O JUIZ-BUROCRATA

O JUIZ “FUNCIONÁRIO PÚBLICO” (OU COMO TAMBÉM SE O PODE CHAMAR “O BUROCRATA”).                                 Valentino Aparecido de Andrade

                                               Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

                                      Ao publicar seu primeiro romance, O Crime do Padre Amaro, o genial escritor português, Eça de Queiroz, acusado de promover um ataque à Igreja, foi obrigado a refundir o texto, o que lhe deu a oportunidade para criar um personagem que, embora hoje não figure dentre os mais conhecidos da vasta galeria queiroziana, apresenta certo relevo. Trata-se do padre Ferrão, criado por Eça para tornar explicita que a sua intenção naquele romance não era atacar a Igreja como Instituição, mas apenas demonstrar que boa parte  de seus integrante era o que se podia chamar um tio de “padre funcionário-público”, para quem o sacerdócio constituía simplesmente uma carreira, e não uma verdadeira vocação, e que o culto representava um modo de vida, em lugar de ser um sacrifício.[1]

                                      E como a demonstrar qual fora seu objetivo, Eça, em uma carta de 1878, disse da obra então publicada:

“O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia quase dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc.; e apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático – preparar a sua ruína”.[2]

                                      Eça recorta,  da sociedade em que viveu, um personagem (o padre) que era como um mecânico, no sentido em que atuava de modo de automatizado. Como bem identificou o nosso escritor e jornalista Olívio Montenegro, ver foi a grande faculdade de EÇA DE QUEIROZ, que se era romântico na forma, possuía o espírito mais realista,[3] o que, com certeza, permitiu-lhe ver como os padres desempenhavam seu ofício.

                                      Como diz ALVARO LINS, em sua História Literária de Eça de Queiroz, o destino levara EÇA a Leiria, para ali atuar como administrador do conselho, o que lhe deu a oportunidade de reunir, durante seis meses, uma completa documentação pessoal que viria a constituir o material que mais tarde empregaria em seu livro, em que o tema principal é o clero, não como instituição, mas em seu elemento humano, o mau padre, sem vocação. Diz o famoso crítico literário:

O centro do romance é esta vida de província. Ao lado dos amores de Amaro e de Amélia, Eça reanima, literariamente, as cenas da vida devota de Leiria: a influência de uma religião deturpada na sua realidade, o ridículo do beatismo ignorante e inconsciente, algumas figuras de padres que haviam tudo perdido – inclusive o amor da caridade, sem o qual não havia virtude, como assinala Maritain”.[4]

                                      Pois EÇA o que mais colocava nos seus romances, como bem observou Olívio, era a sua experiência vivida em Leiria, quando ali estivera a organizar um jornal, o que lhe propiciou perceber como alguns padres desempenhavam burocraticamente a sua atividade. O nosso BILAC disse o mesmo em uma crônica datada de 28 de abril de 1890 (publicada na obra BILAC, O Jornalista, v. I, p. 21).

                                      Em nossa magistratura, tal como na Igreja, também podemos identificar o juiz “funcionário público”, aquele para quem a judicatura não representa senão que uma atividade burocrática, que ele desempenha mecanicamente, com um automatismo próprio de quem não se preocupa com a qualidade do que lhe saí das mãos, mas tão somente com a quantidade do que é necessário produzir.

                                      Dizia HANNAH ARENDT que o governo,  que não é nem da lei, nem dos homens, mas de escritórios ou computadores anônimos, cuja dominação inteiramente despersonalizada pode vir a se tornar uma ameaça maior à liberdade e àquele mínimo de civilidade,[5] deve ser a nossa maior preocupação.  Assim, o governo burocrático projeta-se do poder político ao sistema de justiça, quando a magistratura torna-se apenas um expressão dessa mesma burocracia.

                                      Foi o filósofo francês Michel Foucault o primeiro a analisar essa questão, examinando de que forma o poder se exerce concretamente e em detalhe, suas técnicas e táticas, em um campo do saber que tinha até então ficado à margem da análise política. Dizia Foucault que o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso.[6] É sob esse aspecto, pois, que se deve analisar o que o nosso Código de Processo Civil introduziu em nosso ordenamento jurídico, quando passou a dar especial destaque a instrumentos que buscam unificar entendimentos, impondo aos juízes obedeçam, sem mais, a  decisões emanas de tribunais, impedindo que os juízes decidam certos temas. Há aí o discurso de que tais instrumentos produzirão segurança jurídica. É, pois, uma relação de poder que está aí em questão.

                                      Seja com a súmula vinculante, criada antes mesmo da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil de 2015, seja pelos instrumentos que esse Código introduziu em nosso sistema processual, o Legislador brasileiro dá bem a compreender que seu objetivo é fazer com o que o juiz deixe de pensar, porque deixará de julgar, bastando faça reproduzir, em um caso em concreto, o que os tribunais superiores decidiram com a nota de aplicação geral e obrigatória.

                                      Por detrás desses instrumentos, está uma evidente estratégia que é a de transformar o juiz em um juiz burocrata – e controlável, em um juiz que deve aguardar pelas decisões dos tribunais superiores, de forma que, proferidas tais decisões, caiba-lhe tão somente  as fazer cumprir, como se ele mesmo as tivesse proferido. O sistema processual, tal como engendrado e colocado em vigor pelo Código de Processo Civil de 2015,  objetiva controlar o juiz, impedindo-o de pensar.

                                      Como previa SAINT-SIMON, no futuro a administração das coisas substituirá o governo das pessoas. No caso do nosso sistema processual,  isso parece já estar a ocorrer, porque ao vincular o juiz obedecer a decisões fixadas por tribunais, não há dúvida de que a atividade de pensar do juiz é substituída  por uma engrenagem, da qual ele – o juiz – faz parte, tanto quanto o operário no sistema capitalista.

                                      Caberá ao juiz brasileiro portar-se como alferes do conto “O Espelho”, de Machado de Assis, que só se sentia alferes quando colocava o uniforme e ia à frente do espelho, para ver a sua imagem, sozinho, sem função, porque não havia com quem partilhar o exercício da função pública?

                                      Em um regime democrático,  pode-se tolerar ou admitir um instrumento jurídico que tenha por finalidade única disciplinar (rectius:  suprimir) a atividade de pensar do juiz,  como ocorre com esses instrumentos de que falamos aqui, que acabam por transformar o juiz em um funcionário público burocrata? Harmonizam-se, nesse caso, os valores da liberdade de pensar e da segurança jurídica?

                                      Assim, se é verdade, como diz HART, e como dissera antes dele KELSEN, de que na maioria dos casos que chegam aos tribunais, nem as leis, nem os precedentes em que as regras estão alegadamente contidas, admitem apenas um resultado, e que nos casos mais importantes há sempre uma escolha por realizar,[7] então se terá que reconhecer que um ordenamento jurídico como o nosso, que adota instrumentos como os da súmula vinculante, da repercussão geral, e mais recentemente, o do incidente de demandas repetitivas, acaba por estimular o juiz “burocrata”  a deixar de pensar, incentivando-o a não fazer escolhas, mas apenas o adotar aquela escolha fixada por meio daqueles instrumentos. De sorte que, adotando-se tais instrumentos,   pode  haver um ganho em termos de segurança jurídica, mas a compasso perde-se muito na qualidade do trabalho do juiz.

                                      Os institutos nos quais a jurisdição se expressa e se materializa devem dar azo, tanto quanto possível, a que o juiz desenvolva a reflexão e a consciência de seu papel social.

                                      Cabe investigar, portanto, se esses instrumentos processuais – súmula vinculante, incidente de demandas repetitivas, repercussão geral, etc… – não buscam atender, no fundo, a interesses políticos, e que o discurso de que objetivam prestigiar a segurança jurídica não escamoteia aquele fim, senão que o explicita. . Daí a importância de os encarregados de distribuir justiça – os juízes – desenvolverem uma crítica sobre o sistema em que estão inseridos, examinando-os sob outro enfoque, que não apenas o da eficiência. Como dizia MARX, não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, ao contrário, é a  existência social que determina a sua consciência.

                                      O que está em causa, pois, é o de desenvolver-se um estudo crítico acerca do que está subjacente a esses instrumentos processuais. Não se pode, com efeito, suprimir de nosso sistema de justiça a sua melhor parte –  que é a do desenvolvimento do Direito.

                                      Que o Supremo Tribunal Federal, exercendo o controle de constitucionalidade material por meio de uma correta aplicação do princípio da proporcionalidade, pondere os valores em conflito, tornando prevalecente aquele que, sem dúvida, é o que nos garantirá a subsistência de um verdadeiro Estado de Direito.

[1] Cf. Jose Maria D’Eça de Queiroz, Cartas Inéditas de Fradique Mendes, p. XI e XII, ed. Porto, 1929.

[2] Cf. Josué Montello, Aluísio Azevedo e a Polêmica d’o Mulato, p. 42, coleção Documentos Brasileiros, Livraria José Olympio/MEC, Rio de Janeiro, 1975.

[3] Conceito e Técnica do Romance em Eça de Queiroz, in Livro do Centenário de Eça de Queiroz, p. 111-112, edições Dois Mundos, Lisboa-Rio,

[4] História Literária de Eça de Queiroz, p. 95-96, edições O Cruzeiro, 1964, Rio de Janeiro.

[5] Responsabilidade e Julgamento, p. 66, trad. Rosaura Eichenberg, Companhia das Letras, 2004.

[6] Microfísica do Poder, p. 5 e 8, 18ª. ed, Graal, Rio de Janeiro, 2003.

[7] Herbert L. A. Hart, O Conceito de Direito, trad. Ribeiro Mendes, p. 16-17, 3ª. ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.