, diferença, aliás, bem captada pelo Código Tributário Brasileiro, que ao tratar do sujeito passivo da obrigação tributária (artigo 121), cuidou de considerar a existência do contribuinte, que deve ter relação direta e pessoal com o pressuposto do fato imponível, e a do responsável tributário, que tem com esse pressuposto de fato apenas uma relação indireta, demonstrando o Legislador Brasileiro, à vista disso, que considerava na obrigação tributária a presença dos dois elementos, “ad instar” do que se dá com as obrigações jurídicas em geral: o elemento que caracteriza o débito (“Schuld”), de ordem patrimonial, e o elemento que configura a responsabilidade (“Hatfung”).23

Destarte, duas são as funções que o elemento subjetivo exerce no campo do Direito Tributário: uma, para configurar o elemento objetivo ou material do pressuposto de fato; outra, para determinar a pessoa obrigada ao pagamento do tributo (a partir da ocorrência em concreto do pressuposto de fato, com o nascimento da relação jurídica tributária). É o que observa SAINZ DE BUJANDA, ao afirmar que o elemento subjetivo pode servir não somente para determinar a pessoa obrigada ao pagamento do tributo, mas também para a configuração do elemento objetivo do fato imponível.24 O que não se pode, contudo, é confundi-los. E para que isso não ocorra, é indispensável considerar a função que exerce o elemento subjetivo na estrutura do pressuposto do fato imponível, e a função que ele exerce no fato gerador. No primeiro caso, o elemento subjetivo integra o pressuposto do fato imponível e tem por função vincular uma determinada pessoa ao elemento objetivo, o que se dá tanto nos impostos pessoais quanto nos impostos reais; já no caso do fato gerador, que é a ocorrência em concreto do pressuposto do fato imponível, há uma função diversa, na medida em que o elemento subjetivo exerce, nesse caso, a finalidade de determinar a pessoa obrigada ao pagamento do tributo (relação obrigacional).

Dentre os autores, SAINZ DE BUJANDA foi aquele que conseguiu desimplicar, com uma invejável clareza, essa importante distinção, ao se referir aos fenômenos da “subjetivação” e da “objetivação”. Textualmente: “(…) La idoneidad del tributo para hacer efectivo el principio de la capacidad de pago deriva, en fin, del mayor o menor grado de subjetividad que pueda atribuirsele. Ya me he ocupado con cierta extensión en outro trabajo de estos conceptos y, sobre todo, de la necesidad de no confundir los impuestos personales con los subjetivos y los reales con los objetivos. Efectivamente, la ‘subjetivización’ o la ‘objetivización’ del impuesto es un fenómeno amplísimo, que afecta al sistema de determinación de las cuotas impositivas, y que, por tanto, no puede juridicamente identificarse – aunque, de hecho, ambos fenómenos ofrezcan amplias zonas de coincidencia – con la distinción entre impuestos reales y personales, que sólo responde a una distinta configuración del presupuesto objetivo, es decir, a uno solo de los elementos de la relación juridica tributaria. La ‘subjetivización’ del impuesto se producirá, efectivamente, siempre que los elementos de cuantificación de la deuda tributaria – es decir, la base imponible, los tipos de gravamen y los recargos o deducciones en la cuota – se acomoden a las circunstancias personales del sujeto pasivo; la ‘objetivización’ se producirá en el supuesto contrario. Por tal razón, los impuestos reales son susceptibles – sin perder esta naturaleza – de subjetivización, como claramente se advierte, por ejemplo, en los que recaen sobre los rendimientos del trabajo, tan sensibles, en su ordenación positiva, a la situación personale de los perceptores de esta classe de renda. Los impuestos personales son, de suyo, por la naturaleza del presupuesto, los más aptos para acentuar la subjetivización del gravamen, pero incluso dentro de la ordenación jurídica de un impuesto personal cabe que las circunstancias del sujeto gravada desempeñen un papel más o menos relevante para la determinación de la cuota”.25

Daí que a classificação dos impostos em reais e pessoais corresponde tão-somente à analise do pressuposto de fato do tributo. Essa classificação, entrementes, não se refere à relação que nasce da concreção do pressuposto de fato do tributo (e que dá lugar à obrigação tributária). GIANNINI, na lição de quem o Ministro MOREIRA ALVES curiosamente esteara seu voto,26 percebeu essa sutil distinção, ao aduzir que: “Questa distinzione [referindo-se à classificação dos impostos em pessoais ou reais, ou como prefere denominá-los, subjetivos e objetivos] non tocca affatto la natura del diritto soggetivo d’imposta dell’ente pubblico, che è sempre un diritto personale di credito, mas attiene, como la precedente distinzione fra imposte dirette e indirette, al modo in cui la legge tributaria definisce il presupposto del tributo (…)”.27

Como era de se esperar, HENSEL também se apercebera dessa distinção, ao aduzir que nos impostos reais não se exclui que o débito, que nasce da relação obrigatória (“ex-legge”), seja um débito pessoal (uma relação obrigacional), ainda que com garantia real. O que não impede – ainda segundo o insigne germanista – a possibilidade da progressividade aplicar-se: “Queste posson accontentarsi di conformare e di misurare l’imposta secondo la capacità contributiva dell’oggetto (…)”.28

Depreende-se, assim, que a confusão em que a doutrina incidiu, alimentada, em boa medida, pela identidade da terminologia (subjetivação, objetivação, impostos subjetivos, impostos objetivos, impostos reais e pessoais),29 e pela origem do imposto entendido inicialmente como uma carga real,30 decorreu nomeadamente do conceber o elemento subjetivo que atua no pressuposto de fato, como sendo o mesmo elemento subjetivo que caracteriza o vínculo obrigacional que nasce da relação fisco-sujeito passivo. É, por conseguinte, dessa amálgama que proveio a equivocada idéia de que como no pressuposto de fato que configura os impostos reais inexiste o elemento subjetivo, daí resultaria que a progressividade fiscal não poderia ser técnica a manejar para quantificar a capacidade econômica do sujeito passivo nesses impostos. Mas como se demonstrou, ainda nos impostos reais existe o elemento subjetivo que conforma o pressuposto de fato, embora não esteja em posição sobranceira como se dá nos impostos pessoais.

Não se pode olvidar, demais, que a relação jurídica decursiva de tributo é sempre uma relação pessoal, malgrado conte, na maioria dos sistemas de direito positivo, com garantias que circundam a obrigação tributária,31 moldando-a ao standard civilístico do ônus real.32 Nesse sentido, a observação de GIULIANI FONROUGE, no sentido de que “Não pode haver dúvida (…) sobre o caráter pessoal da obrigação, não obstante as medidas de garantia que protegem o crédito fiscal”.33

Compreendida essa distinção, e então é possível afirmar-se que o princípio da capacidade contributiva, que representa “a valoração política da riqueza que faz o legislador”,34 deve também ser aplicado aos impostos reais.

A técnica da progressividade fiscal atende, assim, à finalidade de fazer com que o imposto, sobre ser legal, seja também justo. De forma que enquanto o pressuposto de fato diz com o princípio da legalidade (“nullum tributum sine lege”), a progressividade fiscal, que é uma das técnicas empregadas para implementar a justiça tributária, radica no vínculo jurídico que resulta da concreção da “fattispecie”, atuando, por conseguinte, na relação jurídico-tributária. Em bosquejo, no pressuposto de fato, releva-se a escolha, pelo Legislador, dos signos presuntivos de capacidade tributária, enquanto na progressividade fiscal, extrai o Legislador, com base nesses mesmos signos, os dados com os quais possa aferir, em abstrato, a capacidade contributiva no momento em que a relação jurídica passe a existir.

De forma que o uso da expressão “sempre que possível”, contemplada no texto do artigo 145, parágrafo 1o., da nossa Constituição de 1988,35 evidencia apenas a idéia de que o Legislador deve sempre considerar objetivamente a capacidade econômica para dar consecução à justiça distributiva.36 Cuida-se, portanto, de um princípio programático direcionado ao Legislador, que, na medida do possível, deve buscar, no momento da seleção dos fatos imponíveis, critérios ou índices a partir dos quais possa avaliar diretamente a grandeza econômica do contribuinte,37 optando, quando possível, pelos impostos pessoais, porquanto nestes como o sujeito passivo tem relação direta com o material imponível (com o elemento objetivo do pressuposto do fato), a avaliação da capacidade econômica é tarefa mais facilitada e sua adoção não importa por isso nos mesmos riscos que advêm da escolha de critérios ou índices relacionados com o elemento objetivo do pressuposto de fato (signos presuntivos da capacidade), porque como essa escolha, mesmo nos impostos pessoais, é sempre feita abstratamente, pode eventualmente não corresponder à efetiva capacidade do contribuinte. O que, contudo, não elide que aos impostos reais também se faça aplicado o princípio da capacidade contributiva, e com ele, a técnica da progressividade fiscal.

Do que aí fica recolhido, pode-se concluir que mesmo antes da Emenda de número 29, autorizava o Sistema Positivo Brasileiro a instituição de alíquotas progressivas para o IPTU. Para tanto, bastaria invocar o artigo 145, parágrafo 1o., da Constituição da República de 1988. A novel Emenda, assim, cuidou apenas de explicitar a possibilidade de o Legislador infraconstitucional manejar a técnica da progressividade fiscal para o IPTU, dês que o faça com base em critérios ou índices que se relacionem com o valor do imóvel.

1 DERZI, Misabel de Abreu Machado & NAVARRO COELHO, Sacha Calmon. Do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, p. 115. São Paulo, Saraiva, 1982.

2 COSTA, Alcides Jorge. Iptu – Progressividade. Revista de Direito Público, v. 93, p. 239-242.

3 HENSEL, Albert. Diritto Tributario, p. 109. Milão, Giuffrè, 1956.

4 JARACH, Dino. El Hecho Imponible: Teoria General del Derecho Tributario Sustantivo. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 2ª edição, 1971.

5 Por exemplo: ABATE, E. “L’Insegnamento del Diritto Tributario”, 1932.

6 Variada, como se vê, a terminologia empregada, à qual se pode acrescentar ainda “situação base”, ou “situação jurídica tributária, expressões utilizadas por ALLORIO, na Itália, e ANDREOZZI, na Argentina (cf. JARACH, Dino. Estrutura e Elementos da Relação Jurídico-Tributária, p. 338).

7 Optamos, no bojo deste trabalho, por adotar a expressão “pressuposto de fato do tributo”, que se nos antolha aquela que, com maior qualidade, revela o fenômeno a que se refere, malgrado se adote, vez por outra, e apenas por questão de estilo, a expressão italiana “fattispecie”.

8 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 26. São Paulo, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1977.

9 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 333. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1989.

10 JARACH, Dino. Estrutura e Elementos da Relação Jurídico-Tributária. Revista de Direito Público, v. 16, abril-junho de 1971, p. 337-345.

11 CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito, p. 324. São Paulo, Lejus, 1999.

12 SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho: Estudios de Derecho Financiero, t. IV, p. 395, Madrid, Instituto de Estudios Politicos, 1967.

13 JARACH, Dino, El Hecho Imponible, p. 59.

14 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, v. 2, p. 139-140, São Paulo, Saraiva, 1948.

15 NAVARRO COELHO, Sacha Calmon. Comentários à Constituição de 1988, p. 250, 2ª edição, 1990.

16 JARACH, Dino. El Hecho Imponible, p. 11, nota 2.

17 Aliás, como observa MARX, as relações jurídicas não podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas a partir do vínculo com as relações materiais da vida. In MARX e ENGELS, Obras Escolhidas, voluma I, p. 530, Editora Avante, Lisboa, 1982. (Por isso que MARX entendia que o Direito jamais poderia estar acima da estrutura econômica da sociedade e de seu desenvolvimento cultural, por ela condicionado.)

18 Como observa ARAÚJO FALCÃO, “(…) em suas essência, substância ou consistência é o fato gerador um fato econômico ao qual o Direito empresta relevo jurídico”. (in “Fato Gerador da Obrigação Tributária”, p. 64).

19 SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho, v. IV, p. 267.

20 EINAUDI, Luigi. Principios de Hacienda Publica, p. 139. Madrid, M. Aguilar, 1946. Ainda assim, EINAUDI reconhecia que o imposto não era pago pela coisa, senão pela pessoa (obra mencionada, p. 145).

21 JARACH, Dino. El Hecho Imponible, p. 60.

22 Código Tributário Nacional, artigo 121.

23 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil, v. II, p. 11. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 6ª edição, 1995.

24 SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho, t. IV, p. 394 e 417.

25 SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho, t. III, pp. 229-230.

26 STF, RE nº 153.771.

27 GIANNINI, Achille Donato. Instituzioni di Diritto Tributario, p. 159, Milão, Giuffrè, 1965.

28 HENSEL, Albert. Diritto Tributario, p. 110.

29 Exatamente para evitar a confusão é que DINO JARACH sustentava, na esteira de GIANNINI, que os impostos reais deveriam ser melhor denominados “objetivos”, e os pessoais, “subjetivos”. (in “El Hecho Imponible”, p. 60).

30 O imposto, com efeito, foi inicialmente concebido como uma carga real, conforme ocorrera em sua origem no Estado Feudal, primeiro sistema impositivo e que preparou o terreno para que houvesse a criação dos impostos pessoais, como ocorreu, por exemplo, na Itália, em que se criou um imposto complementar progressivo sobre a renda, tido, então, como pessoal e com fim extrafiscal. (Cf. LUIGI EINAUDI, in “Principios de Hacienda Publica”, p. 145).

31 HENSEL, Albert. Diritto Tributario, p. 109.

32 ASCENSÃO, José de Oliveira. As Relações Jurídicas Reais, p. 228. Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962.

33 FONROUGE, Carlos M. Giuliani. Obrigação Tributária. Revista de Direito Público, v. 15, janeiro-março de 1971, p. 344-353.

34 JARACH, Dino. Interpretação no Direito Tributário. Hermenêutica no Direito Tributário. São Paulo, Saraiva, 1975.

35 “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

36 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 68.

37 Ou seja, que se cuide adotar como fatos imponíveis aquelas manifestações da vida econômica que sejam idôneas para avaliar a capacidade de pagamento dos sujeitos passivos da imposição. Trata-se, portanto, de um princípio constitucional derivado da justiça tributária, e que se decorre, em última instância do princípio da igualdade na lei. Mas não será caso a caso que será verificado se o princípio da capacidade econômica foi observado, mas de forma genérica em termos de sua utilização na lei. Aqui se considera, em abstrato, o signo presuntivo de riqueza empregado pelo legislador no pressuposto de fato do tributo, abstraindo o exame de caso a caso em que esse tributo ocorre. (Cf. SAINZ DE BUJANDA, Hacienda y Derecho, v. IV, p. 552).