PANDEMIA. RODÍZIO DE VEÍCULOS COMO MEDIDA DESTINADA A AUMENTAR O GRAU DE ISOLAMENTO SOCIAL. ILEGALIDADE FORMAL E MATERIAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O RÍGIDO RODÍZIO DE VEÍCULOS COMO MEDIDA DESPROPORCIONAL PARA AUMENTAR O ISOLAMENTO SOCIAL.

Valentino Aparecido de Andrade

 Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

Depois que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a autonomia administrativa dos estados-membros e dos municípios para a decretação das medidas que entendessem convenientes em razão da pandemia pelo “Coronavírus”, era bastante previsível que surgiriam medidas de todo o jaez, e  que muitas delas não atenderiam a critérios de legalidade formal e substancial. É o que sucede com a medida decretada pela Prefeitura de São Paulo que ampliou, além do limite do razoável, a restrição de veículos.

                                    Por meio de um decreto,  a Prefeitura de São Paulo ampliou os locais,  dias e horários para a restrição de veículos, de modo que agora todo o perímetro da cidade está alcançado pela restrição, a qual vale para todos os dias da semana e com aplicação abrangendo as vinte e quatro horas do dia,  dividindo-se os veículos em placas com final par e ímpar, criando, por óbvio, uma carga de restrição rígida além de um limite que pode ser considerado como razoável, mesmo se levarmos em conta as  excepcionais  circunstâncias da realidade subjacente.

                                    Trata-se, é certo, de um ato discricionário o praticado pela Prefeitura de São Paulo. Mas como enfatiza a doutrina, isso não obsta que certos elementos que compõem esse tipo de ato administrativo devam ser analisados pelo Poder Judiciário em controle da legalidade substancial, como passou a entender a moderna teoria do direito administrativo, sobretudo partir de uma jurisprudência construída  na França pelos julgamentos de seu “Conseil d’Etat”, firmando-se  a tese, hoje consolidada,  de que a imunidade jurisdicional dos atos discricionários não abarca certos elementos do ato administrativo, conforme nos relata o juspublicista português, SÉRVULO CORREIA em sua obra “Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos”.

                                    Sobretudo quando uma medida estatal restringe direitos fundamentais, cabe ao Poder Judiciário a análise de sua legalidade substancial, do que se desincumbe por meio do princípio da proporcionalidade e por suas formas de controle,  que consistem na análise da natureza da medida adotada pelo Estado, a sua adequação em face da finalidade a ser alcançada e a sua indispensabilidade, além da ponderação dos interesses envolvidos no conflito, em função do que se cotejam as vantagens e a carga de sacrifício imposta.

                                    Como observa SÉRVULO CORREIA na obra mencionada:

O princípio da proporcionalidade (…) tem sido aplicado pelos tribunais em especial (mas não apenas) quando o acto administrativo possa ter violado direitos fundamentais, como a liberdade do exercício de profissão, a liberdade de expressão, de informação ou de imprensa ou o direito de propriedade.

“Tal como tratada pela jurisprudência e pela doutrina da Alemanha Federal, a proporcionalidade (…) surge como um conceito compósito, susceptível de um entendimento amplo e de um entendimento restrito, para o qual se pode usar também a designação de ‘Proportionalität”. Em sentido amplo, a proporcionalidade significa uma relação de adequação entre o meio e o fim. O controlo de sua verificação abrange quatro planos: a) a determinação do fim a prosseguir; b) o juízo sobre a aptidão ou adequação (…) do meio adoptado; c) o juízo sobre a indispensabilidade (…) do meio adotado; d) o juízo sobre o equilíbrio (…) do meio em relação ao fim. É esta última requerida qualidade que também se refere como proporcionalidade em sentido estrito (…)”.

                                    Quanto ao meio utilizado pela Prefeitura de São Paulo – o do decreto -, verifica-se que a Prefeitura de São Paulo fez sobre-exceder a finalidade de uma mera regulamentação que é natural ao decreto como instrumento de legislação,  para por meio dele legislar sobre uma matéria que diz respeito e diretamente atinge direitos fundamentais, como  são os direitos de  ir e vir e o de propriedade do veículo, de modo que o decreto não poderia ter sido utilizado como instrumento de legislação para regular esse tipo de matéria. Apenas uma lei formal a poderia regular.

                                    No que concerne à adequação e finalidade, a medida de restrição de veículos não atende a seu  objetivo, porque não constitui meio eficaz para aumentar o nível de isolamento social, dado que não obsta a que as pessoas movimentem-se pelas ruas, senão que apenas veda que elas se utilizem de seu carro próprio,  sem impedir, portanto,  que as pessoas  possam se utilizar de veículos de transporte remunerado, como táxis e de aplicativos, o que significa dizer que em nada contribui para aumentar o grau do isolamento social. E a reforçar essa inadequação com a finalidade que pretende atingir, tem-se que a Prefeitura de São Paulo, como compensação à restrição dos veículos particulares, anunciou que vai ampliar a frota de ônibus, o que vai em sentido diametralmente oposto ao pretendido, porque aumentará consideravelmente o número de passageiros e de pessoas se locomovendo por esse tipo de transporte, o mesmo vindo a suceder com o número de táxis e de veículos de aplicativos, revelando-se, pois, uma medida que não atende à finalidade.

                                    Procedendo-se, outrossim,  ao cotejo das vantagens e inconvenientes dessa momentosa medida estatal, a dizer,  se ponderarmos a respeito dela e do que ela produz, e também de consistir ou não em uma medida indispensável, constatamos que a restrição dos veículos em grau tão exacerbado como o adotado pela Prefeitura de São Paulo criará enormes inconvenientes de ordem social e individual, excessivos em grau tão considerável que suprime as vantagens que a mesma medida poderia gerar –  se há vantagens, porque mesmo essas supostas não serão atingidas como identificados na análise feita acima entre a adequação e finalidade, no que se configura a sua dispensabilidade, portanto.

                                    De modo que o decreto em questão, sobre ser formalmente inconstitucional como instrumento de regulação de matéria que diz respeito a direitos fundamentais do particular,  revela a presença de manifesta ilegalidade substancial quanto à sua inadequação, e, sobretudo, quando,  objeto de ponderação, bem caracteriza a produção de uma acentuada carga de sacrífico, além do limite do razoável.