PLANO DE SAÚDE. CIRURGIA PÓS-BARIÁTRICA. REGIME DE AFETAÇÃO FIXADO NO TEMA 1.069 DO STJ. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA QUE É IMPOSTA PELO ARTIGO 1.037, I, DO CPC/2015. NECESSÁRIO DE O TRIBUNAL DE SUPERPOSIÇÃO FIXAR, COM PRECISÃO, A QUESTÃO A SER SUBMETIDA A JULGAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE CIRURGIA PLÁSTICA E REPARATÓRIA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ A SER UTILIZADO NA ANÁLISE DA POSTULAÇÃO. RECURSO QUE NÃO DEVERIA SER SUBMETIDO AO REGIME DE AFETAÇÃO

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO

Pelo meu voto, respeitado o entendimento da douta maioria, era de rigor o desprovimento a este recurso de apelação, de modo que se deveria manter a r. sentença, não se suspendendo o trâmite do recurso por não se submeter a demanda ao regime de afetação (tema 1.069 do egrégio Superior Tribunal de Justiça), dado que se cuidam de matérias fático-jurídicas diversas.
Dois registros iniciais impõem-se.
O primeiro registro, “concessa venia”, é no sentido de que esta demanda não se submete ao regime de afetação aplicado pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça no tema 1.069, tratando-se, portanto, de matérias fático-jurídicas distintas.
Com efeito, segundo o que estatui o artigo 1.037, inciso I, do CPC/2015, o Tribunal de superposição deve identificar com precisão a questão a ser submetida a julgamento, o que decorre da prevalência de dois importantes princípios constitucionais: o da inafastabilidade do controle jurisdicional e o que garante a razoável duração do processo, o que significa dizer a suspensão de qualquer processo judicial é medida considerada sempre como excepcional, o que evidentemente se aplica ao regime de afetação, o que justifica o cuidado do Legislador em instituir como obrigatória a identificação com precisão da questão que deva ser submetida a julgamento naquele regime, a ensejar a aplicação de uma interpretação restritiva, como é aquela que deve ser sempre aplicada quando se trata de um regime de exceção.
Consideremos, pois, o enunciado fixado pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça no tema 1.069, que é o seguinte: “Definição da obrigatoriedade de custeio pelo plano de saúde de cirurgias plásticas em paciente pós-cirurgia bariátrica”. Esse é a identifica, com precisão, da questão que forma o objeto do tema 1.069, e como dito, deve-se aplicar uma interpretação restritiva quanto aos termos que forma esse objeto, o que significa concluir que não se pode interpretar senão que restritivamente a expressão “cirurgia plástica”, que assim não pode ser equiparada a uma “cirurgia reparatória”, ainda que dentro de uma hipotética relação de gênero-espécie.
Importante destacar ainda a importância do pedido e da causa de pedir quando se trata de interpretar o objeto de uma demanda, não se podendo olvidar da regra que o CPC/2015 trouxe, a do artigo 324, parágrafo 2º, no sentido de que o pedido deve ser interpretado de acordo com o conjunto da postulação, observando o princípio da boa-fé, o que aplicado ao caso presente significa dever observar que a autora fala, em sua peça inicial, de uma cirurgia reparatória, e não plástica, de maneira que, para o fim de identificar se há ou não identidade entre o objeto desta ação e o da questão submetida ao regime de afetação no tema 1.069, impõe-se a conclusão, com o respeito que é merecido a douta maioria, de que não há essa identidade por não se tratar da mesma matéria (cirurgia reparatória x cirurgia plástica).
Além disso, também se deve considerar que, conquanto a tutela provisória de urgência tenha sido negada pelo juízo de origem, a urgência reclamada pela autora não deixou de existir, o que, só por si, permitir afastar a suspensão determinada pelo regime de afetação.
O segundo registro: a ré interpusera, no mesmo dia, dois recursos de apelação, como se vê de folhas 261/275 e 276/290, sendo certo que o primeiro desses recursos não havia sido instruído com o preparo, aliás em valor insuficiente, mas que foi complementado no prazo assinado. Há que se atribuir a um mero equívoco o fato de a ré ter interposto dos recursos, dado que as razões são rigorosamente idênticas em um e outro desses recursos.
De maneira que, no entender deste magistrado, não se deveria submeter a demanda ao regime de afetação.
Quanto ao mérito do recurso.
Conquanto se trate de uma relação jurídico-legal de consumo a que é consubstanciada em um contrato de plano de saúde, e se deva aplicar a esse tipo especial de relação jurídica o regime jurídico estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, daí não decorre se deva declarar a nulidade das cláusulas que preveem a cobertura quanto a tratamentos e procedimentos médicos, porque se deve observar que há regulação legal que confere adequado suporte jurídico a esse tipo de cláusula contratual, que resto é imanente ao contrato de plano de saúde, formando seu núcleo, não havendo, pois, abusividade nas cláusulas que, no contrato em questão, preveem o conteúdo e o alcance da cobertura em termos de tratamentos e procedimentos médicos, conquanto não se possa deixar de reconhecer o direito subjetivo da autora em buscar o melhor tratamento médico disponível, e que a cobertura contratual lhe propicie esse tratamento.
O que significa dizer que estamos diante de um conflito entre duas posições jurídicas válidas e legítimas, e ao controle desse tipo de conflito se deve aplicar o princípio constitucional da proporcionalidade.
A causa, portanto, diz respeito a um conflito entre posições jurídicas que se instalou no bojo de um contrato de plano de saúde, em que há uma particularidade que distingue esse tipo de contrato, que, conquanto regido por normas infraconstitucionais que formam diplomas legais como são o Código Civil e as normas de regulação emanadas da ANS – Agência Nacional de Saúde, é nomeadamente regido esse específico tipo de contrato por uma norma que possui matriz constitucional: a do artigo 196 da Constituição de 1988, de modo que ao julgamento de demandas em que se discute acerca da cobertura contratual em plano de saúde, a referida norma constitucional atua como um importante material hermenêutico.
Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidas nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.
Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica da autora não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevalecesse a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca a exclusão do custeio do procedimento prescrito, dado que, segundo a ré, tal procedimento não está incluído em rol estabelecido em ato normativo da agência reguladora (ANS).
Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem as partes.
Digno de nota que a Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos, procedimentos e técnicas, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos, materiais e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.
Impor à paciente que se submeta, sem mais, ao rol de procedimentos da agência reguladora, negando a cobertura contratual, quando o médico que preside o tratamento prescreve determinado tratamento como indispensável ao controle de uma doença grave, é colocar a esfera jurídica da paciente (usuária do plano de saúde) aquém de uma proteção mínima razoável.
Nesse ponto, é importante observar que a ré não se desincumbiu de comprovar fosse de natureza estética a cirurgia a que se submeteu a autora, e esse ônus incumbia-lhe em consequência de se aplicar a técnica da inversão do ônus da prova. Donde deve prevalecer o relatório médico produzido a folha 32, em que se afirma que a cirurgia é de caráter reparador, e não estético.
A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A interpretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica, como se dá no caso presente, pois como consta da documentação médica a cirurgia é fundamental para a continuidade e sucesso do tratamento para a obesidade da paciente (cf. relatório de folha 32).
O artigo 196 da Constituição de 1988 garante, pois, ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam as partes contratantes.
Destarte, havendo um procedimento ou medicamento que tem sido prescrito, comprovada sua eficácia, tanto assim que indicado por orientação médica, daí resulta que, desobrigar a ré de propiciar à autora o acesso a esse tratamento é colocar a esfera jurídica dessa paciente aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.
É certo que a ré quer se amparar em um ato normativo emanado da agência reguladora, para negar a cobertura contratual do procedimento médico prescrito à autora-apelada, necessário ao tratamento. Mas essa posição não subsiste. Duas ordens de argumentos devem ser aqui consideradas.
O primeiro argumento é de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais tratamentos médicos podem ou não ser excluídos automaticamente. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado procedimento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções institucionais são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.
O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo geral, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como ora se enfatiza, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar às normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.
Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a interpretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor da autora seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.
De relevo observar que o egrégio Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria de votos, mas sem dotar de efeito vinculante a sua decisão, que a lista de procedimentos fixada pela agência reguladora é, em tese, taxativa, com o que aquele Tribunal de superposição quis enfatizar que se devam considerar as circunstâncias de cada caso em concreto, cabendo aos juízes e tribunais ponderar as posições jurídicas em conflito com base nessas circunstâncias e são elas que, efetivamente, permitem definir qual a posição jurídica que deve prevalecer, e qual aquela que deverá, no caso em concreto, ser sacrificada, em uma análise que deve levar em consideração sobretudo a gravidade da doença e a urgência no procedimento prescrito.
Todos esses aspectos, extraídos da realidade material subjacente, foram bem valorados pelo juízo de origem, e por isso a r. sentença, no meu entendimento, é de ser mantida, apenas com o reparo de que, ao contrário do que afirmado a folha 256, a cirurgia não é de natureza estética.
Também é importante o registro de que o pedido de reparação por dano moral foi declarado improcedente, com o que concordou a autora.
Por meu voto, pois, com o respeito que é merecido a douta maioria, entendendo que esta demanda não se submete ao regime de afetação aplicado pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça no tema 1.069, negava provimento ao recurso de apelação para, assim, manter a r. sentença em seu integral conteúdo.
Quanto aos encargos de sucumbência, registrava caracterizar-se de fato a sucumbência recíproca, como a r. sentença estabeleceu, e que em face dessa modalidade de sucumbência não se deveria aplicar a regra do artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015. Como há ainda em nossa jurisprudência e doutrina controvérsia a respeito do conteúdo e alcance dessa regra legal, cuido observar que, conquanto haja quem sustente que a majoração dos honorários de advogado foi pensada pelo Legislador também com a finalidade de desestimular a interposição de recurso, considero que o enunciado da norma não comporta essa interpretação, e de resto não poderia mesmo comportá-la, porque, em garantindo a Constituição de 1988 o direito a um processo justo – que é o processo dotado de contraditório e da ampla defesa, prevendo a Constituição de 1988 o duplo grau de jurisdição –, estivesse a referida norma, pois, a querer desestimular a interposição de recursos, e haveria aí, nessa finalidade, uma inconstitucionalidade substancial que certamente não passaria, como não passa pelo teste que se realiza por meio do princípio constitucional da proporcionalidade. A única finalidade, e justa finalidade, para a qual a norma foi pensada é a de melhor remunerar o advogado da parte vencedora, o que de resto atende àquele conhecido princípio estruturado por CHIOVENDA, quando enfatizava que o processo deve dar a quem ganha tudo aquilo e precisamente aquilo a quem tem Direito, o que abarca a remuneração de seu advogado, o que justifica que os honorários sejam majorados quando exista um vencedor no processo, o que não ocorre no caso da sucumbência recíproca, em que ambas as partes são, a um só tempo, vencedoras e vencidas, analisada essa condição de “vencedor” e “vencido” no contexto do processo, ou seja, tanto em face do que decidiu a sentença, quanto o que se veio a decidir no recurso de apelação. Daí porque, fixado neste caso o regime de sucumbência recíproca, no meu entendimento, não caberia, aqui, a majoração dos honorários de advogado.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR SORTEADO