1. INTRODUÇÃO.
Na década de cinquenta, o Governo brasileiro, fazendo aplicar o que havia sido previsto no Código de Águas (Decreto de número 24.643, de 10 de julho de 1934), assume efetivamente o papel de agente interventor no setor de energia elétrica, investindo na construção de usinas hidrelétricas e criando, em 1957, a empresa federal Central Elétrica de Furnas. Um pouco antes, em 31 de agosto de 1954, institui-se o primeiro imposto sobre a energia elétrica, com o objetivo de arrecadar receita para a ampliação desse setor, de importância estratégica ao desenvolvimento industrial do país. Importante observar que até ali o setor elétrico estava quase todo sob o comando da iniciativa privada, o que conduziu o Governo federal a instituir um fundo destinado a prover e financiar as instalações das empresas estatais que viriam a surgir, e que atuariam nas atividades de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. As receitas desse fundo seriam compostas, em parte, pelo que se arrecadasse com o imposto então criado, e como as atividades de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica estavam a ser executadas por empresas privadas (a maior parte formada por capital estrangeiro), estabeleceu-se o valor do consumo da energia elétrica como a única base de cálculo desse imposto.
Assim, a energia elétrica passou a ser tributada sob a forma de um imposto sobre o consumo, de competência da União Federal, conforme fixou a Lei federal de número 2.308, de 31 de agosto de 1954, que em seu artigo 3º. estabelecia: “A energia elétrica entregue ao consumo é sujeita ao imposto único, cobrado pela União sob a forma de imposto de consumo, pago por quem a utilizar”.
Posteriormente, quando surge a Constituição de 1967, já haviam sido criadas a empresa federal de energia elétrica (Central de Furnas) e várias companhias estatais, além da Eletrobrás (criada em 1961), de modo que o País contava com uma nova estrutura de rede elétrica, assumindo o Estado a execução das atividades de geração, distribuição e transmissão, o que permitiu ao Legislador modificar a hipótese de incidência do imposto, não mais cobrado apenas sobre o consumo, mas abarcando as operações de geração, distribuição e transmissão da energia elétrica. Com efeito, o artigo 22, inciso IX, da Constituição de 1967, instituiu, como de competência da União (mas com a receita sendo distribuída a outros entes públicos, para que também pudessem atuar no setor elétrico), o imposto incidente sobre a “produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica”, de modo que o núcleo material erigido pelo Legislador para a formação da hipótese de incidência de tal imposto modificou-se substancialmente, porque passou a ser constituído pelas operações individualizadas da produção, importação, distribuição e consumo de energia elétrica, o que determinava que, naquele sistema normativo, a base de cálculo poderia corresponder aos valores de cada uma dessas operações, o que levou o jurista PONTES DE MIRANDA a escrever, comentando acerca desse imposto: “A energia elétrica é qualquer energia elétrica e qualquer que seja o meio para o seu uso. Não importa saber-se quem a vai usar, porque o imposto pode recair na produção, na energia in itinere, ou na importação ou na distribuição ou no consumo. (…) A distribuição e o consumo, qualquer que seja a contraprestação, ficam sob a lei impositiva. (…)” (Comentários à Constituição de 1967, tomo II, RT).
A Constituição de 1969 pouco modificou esse regime jurídico, limitando-se a instituir um imposto único de competência da União Federal, nele reunindo, sob uma mesma estrutura normativa, as operações relativas à produção, comércio, distribuição, consumo, importação e exportação de energia elétrica, lubrificantes e de combustíveis, mantendo, contudo, os pressupostos legais de incidência que vinham da Constituição de 1967, de modo que se pode afirmar que tal imposto caracterizava-se como um imposto sobre o consumo, tal como o descreve o tributarista italiano, Achille Donato Giannini em sua obra “Instituzioni di Diritto Tributario” (p. 463, A. Giuffè editor, 1965, Milão): “Na genérica denominação de imposto sobre consumo, costuma-se compreender tudo aquilo que é destinado a incidir, em definitivo, sobre o consumidor. Porém, em geral, não é este último o sujeito passivo da imposição, mas uma outra pessoa, que vem a encontrar-se em certa relação com o bem destinado ao consumo, antes que ele venha a ser recebido em mãos do consumidor”.
E como adscreve esse conhecido tributarista italiano, o fato gerador do imposto sobre o consumo pode ocorrer em diversos momentos, à escolha do Legislador, podendo, pois, ocorrer no momento da produção da mercadoria destinada ao consumo, como pode ocorrer no momento da passagem da mercadoria das mãos de seu produtor às do comerciante, ou ainda no momento em que ela é colocada à disposição de quem a vai consumir. Trata-se, pois, de um aspecto relacionado ao momento de ocorrência do fato gerador, mas que também atua diretamente na formação da hipótese de incidência do imposto, com efeitos que se projetam sobre a base de cálculo.
Como se constata, a partir da Constituição de 1967 o Legislador recolheu de forma diferente do que vinha da legislação anterior as características da energia elétrica como objeto a ser conceituado ou descrito no mundo do direito tributário, optando por aquelas características fáticas que lhe pareciam as mais adequadas à realidade então existente (quando o Estado passara a gerenciar e a executar, ele próprio, as atividades de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica), criando assim um conceito legal-tributário específico, extraído dessa mesma realidade. Como afirma GERALDO ATALIBA:
“Assim, a lei – ao descrever um estado de fato – limita-se a arrecadar certos caracteres que bem o definam, para os efeito de criar uma h.i.. Com isto, pode negligenciar outros caracteres do mesmo, que não sejam reputados essenciais à configuração de uma h.i.. Pode, portanto, o legislador arrolar muitos ou só alguns dos caracteres do estado de fato, ao erigir uma h.i.. Esta, como conceito legal, é ente jurídico bastante em si”. (“Hipótese de Incidência Tributária, p. 56, Malheiros editores).
Assim, se no regime da Lei 2.308 o imposto sobre a energia elétrica incidia apenas sobre o consumo, nas Constituições de 1967 e 1969 modificou-se a hipótese de incidência, porque se previu que o fato gerador poderia ocorrer já no momento em que a energia elétrica fosse produzida, ou quando distribuída, embora com a ressalva de que o imposto incidiria uma só vez sobre qualquer uma dessas operações (CF/67, art. 22, parágrafo 5º., e CF/69, art. 21, inciso VIII).
Andando o tempo, importantes transformações tecnológicas ocorreram no setor elétrico de nosso País, principalmente com a implantação de redes de distribuição e de transmissão de energia elétrica, as quais permitiram não apenas a expansão do sistema, mas sua interconexão, iniciada em 1963 quando, instalada a usina de Furnas, foi possível estabelecer-se uma ligação entre parte dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Ocorreu, portanto, uma modificação orgânica no setor elétrico, com efeitos em diversas áreas, inclusive na do direito tributário.
Em 1987, quando se instala a Assembleia Nacional Constituinte, o setor elétrico brasileiro contava já com grandes hidrelétricas em operação, e a estrutura tecnológica e administrativa desse setor tornara-se bastante complexa. Acresce que o sistema elétrico estava interligado, de maneira que as empresas concessionárias de energia elétrica passaram a se utilizar das redes de distribuição e de transmissão, pagando por tal uso e repassando ao consumidor seu custo, dentro do que permitiam as regras de política tarifária fixadas pelo Governo Federal.
A Constituição de 1988 modifica profundamente o sistema de financiamento do setor elétrico, deixando de instituir o “imposto único sobre a energia elétrica”, como era chamado o imposto criado na Constituição de 1969, e de autorizar a cobrança de empréstimos compulsórios, que atuavam como fonte de receita para investimento no setor elétrico. Atento à realidade econômica que vinha desde a crise de 1980, o Legislador constituinte prefigurou que o Poder Público não detinha mais as condições necessárias para investir no setor elétrico, e que a solução passaria necessariamente pela privatização desse setor.
Essa privatização ocorreu no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, que, em julho de 1996, consegue aprovar a criação da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, a partir do que promove uma significativa reforma estrutural do setor elétrico, cujo objetivo principal foi o de instituir, dentro de um novo modelo, um mercado livre, no qual as empresas, estatais e privadas, competiriam na produção e comercialização da energia elétrica. A política tarifária deveria observar as regras desse novo modelo concorrencial.
Está visto, pois, que foi a realidade econômica que levou o Governo Federal à privatização do setor elétrico, e que isso fez com que não houvesse mais a necessidade ou mesmo o interesse em arrecadar receita por meio de impostos e a transferir às empresas desse setor, as quais deveriam agora buscar outras fontes de receita, e que o preço cobrado pela energia elétrica tornar-se-ia, no modelo de livre competição, essa principal fonte.
A transformação da energia elétrica em mercadoria dá-se, portanto, no contexto da privatização do setor elétrico. À medida que melhor se compreende esse fenômeno político-econômico, percebe-se o motivo de a Constituição de 1988 ter deixado de tributar, isoladamente, as operações de geração, distribuição, transmissão e de consumo de energia elétrica, enfeixando todas essas operações na operação de circulação da energia elétrica, erigindo-se esta (a energia elétrica) como mercadoria, inserindo-a assim no regime jurídico-legal do ICMS.
No modelo de livre concorrência que passamos a adotar (embora com acentuada regulação estatal), o preço cobrado do consumidor de energia elétrica é formado tanto pelo valor correspondente à quantidade de energia elétrica que é colocada à sua disposição em determinado período de tempo, quanto por tarifas que custeiam as operações técnicas necessárias a que a energia elétrica chegue a seu destino, como são as operações de geração, distribuição e transmissão. Esse aspecto é de importância fundamental no exame do nosso tema.
2. O ICMS SOBRE A ENERGIA ELÉTRICA.
Trouxe a Constituição da República de 1988 importantes modificações no campo do direito tributário, e dentre elas está a criação de um novo imposto sobre a energia elétrica. Com efeito, em seu artigo 155, ao regular os tributos de competência dos Estados-membros e do Distrito Federal, a Constituição de 1988 instituiu, como hipótese de incidência do ICMS, as operações relativas à energia elétrica. Assim, além de o imposto não ser mais da competência da União Federal, passou a ter uma nova estrutura jurídico-legal, em consequência de o Legislador ter modificado sensivelmente a hipótese de sua incidência, ao erigir a energia elétrica como mercadoria para fins tributários.
Estruturando a hipótese de incidência do ICMS de modo que respeitasse a característica nuclear desse tipo de imposto em nosso ordenamento jurídico (imposto que incide sobre a circulação de mercadoria), a Constituição de 1988 não se refere individualmente às operações de produção, distribuição e consumo, mas apenas a seu produto final (a mercadoria como tal).
Segundo ALFREDO AUGUSTO BECKER: “Quando a regra jurídica de tributação escolhe para base de cálculo (entre os múltiplos fatos que compõem sua hipótese de incidência) o fato consistente no consumo de coisa ou serviço, o tributo criado pertencerá ao gênero jurídico do imposto de consumo”. (“Teoria Geral do Direito Tributário”, p. 375, Saraiva editora, 1963). No regime da Constituição de 1988, a energia elétrica não é mais objeto de um imposto sobre consumo, porque a hipótese de incidência deixa de ser a geração, distribuição, transmissão ou consumo da energia elétrica, mas a circulação desta como mercadoria. Obviamente, modificada a hipótese de incidência, a base de cálculo também se alterou.
Destarte, a Constituição de 1988, ao transformar a energia elétrica em uma mercadoria, fez criar um novo imposto, de modo que seu suporte fático-jurídico deixa de ser as operações individualizadas da geração, distribuição e consumo da energia elétrica, para ser o negócio jurídico realizado entre a concessionária de energia elétrica e o consumidor, materializado na operação que envolve a circulação desse bem. E é a circulação da mercadoria o elemento que confere fisionomia própria ao ICMS em nosso sistema normativo.
Daí que, no caso do ICMS incidente sobre as operações que envolvem a energia elétrica como mercadoria, o resultado final que caracteriza a ocorrência do fato gerador radica na circulação da energia elétrica, ou seja, no momento em que ela, como tal (como mercadoria), é colocada à disposição do usuário final, dele se cobrando um preço pela utilização desse bem, surgindo aí a base de cálculo desse imposto.
Conforme demonstrou ALFREDO AUGUSTO BECKER, a base de cálculo é de acentuada importância para a definição de qualquer tributo: “Demonstrar-se-á que o critério objetivo e jurídico é o da base de cálculo (base imponível). Este, sempre e necessariamente, é o único elemento que confere o gênero jurídico do tributo. Noutras palavras, ao se investigar o gênero jurídico do tributo, não interessa saber quais os elementos que compõem o pressuposto material ou quais as suas decorrências necessárias, nem importa encontrar qual o mais importante daqueles elementos ou decorrências. Basta verificar a base de cálculo: a natureza desta conferirá, sempre e necessariamente, o gênero jurídico do tributo”.
Base de cálculo que deve necessariamente possuir uma correlação com o elemento material do pressuposto do fato imponível, de modo que a escolha da base de cálculo pelo Legislador não pode ser aleatória. No caso do ICMS, por se tratar de um imposto incidente sobre a operação de circulação de mercadoria, sua base de cálculo deve assim guardar correlação com a hipótese de sua incidência, aferindo-se essa relação de acordo com o suporte fático-jurídico que o Legislador fixou.
O que no caso do ICMS incidente sobre a operação relativa à energia elétrica determina que a sua base de cálculo deva corresponder à quantificação do que diz respeito a essa mesma operação. Ora, se para efeitos tributários a energia elétrica é uma mercadoria, e se a base de cálculo deve corresponder ao valor da operação que a envolve como tal, daí decorre que tudo o que compõe o preço final da energia elétrica como mercadoria deve integrar a base de cálculo do ICMS, lembrando-se, ainda uma vez, que a Constituição de 1988 modificou substancialmente a hipótese de incidência do imposto sobre energia elétrica. Com efeito, se na Lei 2.308/1954 a hipótese de incidência do imposto recaia na atividade de consumo da energia elétrica, e se nas Constituições de 1967 e 1969 as atividades de produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica constituíam, cada qual isoladamente, um elemento fático-jurídico para a tributação, na Constituição de 1988 surgiu um novo núcleo material da hipótese de incidência, ao se erigir a energia elétrica como mercadoria submetida ao regime de tributação pelo ICMS, cuja hipótese de incidência passou a abranger as operações relativas à energia elétrica aglutinadas em um todo, formando o conceito jurídico-legal de mercadoria.
Tendo surgido, portanto, um novo imposto, com uma nova hipótese de incidência, convém que consideremos a necessidade de evitar uma indevida confusão entre o objeto do tributo e de seu fato imponível. Acolhamos a lição do insuperável publicista FERNANDO SAINZ DE BUJANDA: “(…) O objeto do tributo, em sua significação material (…) é a manifestação da realidade econômica que trata de submeter-se à imposição (…). O fato imponível ou pressuposto legal de um tributo é, ao contrário, o conjunto de circunstâncias, hipoteticamente previstas na norma, cuja realização provoca o nascimento de uma obrigação tributária concreta. Daí que, como também se aclarou noutro lugar, o legislador possa configurar da mais diversa maneira os pressupostos objetivos do tributo, ainda sendo o mesmo o objeto que se deseja gravar. (…)”. (“Hacienda y Derecho”, tomo IV, páginas 334-335, Instituto de Estudios Politicos, Madri, 1966).
Donde se pode concluir que embora a energia elétrica, para chegar ao local do consumidor final, passe por etapas de geração, transmissão e de distribuição, e que possam essas etapas, por suas características, ser individualizadas no mundo da técnica, para efeito tributários, a dizer, para efeito da hipótese de incidência do ICMS, considerou-as o Legislador formando um todo, referidas que estão diretamente à operação de circulação da energia elétrica como mercadoria, sendo esta (a circulação) o resultado final que caracteriza juridicamente o ICMS, entendida a circulação “jurídica” como sendo a operação que pressupõe necessariamente a mudança da titularidade da mercadoria, não bastando, pois, a mera circulação física.
Desse modo, ainda que a energia elétrica, para chegar ao local onde se encontra o destinatário final (o consumidor), tenha que passar por fases ou etapas técnicas, como são as que dizem respeito à geração ou produção, distribuição e transmissão, para efeitos tributários há que se considerar que a energia elétrica é uma mercadoria, que é a operação de sua circulação jurídica que forma o núcleo material da hipótese de incidência do ICMS, e que a operação de circulação ocorre no momento em que a energia elétrica passa à titularidade do destinatário final, que dela pode se utilizar como seu “proprietário”.
Logo, as etapas anteriores à essa operação de circulação podem e são individualizadas no mundo da técnica, e podem ter uma quantificação específica necessária ao modelo de livre concorrência que o nosso País adotou a partir de 1996, mas isso não é de relevo considerar no campo do direito tributário, porque a Constituição de 1988, erigindo a energia elétrica como mercadoria, e a fazendo objeto do regime jurídico do ICMS, fixou a operação de circulação como sendo aquela que forma o núcleo material desse imposto, de maneira que a base de cálculo deve necessariamente guardar correlação com esse núcleo material.
3. A BASE DE CÁLCULO DO ICMS INCIDENTE SOBRE A ENERGIA ELÉTRICA.
Sedimentou-se na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que todos os valores que compõem o preço final de uma mercadoria devem ser considerados na base de cálculo do ICMS, excluindo-se apenas aqueles valores que decorram de “elementos estranhos ao preço” (cf. JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, ICMS – Teoria e Prática, p. 174, 5ª. Edição, Dialética editora). Assim, por exemplo, valores que dizem respeito a seguro e juros devem ser excluídos da base de cálculo do ICMS, porque possuem natureza jurídica diversa daqueles elementos que compõem diretamente o preço da mercadoria.
Como afirma Roque Antonio Carraza, a base de cálculo “deve apontar para a hipótese de incidência do tributo”1. O que equivale a dizer que todos os valores que formam o preço final de uma mercadoria, e que mantenham relação direta com os elementos da hipótese de incidência, devem integrar a base de cálculo do ICMS.
O critério para aferição da base de cálculo do ICMS radica, pois, na definição da natureza econômica e jurídica do valor que é acrescido ao preço da mercadoria.
À vista desse critério, analisemos se as tarifas que são cobradas das empresas concessionárias de energia elétrica, e que elas repassam ao consumidor final, devem ou não integrar a base de cálculo do ICMS.
No modelo de privatização e da livre concorrência adotado em nosso País, o preço da energia elétrica é fixado pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, e busca gerar em favor das empresas concessionárias uma receita que garanta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão desse serviço de utilidade pública. O preço final, cobrado do consumidor sob a forma de uma tarifa, é composto pelo preço da energia elétrica em si, e também por custos decorrentes de sua geração, transmissão e distribuição, além de encargos setoriais e tributos (PIS, COFINS, ICMS e COSIP).
Em um sistema interligado, as empresas concessionárias, repartidas por regiões, utilizam-se das redes de transmissão e de distribuição, e é por meio delas que levam a energia elétrica ao consumidor final. São redes compostas por fios condutores, transformadores e outros diversos equipamentos, formando um sistema extenso e bastante ramificado, ao qual o consumidor final liga-se tecnicamente por meio da concessionária com a qual mantém contrato de prestação de serviços. Os preços que são cobrados pela utilização dessas redes são fixados pela ANEEL, de forma que as concessionárias apenas repassam ao consumidor o valor que é estabelecido por essa agência estatal.
A energia elétrica é produzida e transmitida desde a sua fonte geradora até a interligação com as empresas concessionárias que realizam sua distribuição. O preço final da energia elétrica, fixada pela ANEEL, remunera não apenas a energia elétrica que é colocada à disposição do usuário, mas quantifica todos os custos que compreendem as operações de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, porque sem a geração da energia elétrica não pode haver sua transmissão e distribuição, e sem estas a energia elétrica não chega ao consumidor final. É por isso que os custos decorrentes da transmissão e da distribuição devem compor o preço final da energia elétrica.
Portanto, as tarifas de transmissão e distribuição quantificam algo que está diretamente ligado não apenas à existência da mercadoria (energia elétrica), mas à operação tributada (a circulação da mercadoria), porque sem a transmissão e distribuição, em um sistema interconectado como o nosso, não é possível que a energia elétrica seja levada ao consumidor final, o que, por óbvio, impede a circulação da energia elétrica – e se não há circulação da mercadoria, não há fato gerador do ICMS. Tais tarifas constituem, pois, um custo adicional necessário à operação da circulação de energia elétrica, havendo, pois, entre as operações de transmissão e circulação uma relação direta com a hipótese de incidência do ICMS, e por isso tais tarifas devem integrar a base de cálculo desse imposto.
Por fim, é necessário salientar a distinção entre base de cálculo do ICMS e o momento temporal de ocorrência do fato gerador desse imposto, distinção da qual olvida quem propugne aplicar a Súmula 166 do egrégio Superior Tribunal de Justiça à temática em questão. Diz a referida Súmula: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. Com efeito, o aspecto temporal da ocorrência do fato gerador nada tem a ver com a base de cálculo desse imposto, de maneira que não entra em causa, para se fixar a base de cálculo do ICMS, se a saída da mercadoria ocorre apenas no momento em que ela chega ao destino final, ou se essa saída se dá antes, no momento da geração ou de sua distribuição, porque esses aspectos seriam de se considerar se estivéssemos a analisar o momento temporal da ocorrência do fato gerador do ICMS, mas obviamente não é disso que se trata quando se está a perscrutar da base de cálculo desse imposto, porque nessa análise se cuida apenas de aferir se há relação direta entre os elementos que formam a base de cálculo e aqueles que atuam na formação da hipótese de incidência do ICMS.
1 ICMS – Princípio de Não-cumulatividade – créditos relativos a bens que se destinam a uso, consumo ou ativo permanente, in “Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba”, p. 253, Malheiros editores, 1997.