RELAÇÃO DE CONSUMO

RELAÇÃO DE CONSUMO
Valentino Aparecido de Andrade

O que qualifica uma relação comercial como de consumo? Que atributos presentes na realidade material o Legislador erigiu como importantes para submeter um contrato ao Código de Defesa do Consumidor? Qual é o status jurídico-legal que se deve atribuir ao Código de Defesa do Consumidor: o de uma simples lei ordinária, ou a de um código que, em tendo como base direta a norma do artigo 5o., inciso XXXII, da Constituição de 1988, implementa a proteção a um direito juridicamente qualificado como “fundamental”, como é o direito do consumidor?

Essas questões haviam surgido ao tempo em que o Código de Defesa do Consumidor em 1990, e àquela altura entendeu-se que se deveria interpretar de modo mais amplo as normas (princípios e regras) daquele Código, sempre que essa interpretação conduzisse a uma proteção mais justa e eficiente do consumidor. Importante lembrar que diversos segmentos econômicos tentaram desde o primeiro momento escapar ao Código de Defesa do Consumidor, sustentando que havia certa “particularidade” em seu segmento que poderia afastar a qualificação de “relação de consumo”. As instituições financeiras formaram o principal segmento de resistência ao Código de Defesa do Consumidor, preocupadas com o conteúdo do artigo 3o.., parágrafo 2o., do referido Código, em que o Legislador conseguiu ser o mais claro possível ao descrever o que se deve entender como “serviço”, ao sublinhar que “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” deve ser juridicamente qualificada como de consumo, afastando, pois, toda a discussão a respeito.

Uma importante federação de bancos tentou obter provimento jurisdicional em tribunal de superposição para que se q desobrigasse de cumprir as disposições do Código de Defesa do Consumidor, mas não teve êxito naquele momento histórico. Mas, parafraseando-se Machado de Assis, pode-se perguntar se: “mudou o Natal, ou mudei eu”, o que no caso em questão significa perguntar se o que mudou foi o Código de Defesa do Consumidor ou seus intérpretes.

O fato é que as vitórias iniciais do Código de Defesa do Consumidor não se revelaram conquistas imutáveis, porque ao longo dos anos aquelas tentativas inicialmente malogradas começaram a dar resultados, como é o caso da “Lei do Superendividamento”, da “Lei do Distrato”, leis cujo objetivo é enfraquecer o regime de proteção do Código de Defesa do Consumidor. Mas não se para por aí.

Com efeito, os mesmos segmentos econômicos que haviam, na década de noventa, tentado fugir do Código com a alegação de que havia na atividade que realizavam algo como um discrímen, estão agora a insistir na requentada tese, mas com uma importante diferença: estão conseguindo seus resultados, fundados na palmar alegação de que, em havendo uma legislação específica, não se pode aplicar o Código de Defesa do Consumidor, o que ocorreria, por exemplo, com os contratos de compra e venda de bem imóvel com garantia fiduciária, contrato ao qual não se poderia aplicar o Código de Defesa do Consumidor porque uma Lei de 2017, a Lei 9.514, dispondo sobre o sistema de financiamento bancário, é uma lei específica e incompatível com o Código de Defesa do Consumidor.

Mas não olvidemos que o Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 3o.., parágrafo 2o., é expresso no dizer e enfatizar que as operações de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária são e devem ser caracterizadas como serviços, e como tais submetidos ao Código de Defesa do Consumidor, de modo que, ainda que se trate de um contrato de aquisição de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária, regulado pelos artigos 22-33 da lei 9.514/2017, não deixa de ser um contrato em que há alguém que, habitualmente comercializa imóveis a seus clientes, com eles realizando, portanto, um contrato que é evidentemente de consumo, porque subjaz um serviço, que não transmuda a sua natureza jurídica porque se lhe acrescenta uma cláusula como a da alienação fiduciária, porque essa alienação fiduciária, seja considerada uma operação bancária, de crédito ou de securitização, é um serviço que está abarcado pelo artigo 3o., parágrafo 2o., do Código de Defesa do Consumidor, que é um Código de proteção a direitos fundamentais, o que, aliás, basta para fazer concluir que ele prevalece sobre outras leis que tenham sido criadas para escapar a seu controle.