A PERÍCIA NO JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA

1. A POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL.

Recentemente, vem se formando uma corrente jurisprudencial que admite a possibilidade da realização de perícia nas ações que se processam no Juizado especial da Fazenda Pública. Essa posição foi agora ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao firmar o entendimento de que “a necessidade da produção de prova pericial, por si só, não influi na definição da competência dos juizados especiais”.1

E, de fato, o artigo 10 da Lei federal de número 12.153/2009 (Lei do Juizados Especiais da Fazenda Pública) prevê a realização de exames técnicos, quando necessários à conciliação ou ao julgamento da causa, cabendo ao juiz nomear pessoa habilitada, que apresentará o laudo em até cinco dias antes da audiência.

Destarte, como toda lei tem a seu favor a presunção de consistência, como afirmava Rui Barbosa,2 não parece haver dúvida de que se pode produzir perícia nessas ações.

Mas como é possível conciliar a produção da prova pericial, considerando sobretudo o tempo que é despendido na prática dos atos processuais que a envolvem, com os princípios da simplicidade e da celeridade, que norteiam as ações do Juizado especial de Fazenda Pública, e ainda com o critério de competência baseado no tipo de relação jurídico-material, expressamente fixado no artigo 2º., parágrafo 1º., da Lei federal de número 12.153/2009? A resposta a essa questão passa necessariamente pela definição do tipo de perícia que pode ser produzida nessas ações.

Será necessário, pois, estabelecer o conceito e alcance da expressão “exame técnico”, empregada no artigo 10 da Lei 12.153/2009; e para tanto, um breve estudo histórico de nossa legislação processual impõe-se.

2. O EXAME TÉCNICO COMO MODALIDADE DE PERÍCIA. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA.

No Código de Processo Civil de 1939, em seu capítulo VII (título VIII, artigos 254-258), previu-se a realização de exames periciais, mas sem que o texto legal definisse esse meio de prova, e quais poderiam ser as suas modalidades, limitando-se, em seu artigo 254, a dispor: “Na perícia, para prova de fato que dependa de conhecimento especial, as partes poderão formular quesitos, nos cinco dias seguintes à nomeação do perito, admitindo-se quesitos suplementares até a realização da diligência.”. Coube, pois, à doutrina brasileira extrair dessa singela norma o conceito de “exames periciais”, identificando ainda quais as modalidades de perícia, do que se desincumbiu com a análise do sistema das Ordenações portuguesas, e também de como a legislação brasileira havia se estruturado no Regulamento 737/1850 e nos Códigos estaduais de processo.3

Assim, quando em vigor o Código de Processo Civil de 1939, a doutrina brasileira conceituou a perícia como o meio de prova que consiste no “encargo conferido a pessoas competentes, de preferência especializadas e técnicas, para proceder às averiguações que se fizerem necessárias, para o esclarecimento das questões debatidas no processo, sem que tais pronunciamentos exijam conhecimentos especializados, devendo o resultado do exame precedido ser levado ao conhecimento do juiz, por meio do laudo”.4

E a mesma doutrina identificara no conceito genérico de “exame pericial”, utilizado pelo Código de 1939 (artigo 254), quatro modalidades de perícia: o exame técnico em sentido estrito; a vistoria; o arbitramento e a avaliação.

O Código de Processo Civil de 1973, incorporando ao texto legal a classificação que a doutrina construíra, passou a adotar a denominação mais precisa de “prova pericial”, prevendo expressamente quais as suas modalidades: Artigo 420: “A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação”. Deixava-se, pois, de incluir entre elas o arbitramento, porque o Código de 1973 havia reservado a utilização desse termo à fase de liquidação5. (Mas a doutrina entendia que o arbitramento continuava a ser uma modalidade de perícia, destinada à estimação do valor, em moeda, de coisas, direitos ou obrigações, conforme observou MOACYR AMARAL SANTOS em seus comentários àquele dispositivo.)6

O atual Código de Processo Civil (Lei federal 13.105, de março de 2015) manteve essa estrutura, mas acrescentando uma nova modalidade de perícia, prevendo, pois, em seu artigo 464 que a prova pericial consiste em exame, vistoria e avaliação, criando ainda a “prova técnica simplificada”, que, segundo o artigo 464, parágrafos 2º. e 3º., consiste na inquirição, pelo juiz, de especialista sobre um ponto controvertido da causa, de menor complexidade, mas que exija especial conhecimento científico ou técnico.

Em linhas gerais, o exame técnico consiste na inspeção direta feita pelo perito sobre pessoas, animais, coisas móveis em geral, para verificação de algum fato ou circunstância de interesse à decisão da causa, enquanto a vistoria é a inspeção técnica que se realiza sobre bens imóveis, sendo que o arbitramento e a avaliação são as modalidades a serem utilizadas para a determinação do valor de coisas, direitos e obrigações.7

A prova técnica simplificada é também uma modalidade de perícia, embora o Código de Processo Civil de 2015 não a tenha tratado como tal, como se depreende da redação dada ao parágrafo 2º. de seu artigo 464, que prevê que essa prova será realizada “em substituição à perícia”. Trata-se, pois, de uma espécie simplificada de exame técnico, como o Código de Processo Civil de 1973 (artigo 421, parágrafo 2º.) a considerava, embora permitisse que fosse também utilizada para a avaliação de coisas, quando essa avaliação se mostrasse de interesse ao julgamento da causa. No Código de Processo Civil em vigor, a prova técnica simplificada não tem mais esse alcance, de forma que se pode afirmar que se trata de uma forma, mais simplificada, do exame técnico.

3. A PERÍCIA NO JUIZADO ESPECIAL DE FAZENDA PÚBLICA. EXAME TÉCNICO E PROVA TÉCNICA SIMPLIFICADA.

Como a Lei que instituiu o Juizado especial da Fazenda Pública (Lei 12.153/2009) prevê em seu artigo 10 que, nas ações que se processam sob esse sistema processual, possa ser realizado o exame técnico, é de se presumir que o Legislador tenha nessa norma se utilizado da mesma estrutura que adotava o Código de Processo Civil de 1973 (que estava em vigor ao tempo em que a Lei 12.153 foi editada), e que também se adota no Código ora em vigor, o que autoriza concluir que, nas ações que se processam no Juizado especial de fazenda pública, pode-se produzir perícia, mas apenas sob uma de suas modalidades: a do exame técnico, seja sob sua forma mais comum (com a produção de um laudo), seja sob a sua forma simplificada (prova técnica simplificada). As demais modalidades de perícia (vistoria, avaliação e o arbitramento) não têm lugar nesse procedimento.

Com efeito, a Lei 12.153 expressamente excluiu de sua competência as causas sobre bens imóveis (artigo 2º., parágrafo 1º., inciso II), e como a vistoria é a modalidade de perícia que se aplica apenas a imóveis, daí decorre que essa modalidade de perícia não pode ser adotada nas ações de competência do Juizado especial de Fazenda Pública.

O mesmo se pode concluir quanto à avaliação e arbitramento, porque nas ações de competência do Juizado especial de Fazenda Pública, o pedido, quando de natureza condenatória, não pode ser ilíquido, já que o Legislador erigiu, como critério de competência, um limite ao conteúdo patrimonial a obter-se (sessenta salários mínimos), o que além de exigir que o autor faça, já peça inicial, atribuir à causa um valor (líquido) que corresponda à expressão econômica do que pretende, obsta que no curso do procedimento venha a se instalar uma controvérsia fática quanto ao valor do bem da vida pretendido, o que, se ocorrer, determinará que o juiz remeta a matéria às vias ordinárias, como consequência do reconhecimento de que o exame da matéria sobre-excede o campo cognitivo do Juizado especial da Fazenda Pública.

É de se observar, pois, que o artigo 10 da Lei 12.153/2009 refere-se apenas a exames técnicos, e o artigo 35 da Lei 9.099/1995 (“Lei dos Juizados Especiais”), aplicado subsidiariamente às ações da competência do Juizado especial de Fazenda Pública, autoriza que o juiz inquira técnicos de sua confiança, quando a prova do fato exigir. Assim, nas ações de competência do Juizado especial de Fazenda Pública, pode-se produzir perícia, mas apenas sob a modalidade do exame técnico, seja em sua forma comum (produção de um laudo), seja em sua forma simplificada (com a inquirição do perito em audiência).

É necessário ressaltar, contudo, que o exame técnico (em sua forma comum, com a apresentação de um laudo) somente poderá ser autorizado quando sua produção não criar entrave à simplicidade e celeridade, de forma que, em se instalando uma complexidade fática que faça exigir um longo tempo na produção da prova, então nesse caso o exame técnico não poderá ser autorizado, cabendo ao juiz apontar o “non liquet”, para o fim de declarar que o campo cognitivo da ação não permite alcançar o desimplicar daquela lide, reconhecendo, nesse hipótese, a carência de ação por ausência do interesse de agir (em sua modalidade adequação instrumental), remetendo o autor às vias ordinárias. Portanto, na hipótese de haver a necessidade da produção de uma prova pericial mais complexa, o juiz não aplicará a regra do “ônus da prova”, de que trata o artigo 373 do novo Código de Processo Civil, pois conforme observa MOACYR AMARAL SANTOS,8 a regra do ônus da prova é uma regra geral, mas que admite exceções – e uma dessas exceções envolve sua aplicação nas ações da competência do Juizado especial de Fazenda Pública, quando o objeto periciado reclamar a produção de uma prova pericial mais complexa.

Em que casos o exame técnico pode de ser utilizado nas ações do Juizado especial de Fazenda Pública? Consideradas as matérias de sua competência, pode-se, a título de exemplo, mencionar a ação em que se discute acerca da capacidade laboral (física ou psicológica) de um servidor público ao exercício de uma determinada função ou atividade, ou ainda o exame de documentos contábeis que sejam de interesse em uma demanda de natureza fiscal.

Quanto à forma pela qual se produzirá o exame técnico em sua forma mais comum, é de se observar que a Lei 12.153 cuidou apenas de fixar o prazo para a entrega do laudo, a ocorrer em até cinco dias antes da audiência (artigo 10). Nada tendo o Legislador disposto quanto aos prazos para a indicação de assistente técnico e formulação de quesitos, é de se presumir que se devam observar os prazos gerais fixados no Código de Processo Civil. Quanto a incidentes que podem ocorrer durante a produção da perícia, caso, por exemplo, da apresentação de quesitos suplementares, de revelar-se a perícia mais complexa do que a princípio se lobrigava, da necessidade da realização de uma nova perícia, caberá ao juiz analisar se tais incidentes podem comprometer a celeridade no julgamento da demanda, caso em que, ou não os admitirá, ou, se tiver que os admitir porque pertinentes, declarará o “non liquet”, remetendo o autor às vias ordinárias. A produção do exame técnico sob a sua forma da “prova técnica simplificada” é realizada em audiência, com a inquirição do perito, segundo o que estabelece artigo 464, parágrafo 3º., do novo Código de Processo Civil.

1 STJ, Jurisprudência em Teses, edição 89, Direito Processual Civil, Juizados Especiais, tese 3.

2 Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXXIX, tomo 12, 1912, Trabalhos Jurídicos, p. 151, Ministério da Educação e Cultura.

3 Cf. Moacyr Amaral Santos, Prova Judiciária no Cível e Comercial, v. V, p. 134-137, Max Limonad, São Paulo.

4 J. M. Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, v. III, p. 408, 2ª. edição, 1940, ed. Freitas Bastos.

5 Cf. art. 606, em sua redação original: “Far-se-á a liquidação por arbitramento quando: (…) determinado pela sentença ou convencionado pelas partes; (…) o exigir a natureza do objeto da liquidação”.

6 Comentários ao Código de Processo Civil, v. IV, Forense, 3ª. edição, 1982, Rio de Janeiro.

7 Cf. Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, v. III, p. 409, 2ª., edição, 1940, ed. Freitas Bastos, São Paulo.

8 Comentários ao Código de Processo Civil, v. IV, p. 29, Forense editora.