DA OBRIGAÇÃO DE FAZER E SUA CONSTRUÇÃO CONCEITUAL NO DIREITO TRIBUTÁRIO (O ISS E O “LEASING”)

SUMÁRIO: 1- CARGA FISCAL X AUTONOMIA DOGMÁTICA. 2- CONTEÚDO E ALCANCE DO ARTIGO 110 DO CTN. 3. O “LEASING” E O STF. 4. A OBRIGAÇÃO DE FAZER NO DIREITO CIVIL.

 

1. CARGA FISCAL X AUTONOMIA DOGMÁTICA.

Uma excessiva carga fiscal, está claro, não produz efeitos danosos apenas no plano do desenvolvimento econômico e da distribuição de renda, tornando-a injusta; a autonomia dogmática do Direito Tributário, conquistada tardiamente se considerarmos os demais ramos tradicionais que compõem a Ciência Jurídica, e a duras penas como sói ocorre no mundo científico, com séria resistência sobretudo de parte dos financistas e civilistas, também é ameaçada quando se atinge o paroxismo na arrecadação de tributos, como ora sucede em nosso País, que no biênio 2004/2005 inacreditavelmente superou o patamar de 38% do PIB (soma das riquezas produzidas no país), fazendo com que o operador do Direito seja requestado pela sociedade a impor rigorosos limites à sanha tributária dos governantes, de modo que não permita que os direitos individuais sejam, no limite, suprimidos por um regime fiscal que desconsidere a regra-motriz da capacidade contributiva.

Nomeadamente quando a carga fiscal é elevada com o fim de obviar problemas de caixa de governos perdulários, nessas circunstâncias, com efeito, é curial que se criem mecanismos de proteção em favor do contribuinte, que por eles passa a reclamar, como observou o genial escritor português EÇA DE QUEIROZ em artigo jornalístico de alcance sociológico:

“Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação econômica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.

“Mas quando o imposto começa a aparecer vagamente entre as profundidades do déficit, o povo exalta-se, reclama, pede, exige, e às vezes deixa a sua cólera varrer os partidos e dispersar os corrilhos”.1

A Revolução Francesa de 1789, aliás, é um exemplo que a História propicia-nos à comprovação da ocorrência desse interessante fenômeno social,2 tema, de resto, também explorado pela Literatura, como por exemplo pela irônica pena do cronista mineiro PAULO MENDES CAMPOS, que atento aos problemas radicados diretamente na economia, diagnosticou uma série de moléstias cuja etiologia decorreria do influxo causado pelo fator econômico nos estados mórbidos do corpo e espírito – e dentre essas moléstias, a “metástase fiscal”, que é aquela cujo óbito é devido à insolvência, de pessoa física ou jurídica, em decorrência da falta de recursos internos para fazer face às múltiplas obrigações do fisco (!). 3

De fato, diante de uma abusiva carga fiscal, as relações entre o fisco e o contribuinte tendem a tornar-se patológicas. Concebem-se assim formas de impedir que o fisco avance desmedida e desarrazoadamente sobre a fazenda do contribuinte, para o que é fundamental o trabalho de salvaguarda do operador do Direito, que aferrado à sua consciência crítica vai encontrar no princípio constitucional da proporcionalidade um democrático e eficaz instrumento de combate em face de uma tributação excessiva.4

Mas por outro lado, engendrar formas de controle da carga fiscal pode muitas vezes colocar a segurança jurídica, alcançada a partir da autonomia dogmática do Direito Tributário, diante de um sério obstáculo, na medida em que a eliminação de tributos ou o estreitamento de seu alcance não pode se dar senão em consonância com um sistema racional e com a particular lógica que o comanda, sob o concreto risco, portanto, de se obliterarem os critérios que conferem a necessária garantia da segurança jurídica, que, ausente, produz a elevação da taxa de juros, e com ela, o déficit público, para o combate do qual os governos não dispõem de muitos remédios além do aumento da carga tributária, gerando um círculo vicioso, e o que é pior, um problema que não pode ser resolvido pelo Direito, senão que por ele apenas agravado, porquanto é a estrutura econômica da sociedade que verdadeiramente condiciona o processo da vida social, política e jurídica, como enfatizava MARX,5 desfazendo o mito de que ao Direito tudo é possível. Diz uma máxima da experiência que sai sempre enfraquecido tudo aquilo que se exagera.

Ao Direito cabe, sim, o papel de demiurgo entre a economia e a sociedade, proporcionando e garantindo a segurança das relações sociais, cumprindo-lhe executar a importante missão de reduzir a economia à ética, segundo desimplicou CARNELUTTI.6

Tanto mais que ao Direito incumbe o controle de um dos mais importantes marcos institucionais de um Estado, que é seu sistema tributário e que se constitui, ao lado do regime tarifário e da dívida pública, em uma das condições necessárias ao saneamento das finanças públicas. A propósito, não se pode olvidar que a hodierna função do Direito não se esgota mais em uma regulação meramente negativa de proteção dos direitos dos cidadãos, senão que lhe cabe, em sua mais concreta essência, impulsionar as atividades socialmente úteis.7

A evidenciar a importância do Direito Tributário, ao qual cabe regular no plano jurídico a obtenção da principal fonte das receitas públicas, consubstanciada nos tributos, o que, contudo, acarreta um problema que está na perigosa proximidade desse ramo do Direito com a Política, cuja lógica é em muitos sentidos diversa daquela adotada pela Ciência Jurídica. E a exemplo do que se dá com o Direito Constitucional, a proximidade do Direito Tributário com a Política será tanto maior quanto mais instáveis forem os sistemas político e social subjacentes.

Necessário, portanto, que o Direito Positivo cuide impedir a instabilidade do sistema tributário, causa de desconfiança no futuro e do encurtamento do horizonte decisório,8 do que se desincumbe com a definição de critérios de regulação fundados na razão e na lógica jurídica, dando azo, outrossim, a que tais critérios, extraídos de princípios e conceitos próprios a um ramo autônomo do Direito – caso do Direito Tributário – sejam perfeitamente conhecidos e estáveis, no que está a finalidade primeira do direito positivo, que é a segurança jurídica.

Daí que ao jurista caberá a difícil missão de encontrar um perfeito equilíbrio entre as necessidades do fisco e as possibilidades do contribuinte, buscando assimilar a essência dos valores que gravitam sobre cada norma jurídica tributária, bem assim dos princípios que daqueles são extraídos, explicitando os critérios que nortearão o operador do direito em sua atividade de intelecção da vontade concreta da lei, que seja, de resto, consentânea com as finalidades e objetivos desse ramo autônomo do Direito. E tão relevante quanto essa tarefa, está a de garantir a estabilidade desses critérios, sem o que, frise-se, não há sistema que opere com eficiência.

Em suma: quanto maior a estabilidade dos critérios fixados pelo Direito Positivo – pelo que zela a jurisprudência –, seguramente mais acentuada revelar-se-á a eficácia social de um ordenamento jurídico.

O que não autoriza concluir que os critérios adotados por um ramo do Direito, embora estáveis, não possam ser flexíveis a ponto que se lhes permita suportar, sem graves rupturas, as inevitáveis transformações causadas pelo tempo e sua ação na sociedade, as quais reclamam, cada vez mais, uma constante e salutar atividade de interpretação confiada à jurisprudência e ao seu indispensável labor de desenvolvimento do Direito, pois que conforme aduz KARL LARENZ: “A interpretação da lei e o desenvolvimento judicial do Direito não devem ver-se como essencialmente diferentes, mas só como distintos graus do mesmo processo de pensamento“.9

Destarte, a estabilidade dos critérios não deve traduzir a falsa idéia de rigidez e de imobilidade.

Mas a flexibilidade tem limites que lhe são impostos pela necessidade de mantença do próprio sistema, que malgrado deva ser construído a partir de um princípio finalístico comum (que se constitui na norma fundamental que dá validez a todas as normas jurídicas), é obrigado a tolerar a existência de contradições conceituais entre os diversos ramos do Direito, submetidos que se acham a princípios e critérios diversos, com evidente repercussão no plano legal, o que constitui natural obstáculo ao ideal inatingível da construção de um sistema sem contradições, como observou RADBRUCH:

Essa sistematização e construção teleológica do conteúdo jurídico é entrecortada por uma construção e sistematização segundo formas jurídicas: direito público e privado, direito das coisas e das obrigações, são divisões básicas do sistema jurídico, derivadas não da finalidade jurídica, mas da forma jurídica. (…). Construção e sistematização jurídico-teológica e jurídico-formal não raramente estão em conflito: vimos a vitória do método jurídico sobre o político-científico no direito administrativo, e quando o direito econômico e o direito trabalhista se desligaram do direito privado, através da unidade da forma impuseram a existência separada a uma área jurídica caracterizada pela unidade de fins”.10

Precisamente nesse contexto avulta o gênio de KELSEN, que está no grupo daqueles jusfilósofos cuja obra somente é possível conhecer com a necessária profundidade depois de longo tempo e de acordo com uma azada perspectiva. Afirma KELSEN, com efeito, que o Direito é apenas forma e que sob essa perspectiva a norma jurídica funciona com um esquema de interpretação.11 Entenderam alguns e durante muito tempo que KELSEN estaria assim a defender a possibilidade de o Direito ser utilizado inclusive para o arbítrio, na medida em que, prevalente apenas a forma, o Direito poderia, validamente, abarcar qualquer conteúdo. Hoje, melhor compreendido o conjunto da obra do autor da “Teoria Pura do Direito”, revela-se mais nítido que seu objetivo era tão-só o de perscrutar o aspecto ontológico (e não axiológico) do Direito, em que efetivamente sobressai o caráter formal.

É inconteste que o Direito, como mecanismo de controle social, depende diretamente da utilização de “formas” entre seus diversos ramos, o que aumenta a variabilidade de seu conteúdo. A dizer: a importância da forma no Direito é tamanha, que é dela, em verdade, a função de criação, função que à primeira vista parece reservada apenas ao conteúdo da norma jurídica.

Essa aparente “contradictio in terminis” no aspecto conceitual entre os diversos ramos do Direito é assim superada quando melhor se assimila a idéia de sistema, sem a qual não se há falar em ordem jurídica.

Com efeito, é característico de um sistema jurídico democrático e aberto como o nosso a existência de três níveis de normas estruturadas segundo uma determinada ordem hierárquica interna que busca assegurar a totalidade e operacionalidade do mesmo sistema. Esse modelo, que melhor quadra com o constitucionalismo moderno caracterizado por sua maior receptividade em face da complexidade do mundo, abarca os princípios, com sua carga mais acentuada de abstração, as regras jurídicas e nomeadamente o procedimento que assegura a racionalidade ao sistema.12 Funcionam os princípios, assim, como a representação de um sistema abstrato que se torna concreto quando entre os princípios e as regras jurídicas há uma relação dialogal.

Em relação aos princípios, porque mais abstratos, não se admite a existência de conflitos, o que não elimina a possibilidade de tensão entre eles, para solução da qual entra em jogo o critério da ponderação. Já no caso das regras jurídicas, esse conflito pode existir e existe de fato com intensa freqüência como resultado da validade simultânea de regras contraditórias.13 Nessa hipótese, atuam as regras formais de competência e de interpretação fixadas pelo legislador, pelas quais um conceito ou instituto empregado por um ramo do Direito é validamente transposto para outro ramo, exsurgindo a partir da regra jurídica um novo conceito ou instituto com aplicação circunscrita, todavia, ao ramo que emprega esse novo conceito ou instituto.

Caracteriza-se a autonomia dogmática, portanto, na possibilidade de um ramo do Direito elaborar institutos ou figuras jurídicas diferentes das pertencentes a outras disciplinas, jurídicas ou não, e não utilizáveis por estas.14 Recorde-se, por oportuno, que o Direito Tributário apenas recentemente, ao findar a Primeira Guerra Mundial, quando desencadeada uma fase mais acentuada do dirigismo governamental, é que logrou conquistar sua autonomia dogmática, e mesmo assim sem se desvencilhar totalmente de uma indevida contaminação com conceitos e princípios que são próprios da Ciência das Finanças, como, em 1955, registrava SÁINZ DE BUJANDA, então professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Madrid, chamando de “pavoroso desconcerto” a falta de distinção entre o Direito Tributário e a Ciência das Finanças,15 causa, sem dúvida, da dificuldade, ainda hoje recalcitrante, de o Direito Tributário operar com conceitos e regras que lhe sejam específicos, e que lhe garantam uma necessária autonomia dogmática.

No caso do Brasil, essa autonomia dogmática está nomeadamente alicerçada na existência de uma hierarquia de princípios aplicáveis aos tributos, precedendo a todos os demais aqueles que estão expressamente previstos na Constituição, seguindo-se-lhes os princípios gerais de direito público e, por fim, os de direito privado, que como destaca FABIO FANUCCHI, são os últimos a merecer a atenção do hermeneuta.16

Evidente, pois, o prejuízo que advém ao admitir-se que critérios e metodologia próprios do Direito Tributário cedam, sem mais, passo em face daqueles que são específicos a Ciência das Finanças ou a outros ramos do Direito, a dar lugar nesse caso a um sistema caótico que de vez em vez gera uma carga fiscal acentuada e com ela a premente necessidade de se atenuá-la, quando então surge o concreto risco de serem eliminados os critérios de regulação que asseguram a coerência e estabilidade ao sistema. Além disso, quando se considera o tributo em si como um elemento odioso e se desprezam os critérios fundados na razão e na lógica jurídica específicos ao Direito Tributário, cria-se a indevida oportunidade de grupos de pressão, com forte poder econômico, obterem benesses fiscais em prejuízo do interesse público, porque ao final desobrigados, esses grupos, do pagamento de quaisquer tributos sobre sua vantajosa atividade profissional.

Ora, se a única fonte do Direito Tributário é a Lei, evidentemente que ela pode alterar a definição de conceitos e institutos de outros ramos do Direito, ainda que se cuidem de conceitos tradicionalmente adotados na práxis jurídica. É que na construção do pressuposto do fato imponível, o legislador pode criar sem estar limitado pelos conceitos formados noutros ramos do Direito. Exatamente por isso é que não se pode aceitar que o aumento da carga tributária possa, só por si, dar azo ao enfraquecimento da autonomia dogmática do Direito Tributário que é assegurada pelo nuclear artigo 110 do Código Tributário nacional, do qual diretamente provém a liberdade de criação conceitual conferida ao Direito Tributário, necessária e suficiente à mantença de sua autonomia dogmática.

2. CONTEÚDO E ALCANCE DO ARTIGO 110 DO CTN.

Dispõe o artigo 110 do Código Tributário brasileiro em vigor que “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Trata-se, como facilmente se percebe, de uma norma jurídica daquelas que a doutrina denomina de “normas de superdireito”, que segundo ERNEST ZITELMAN, que cunhou essa expressão, hoje consagrada pelo uso, são normas que tratam sobre outras normas, ou seja, normas de direito sobre direito, e não normas sobre fatos, estas evidentemente mais comuns: “As normas de superdireito possuem ‘título de nobreza’. Elas têm por função indicar, resolver qual a regra jurídica aplicável a determinado fato, a determinada relação, ou onde, como se deve aplicar a regra de direito”.17

São regras de superdireito, por exemplo, as normas positivas de interpretação, pelas quais o legislador impõe ao juiz um determinado sentido a extrair-se da norma, limitando seu campo de interpretação.

Influenciados, sem dúvida, pela denominação dada ao capítulo IV do Código Tributário (“Interpretação e Integração da Legislação Tributária”), muitos tributaristas brasileiros entenderam que o artigo 110 era uma dessas normas positivas de interpretação, editada com a sobranceira finalidade de integração das regras tributárias ao sistema jurídico. De fato, toda atividade de interpretação da norma jurídica colima não apenas alcançar a intelecção de seu sentido, mas também adequá-lo à ordem jurídica.18

As regras tributárias, quando definidoras de competência, deveriam se render ao predomínio dos conceitos e institutos tradicionalmente fixados pelo direito privado, o que não deveria escapar à atenção do intérprete precavido, advertia ALIOMAR BALEEIRO, deixando evidenciada sua posição no sentido de que essa norma – a do artigo 110 – era uma norma positiva de interpretação:

“Combinado com o art. 109, o art. 110 faz prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial – quanto à definição, conteúdo e ao alcance dos institutos, conceitos e formas daquele direito, sem prejuízo de o Direito Tributário modificar-lhes os efeitos fiscais. (…).

“Para maior clareza da regra interpretativa, o CTN declara que a inalterabilidade das definições, conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas do Direito Privado é estabelecida para resguardá-los no que interesse à competência tributária. O texto acotovela o pleonasmo para dizer que as ‘definições’ e limites dessa competência, quanto estatuídos à luz de Direito Privado, serão as deste, nem mais nem menos”.19

Em verdade, o artigo 110 encontra-se no bojo do problema relacionado à autonomia do Direito Tributário, tema que ensejou três célebres polêmicas ocorridas durante o primeiro terço do século XX, e que envolveram, na Alemanha, Becker e Hensel, na França, Gèny e Trotabas, e na Itália, Berliri e Vanoni, este último sustentando que o dado econômico recebe do Direito Tributário uma qualificação que o mantém ou o modifica para efeitos fiscais.20

Polêmica que também alcança as acentuadas relações do Direito Tributário com o Direito Civil, do qual efetivamente provêm muitos conceitos e institutos utilizados para a conformação da hipótese de incidência de vários tributos. Examinando essas relações, o tributarista italiano GIANNINI, afirmando-as delicadas, constatou que o Direito Tributário constitui suas relações jurídicas com base no conceito de obrigação fixado pelo Direito Civil, daí a inexistência de diferença entre a estrutura jurídica obrigacional adotada pelo Direito Tributário e o modelo geral de obrigação do Direito Civil. É que a teoria geral das obrigações construída pelo Direito Civil, como escreveu JOSSERAND, é a base de todo o Direito e não apenas do Direito Civil,21 impondo-se como estrutura aos demais ramos do Direito, assim também ao Direito Tributário. De fato, se o principal objeto do Direito Tributário é a arrecadação de tributos e se isso pressupõe, senão que exige a prestação do contribuinte, evidentemente que esse ramo do Direito é de natureza obrigacional, o que o aproxima especialmente do Direito Civil.

E além de utilizar-se da estrutura obrigacional, o Direito Tributário frequentemente emprega conceitos e institutos do Direito Civil para com eles elaborar a hipótese de incidência de vários tributos. Mas nesse caso o conceito ou o instituto do Direito Privado constitui, na relação jurídico-tributária, apenas um dado de fato (e não uma regra jurídica), podendo por isso ser validamente modificado para efeitos fiscais: “É claro que (…) a norma regulatória da relação privada não se torna uma norma tributária; a relação jurídica privada constitui somente um dado de fato para a relação de exação, cuja formação é independente, de regra, dos efeitos próprios da primeira”.22

Não se veda ao Direito Tributário, por conseqüência, a possibilidade de modificar, na essência ou em parte, os conceitos e institutos definidos pelo Direito Civil, pois que isso sua autonomia dogmática lhe assegura. Vem a propósito a observação de RUBENS GOMES DE SOUSA no sentido de que ao Direito Tributário é concedido o poder de, em atenção à clareza e precisão jurídicas, optar pela mantença do conceito originariamente fixado pelo Direito Civil, dês que isso também convenha aos fins fiscais. Mas se estes reclamam a modificação do conceito, a autonomia dogmática do Direito Tributário prevalece, e a partir dela, o novo sentido conceitual.23

Tenha-se presente, outrossim, que o Direito Tributário, dentro de sua particular metodologia, considera um tributo sob duas partes distintas, mas sincréticas: uma parte econômica e uma parte jurídica, com as quais dá conformação ao pressuposto do fato imponível, cujo núcleo é assim formado por um elemento objetivo, que é a apropriação de dados do mundo econômico que, integrados ao Direito – que sobre eles opera à sua maneira – configuram o fato imponível, demarcando, por conseqüência, o objeto da imposição tributária (objeto do imposto). Por isso se pode dizer que embora o Direito Tributário se valha, na maioria das vezes, de conceitos econômicos e jurídicos de outros ramos do Direito, concede-lhes um sentido jurídico próprio, segundo uma lógica comandada pelos fins fiscais e sua particular perspectiva econômica.

A coincidência de conceitos depende, por conseqüência, da existência no âmbito do Direito Civil (ou de qualquer outro ramo do Direito), de um granítico conceito, efetivamente consolidado pela doutrina e uniformemente utilizado pela jurisprudência, que possa assim ser aproveitado com o mesmo sentido para efeitos tributários, tudo de molde que se mantenha o equilíbrio e a harmonia do sistema jurídico. Mas é ainda necessário que uma norma jurídica tributária assim o preveja, equiparando no plano legal os conceitos. Do contrário, ou seja, se não houver um conceito fixo e se uma norma tributária adotar para efeitos fiscais um sentido diverso daquele, prevalecerá, então, o sentido fixado pela norma tributária, ainda que incoincidente com o sentido originário, não sobrevindo daí nenhuma ruptura do sistema, que deve naturalmente conviver com regras conceituais contraditórias.

Com isso, retomemos a análise do artigo 110, dispositivo cuja inserção no Código Tributário deveu-se, como revela RUBENS GOMES DE SOUSA com a autoridade de autor do anteprojeto que deu origem a esse diploma legal, muito mais a um estado ainda incipiente do Direito Tributário no Brasil à época da elaboração de seu primeiro Código Tributário, que propriamente a uma necessidade provocada pelo sistema,24 o que talvez explique a diminuta importância hermenêutica que se lhe emprestou a doutrina, que ainda hoje insiste em atribuir-lhe um valor puramente didático (posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal ao afastar a incidência do ISS sobre o “leasing”), quando, em verdade, se trata de um dispositivo de importância fundamental pelo qual se confere e se justifica a necessária autonomia conceitual do Direito Tributário, garantidora de uma segurança jurídica, que não é conquistada ou mantida quando o operador jurídico preocupa-se tão-somente com o montante da carga tributária suportada pelo contribuinte, preocupação que, sem dúvida, deve-lhe também assomar, mas não na mesma escala daquela de que é tomado o economista, diante da natural diversidade de ambientes em que cada um atua: o operador do direito no campo da eficácia; o economista, no da eficiência.

Daí que ao operador do Direito sobreleva considerar o sistema jurídico adotado, buscando compreender com exatidão sua racionalidade, que está alicerçada em princípios, regras e procedimentos de ação e legitimação.

Sob essa perspectiva, pois, consideremos nosso sistema tributário tal como previsto na Constituição de 1988, e verificaremos que esse sistema está apontoado em princípios expressamente previstos no texto constitucional, os quais revelam os valores adotados e que servem como fundamento das regras jurídicas distribuídas principalmente entre o mesmo Texto Constitucional e o Código Tributário, que, por sua vez, confere ao sistema a sua operacionalidade prática por meio de regras como as dos artigos 109 e 110, as quais, como bem notaram alguns tributaristas brasileiros, são, em verdade, regras de competência (e não de interpretação), e como tais regras de procedimento como as entende e descreve NIKLAS LUHMANN, para quem a noção de procedimento não se esgota na idéia de rito, mas se estende também a um sistema de ação, pelo qual se permite apreender e aceitar uma decisão antes de sua ocorrência concreta.25

Eis aí a competência em um sentido muito próximo àquele empregado pelo Direito Processual (“a competência é o fragmento de jurisdição atribuído a um juiz”, dizia o insuperável COUTURE),26 aplicada pelo Direito Tributário nesse caso para disciplinar o poder “in genere” que em uma federação como a nossa é concedido a todos os entes públicos para a criação de tributos, definindo os limites em que cada um pode concretamente atuar: “Temos assim a competência tributária – ou seja, a aptidão para criar tributos – da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Todos têm, dentro de certos limites, o poder de criar determinados tributos e definir seu alcance, obedecidos os critérios de partilha de competência estabelecidos pela Constituição. (…)”.27

Representam esses limites a competência tributária, a caracterizar a norma do artigo 110 do Código Tributário como uma norma de superdireito dirigida muito mais ao legislador do que ao intérprete, como adscreveu em posição de vanguarda FÁBIO FANUCCHI em 1971, ao tempo em que apresentava ao público a sua importante obra “Curso de direito Tributário Brasileiro”, seguida de perto por uma boa geração de tributaristas, mas hoje infelizmente olvidada.

Em um País como o nosso, cabe enfatizar, cuja Constituição – a de 1988 – abarca uma quantidade bastante extensa de princípios e regras de Direito Tributário, tem-se como evidente a menor liberdade que é concedida ao legislador infraconstitucional para a criação e a instituição de tributos, o que em vez de obliterar a importância do artigo 110 do Código Tributário Nacional, como se poderia imaginar, faz-lhe aumentar essa importância, considerando a prevalência do soberano princípio constitucional da legalidade e da regra-motriz que lhe é decorrente: a da tipicidade, que se refere ao conteúdo da lei.28

A função do artigo 110 do CTN é mesmo a de limitar o campo de atuação do legislador como pensa RUBENS GOMES DE SOUSA, ao explicitar que a finalidade desse dispositivo está em conceder aos Estados e Municípios o poder de disporem acerca de matéria de Direito Civil ou Comercial, dela se utilizando – mas a seu modo – para a criação de tributos dentro de sua competência tributária, exceto, porém, quando se cuidam de conceitos adotados na Constituição. Se não se fizesse esta ressalva, explica RUBENS GOMES DE SOUSA, o problema ficaria invertido e não seria mais a União interferindo com os tributos estaduais ou municipais, mas os Estados e os Municípios que, através de suas leis fiscais, estariam alterando não tanto o Código Civil ou o Código Comercial, senão a própria Constituição.29

De resto, é exatamente por força dessa regra de proteção que um Estado ou Município não pode, para efeitos tributários, definir como imóvel um bem móvel.30 Mas é de relevo observar que o conceito de propriedade é um daqueles conceitos fixos do Direito Civil com uniforme aplicação no sistema do Direito brasileiro, e mais, um conceito que foi expressamente adotado em nossa Constituição para a estruturação da hipótese de incidência do imposto predial (IPTU), o que acarreta a impossibilidade de o legislador infraconstitucional modificá-lo para criar outros tributos.

Mas o mesmo não ocorre com o conceito de obrigação de fazer, que no âmbito do Direito Civil não encontra uma uniformidade de sentido, ao contrário do que imaginaram os tributaristas, que tivessem se dado ao necessário trabalho de conferirem as lições de eméritos civilistas, teriam percebido que mesmo naquele ramo (no Direito Civil) não há consenso quanto ao que se pode conceituar como obrigação de fazer, especialmente quando se a coteja com a obrigação de dar, que em muitas situações assemelha-se a uma obrigação de fazer, a ponto que muitos civilistas propugnam de há muito tempo se desconsidere, porque infrutuosa, essa distinção no plano legal, conselho seguido pelo nosso Legislador, que tanto no Código Civil de 1916 quanto no de 2002, escusou-se de conceituar no plano legal a obrigação de fazer. Conceituação legal que, cabe enfatizar, não está adotada no Texto Constitucional de 1988 para a fixação de tributos ou de competências tributárias, a permitir, por conseqüência, que o legislador infraconstitucional construa livremente, para efeitos fiscais, o conceito de obrigação de fazer.

3. O “LEASING” E O STF.

Rendendo-se ao posicionamento que se tornou prevalecente na jurisprudência brasileira, consolidado em julgamento emanado do Supremo Tribunal Federal,31 convenceu-se o legislador de que melhor seria suprimir da lista de serviços anexa à Lei Complementar Federal de número 116, de 31 de julho de 2003, a locação de bens móveis, hipótese de incidência prevista na Lei anterior,32 inicialmente acolhida no item 3.01 da novel lista, mas depois vetada pelo senhor Presidente da República, cujas razões, alicerçadas no argumento desenvolvido pelo STF e baseadas principalmente no predomínio dogmático-conceitual do Direito Civil, radicam no entendimento de que a locação de bem móvel não se identifica ou se qualifica como serviço para efeitos fiscais, porquanto em Direito “os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável”.33

Destarte, como o STF declarara, ainda que em controle incidental, a inconstitucionalidade do item 79 da anterior lista de serviços, acolhendo o argumento de que a Constituição de 1988 impõe-se na estruturação do fato gerador dos tributos, revelando de antemão o objeto da tributação e limitando, assim, o campo de atuação do legislador infraconstitucional, essa posição jurisprudencial, embora a princípio instável como demonstra o fato de ter sido adotada por uma diminuta maioria dos membros do pleno daquele Tribunal,34 acabou naturalmente seguida pelos demais tribunais do País, que dela ainda fizeram uso para excluir a incidência do ISS noutras hipóteses, como no caso do “leasing”, sob o entendimento de que essas operações econômicas não representam uma obrigação de fazer nos mesmos moldes em que ela se acha tradicionalmente definida pelo Direito Civil, senão que configuram uma verdadeira locação de bens móveis, em que prepondera uma obrigação de dar, elidindo-se, por conseqüência, a tributação pelo ISS, como sublinha o voto do ministro Marco Aurélio, que esposou a tese vencedora: “(…) há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvida na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento [do ISS]. Prevalece a ordem natural das coisas cuja força surge insuplantável; prevalecem as balizas constitucionais e legais, a conferirem segurança às relações Estado-contribuinte; prevalece, alfim, a organicidade do próprio Direito, sem a qual tudo será possível no agasalho de interesse do Estado, embora não enquadráveis como primários (…)”.

Radicalmente modificada assim uma posição jurisprudencial construída antes mesmo da entrada em vigor do Código Tributário e consolidada ao longo de muitos anos. Fiel ao princípio hermenêutico que adotara, segundo o qual o Direito Tributário possui critérios próprios, decorrentes de sua autonomia e por isso não se compadece com as ficções jurídicas de outros ramos do Direito,35 em inúmeras vezes, pois, declarara o STF abarcada a locação de bens móveis dentre as hipóteses de incidência do ISS, entendendo que nessa operação revelava-se preponderante, para efeitos fiscais, a atividade de prestação de serviço, ainda que também existentes as de uso e gozo da coisa.36

Se atentarmos para as conclusões a que a nossa doutrina havia chegado a partir do primeiro congresso brasileiro de Direito Tributário, quando se buscou desimplicar a distinção entre o ICM e o então recém-criado ISS,37 não nos causará surpresa o fato de o STF ter mudado sua posição. Com efeito, assentou a doutrina que as obrigações de fazer formam o substrato adequado à hipótese de incidência de um imposto como o ISS, que alcança os serviços, ao passo que o ICM abarca as obrigações de dar consubstanciadas na movimentação, física ou econômica, de mercadorias, e que a configuração de desses impostos (ICM e ISS) exigia a utilização dos conceitos originariamente fixados pelo Direito Civil para as modalidades das obrigações, vedando-se ao Direito Tributário, por conseqüência, a modificação desses mesmos conceitos.

Com efeito, à luz dessa doutrina, o STF, abjurando de sua antiga jurisprudência, passou a entender, fundado na superioridade dogmático-conceitual do Direito Civil, que ao Fisco não é dado o direito de descaracterizar o contrato livremente firmado pelas partes segundo as regras do Direito Civil, para com isso lhes impor a tributação. Daí que, segundo o STF, o conceito de locação de coisa móvel, fixado pelo Direito Civil, não pode ser alterado pela legislação tributária, porque a terminologia constitucional do imposto sobre serviços, ao descortinar o objeto da tributação, não autoriza se confunda a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições, segundo o artigo 110 do Código Tributário Nacional, seriam de observância obrigatória na estruturação da hipótese de incidência dos tributos (cf. RE. 116.121-3).

E se mais não seja, para o prestígio da segurança jurídica tal posicionamento jurisprudencial tornou-se verdadeira “lei”, a dar razão a KAFKA quando aduz que: “As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese, certamente até essa interpretação já se tornou lei, na verdade continuam a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas elas são muito limitadas. (…)”.38. De outra maneira não se poderia explicar a incorporação ao veto presidencial do entendimento adotado pelo STF.

Assim sem resistência, acederam os tributaristas brasileiros à idéia de que se a doutrina do Direito Civil estabeleceu, com precisão científica, a distinção entre as obrigações de dar e de fazer a partir de seu objeto, essa mesma distinção deveria ser rigorosamente aproveitada pelo Direito Tributário, não apenas para conformar as figuras tributárias, mas ainda e principalmente para impor limites ao legislador infraconstitucional.

Um exame mais detido do conteúdo da novel posição jurisprudencial adotada pelo STF, contudo, revela-nos que subjacente a ele está, em verdade, o recrudescimento e a galvanização da vetusta idéia de que como os impostos em geral limitam a liberdade individual e a propriedade – tornando-se por isso elementos odiosos –, sua interpretação deve ser sempre literal e restritiva dos termos legais, o que conduziu, sem dúvida, a que se considerassem prevalecentes os conceitos e institutos do Direito Privado e, a compasso, a vontade das partes contratantes, em manifesto prejuízo dos conceitos fixados pelo Direito Tributário no legítimo exercício de sua autonomia dogmática, que lhe é reconhecida pelo Texto Constitucional de 1988 e disciplinada pelo artigo 110 do Código Tributário. É a carga fiscal atuando decisivamente como fator de enfraquecimento da autonomia dogmática do Direito Tributário, a como se fez referência.

Ao tempo em que o Direito Tributário encontrava-se ainda em um estágio científico embrionário, quando circunscrito o exame de seus conceitos e institutos a um caráter meramente dogmático, nesse restrito campo cognitivo era naturalmente impossível que se realizassem as necessárias atividades de crítica e de reflexão do material utilizado.39 Nessas circunstâncias, com efeito, era perfeitamente compreensível que o Direito Tributário fosse buscar na experiência do Direito Civil o que este poderia supeditar-lhe, como, por exemplo, o conceito de obrigação de fazer e sua distinção com a obrigação de dar, não se podendo olvidar, como observa PUGLIESE, citado por BALEEIRO, que a lei tributária geralmente se utiliza de preceitos de fazer e de dar, para com eles estruturar a hipótese de incidência dos tributos.40 Mas é de observar-se que à época a doutrina civilista, especialmente a italiana, ainda não havia erigido as dúvidas que, com consistência, lançaria ao exame da questão relacionada à natureza jurídica da obrigação de fazer – no bojo do que cuidaria concluir que sobre ser impossível em muitos casos a distinção da obrigação de fazer em face da obrigação de dar, essa distinção revelava-se, em verdade, infrutuosa no plano legal.41

A propósito, como observou MICHELE GIORGIANNI, não é possível saber se o conceito privatístico de obrigação, transplantado para um clima diverso daquele em que nasceu e floresceu, pode conservar inatas sua frescura e vitalidade, ou seu ao contrário isso não se faz, quase como uma flor embalsamada, um nome vão.42 Se assim é para o modelo de estrutura obrigacional e para os conceitos fixos do Direito Civil, que podem sofrer adaptação no plano do Direito Tributário, atendidos aos específicos fins desse ramo autônomo do Direito, tanto mais será para os institutos que no âmbito do Direito Civil apresentam diversidade conceitual, como se dá com a obrigação de fazer que mesmo no âmbito do Direito Civil, seja em sua estrutura científica, seja no plano do direito positivo, não encontra um conceito único que se imponha como tal ao Direito Tributário.

Enfatizemos, ainda uma vez e na esteira do que entendia, já em 1957, o Supremo Tribunal Federal, que o Direito Tributário tem critérios que lhe são próprios, incompatíveis muitas vezes com as ficções de outros ramos do Direito. Assim, quando o Direito Tributário vale-se de conceitos econômicos, concede-lhes um sentido jurídico próprio, o mesmo sucedendo em face de conceitos extraídos do Direito Civil, que podem assim ser validamente modificados para efeitos fiscais – no que está caracterizada a autonomia dogmática do Direito Tributário.43

Nesse contexto, consideremos a obrigação de fazer, natural hipótese de incidência de um importante tributo que grava os serviços, que é o imposto sobre Serviços – ISS, criado com a conformação atual pela reforma tributária levada a cabo em 1965 com a Emenda Constitucional de número 18, depois consolidada pela Constituição de 1967, e desde logo colocado sob a titularidade dos municípios, que nele encontraram e ainda encontram uma de suas principais fontes de receita, como o comprova a acirrada guerra fiscal ora travada por vários municípios, que buscam resguardar sua competência tributária e excluir a de outros.44 No caso do ISS, pois, desde a sua criação viu-se o Direito Brasileiro diante da imperiosa necessidade de diferenciar as obrigações de dar e de fazer, sem o que seria impossível distinguir o ISS do ICM. E para essa diferenciação, adotaram-se os conceitos que estavam mais à mão: os do Direito Civil, embora transfigurados para efeitos fiscais, como afirmara ser possível e válido o Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a autonomia dogmática do Direito Tributário.

Com efeito, o conceito tributário de “prestação de serviços”, utilizado na hipótese de incidência do ISS, não será necessariamente equivalente ao conceito do Direito Civil, podendo inclusive sobreexcedê-lo, se assim entender o Legislador, como, aliás, ocorreu desde a conformação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de número 1/1969 (artigo 24, inciso II). Comentarista autorizado e estudioso do ISS, sublinha BERNARDO RIBEIRO DE MORAES a prevalência da autonomia dogmática do Direito Tributário na construção conceitual do ISS: “O ISS é, assim, um imposto sobre serviços de qualquer natureza, ou melhor, um imposto que recai sobre bens imateriais que circulam. Grava a venda de serviços. (…) o ISS não se restringe, quanto ao seu objeto, apenas às hipóteses de ‘prestação de serviços’ (conceito civil).45

A dizer: o Direito Tributário é fundado em dados econômicos, conceitos e institutos jurídicos de diversos ramos do Direito, que em seu âmbito, contudo, são modificados segundo leis internas que obedecem a características e finalidades fiscais. De modo que uma obrigação que no plano do Direito Civil é tida como de dar, como a locação de bem móvel, pode, no âmbito do Direito Tributário, ser concebida como uma obrigação de fazer, se assim fixar a regra jurídica tributária. Essa liberdade conceitual decorrente da autonomia dogmática do Direito Tributário não pode ser, portanto, contrastada pelo Direito Civil, nomeadamente quando este sequer conseguiu elaborar um conceito fixo, caso da obrigação de fazer, como a seguir se demonstrará.

4. A OBRIGAÇÃO DE FAZER NO DIREITO CIVIL.

Como adverte o sempre lúcido tributarista JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, o tratamento das obrigações, sobretudo no campo do Direito Civil, atingiu um nível de sofisticação teórica de duvidosa utilidade, o que não notou o Direito Tributário, cuja doutrina se socorreu e ainda se socorre das construções do Direito Civil como uma tábua de salvação: “Por essa via, a doutrina do Direito Tributário apenas conseguira transplantar para o seu campo discussões que empolgam a doutrina do Direito Civil. Todavia, discussões sobre problemas em aberto entre os civilistas (…)”.46 Assim se dá, por exemplo, com a obrigação de fazer, acerca da qual a doutrina civilista ainda hoje não encontrou um conceito fixo e objetivo, pelo qual se possa diferenciá-la, em todas as situações possíveis, da obrigação de dar.

Mas quem lê os tributaristas brasileiros é levado a crer que nenhuma séria discussão ou controvérsia existe no Direito Civil quanto aos conceitos de obrigação de dar e de fazer. Confira-se, por exemplo, o que a respeito disseram GERALDO ATALIBA e AIRES FERNANDINO BARRETO. A verdade, entretanto, é que os mais percucientes civilistas perceberam quão próximas são as relações entre as obrigações de dar e de fazer, daí a razão de os códigos civis mais modernos terem abandonado a classificação tricotômica (dar, fazer e não fazer), a que recusam, sistematicamente, qualquer relevância jurídica.

Com efeito, no longínquo ano de 1924, afirmava o civilista GIORGIO GIORGI que a distinção, nascida no direito romano e adotada por várias legislações, entre as obrigações de dar e de fazer revelava-se incerta e confusa e de pouquíssima importância prática.47 Algum tempo depois, outro importante civilista italiano, LODOVICO BARASSI, também chegaria a uma conclusão idêntica, partindo da análise de dispositivos legais do Código Civil italiano de 1942, o que lhe permitiu constatar que as obrigações positivas (de dar e de fazer) mantêm freqüentes relações promíscuas; isto é, são mistas de dar e de fazer, a ponto que as mais recentes codificações legais, dizia ele, não davam à distinção entre uma e outra qualquer importância.48

No Brasil, o mais importante tratadista da matéria, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, também reconhece, embora insatisfeito, que, rigorosamente, toda obrigação de dar mistura-se e se complica com uma obrigação de fazer, e que a obrigação de fazer pode por vezes abranger a obrigação de dar, como no caso da empreitada.49

De fato, a índole prática dos romanos permitiu, não raras vezes, uma clara e correta definição de um instituto jurídico, mas a despreocupação com seu fim muitas vezes invalidou o conceito, 50 se é que esse conceito chegou a ser efetivamente construído, pois como adverte HEGEL: “(…) Criou-se assim o hábito de falar em conceitos jurídicos romanos ou germânicos tal como estariam definidos neste ou naquele código, quando não se fala de nada que se pareça com conceitos mas apenas de regras jurídicas gerais, princípios abstratos, axiomas, leis, etc. (…)”.51 É o que ocorreu com a obrigação de fazer, cuja conceituação, derivada do direito romano, não se mostrou consistente como reconhecem até mesmo os civilistas que não aceitando as idéias de GIORGI e de BARASSI, admitem que a importância prática da distinção está muito mais no plano das tutelas do Direito Processual, que propriamente no âmbito do Direito Civil.52

Mas mesmo no plano processual a importância dessa distinção tende a desaparecer, agora que se pretende diminuir a distância entre as tutelas específicas (adotadas de há muito para a obrigação de fazer) e aquelas destinadas à obrigação de dar, como ora sucede no Brasil, que pela novel Lei Federal de número 11.232/2005 institui novo regime de cumprimento da sentença condenatória, eliminando-se a necessidade do processo de execução para a obrigação de dar (quantia certa), uniformizando a forma executiva de cumprimento de sentenças condenatórias que imponham obrigações de fazer e de dar, adotando-se, assim, para todas os provimentos mandamental e executivo “lato sensu”. De modo que com a entrada em vigor da referida Lei, os meios processuais executivos no Brasil não variarão mais em função do conteúdo das obrigações (dar e fazer), como propugnava a doutrina desde LIEBMAN.53 A demonstrar, portanto, que mesmo no âmbito do Direito Processual a tendência é eliminar a distinção ontológica entre as obrigações de dar e de fazer, causa muitas vezes de entraves à definição da tutela executiva a aplicar-se, o que a nova Lei objetiva eliminar, a compasso de dar maior celeridade ao cumprimento da sentença condenatória.54

Relativamente à locação de bem móvel, anote-se que era da tradição do direito romano abarcar no contrato de locação o uso e o fruto de alguma coisa e a prestação de trabalho ou o resultado de trabalho. Daí a existência de três espécies de locação: a locação de coisas (“locatio rei”), a locação de serviços (“locatio operarum”) e a locação de obra (“locatio operarum”).55 E como observa PONTES DE MIRANDA, deve-se menos à história que ao desenrolar dos fatos sociais a existência desses três tipos que, embora distintos entre si, foram tratados no Código Civil de 1916 em um só capítulo, mantido o mesmo “conceito-cerne”, ensejando a idéia equivocada – com repercussão no Direito Tributário – de que na locação de serviços não se tem senão uma obrigação de dar, quando, em verdade, na esteira do que pontifica CARVALHO DE MENDONÇA: “A distinção entre os casos em que o objeto é na realidade uma coisa a entregar e aquele em que é um fato a realizar, é mui delicada para se aplicar, pois que, no fundo, toda a obrigação é uma prestação de fazer, um facere. (…). Tal afirmação não é uma pura teoria e sim um questão eminentemente prática”.56

Não se pode olvidar, assim, da existência de situações mistas, simultaneamente de dar e de fazer, como se dá com o “leasing”, que é de natureza jurídica complexa com características próprias, compreendendo, de um lado, uma locação (obrigação de dar), e doutro, uma promessa unilateral de venda (obrigação de fazer), o que o torna um contrato típico que não se confunde com o contrato de locação de bens móveis.57

São as novas formas contratuais que envolvem, a um só tempo, obrigação de dar e de fazer, e engendradas em função da revolução tecnológica como observa JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA (Das Obrigações em Geral, v. I, p. 83, 8ª. Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1994): “Durante largos séculos, quer nos quadros das primitivas economias de fundo agrário, quer mesmo depois da primeira revolução industrial, foram as prestações de coisas (de dare e de restituere) que preponderaram nas relações da vida econômica. À medida, porém, que a revolução tecnológica, subseqüente ao termo da última guerra, foi modificando a fisionomia das sociedades contemporâneas, cada vez mais se acentuou a importância das prestações de serviços, que as grandes empresas oferecem, muitas vezes em massa, ao núcleo crescente dos seus utentes. (…)”.

Do que é autorizado concluir que o Direito Tributário, no exercício de sua autonomia dogmática e atento a seus específicos fins, pode livremente construir, para efeitos fiscais, o conceito de obrigação de fazer, ainda que de forma totalmente incoincidente com aquela tradicionalmente adotada pelo Direito Civil, porquanto: (I) não há, na lei ou na doutrina, um conceito único de direito privado acerca da obrigação de fazer que se imponha ao Direito Tributário, especialmente quando se cuidam de novas formas contratuais (caso do “leasing”); (II) o artigo 110 do Código Tributário autoriza que conceitos, institutos e formas do direito privado sejam para efeitos fiscais modificados quando não tiverem sido utilizados, expressa ou implicitamente, na Constituição da República de 1988 ou em qualquer outro diploma legal para definirem ou limitarem competências tributárias – e como a obrigação de fazer não foi utilizada no Brasil para definir ou limitar quaisquer competências tributárias, não há óbice legal a que os Municípios considerem obrigação de fazer a atividade econômica de locação de bens móveis (“leasing”), tributando-a por meio do ISS.

1 Eça e os Impostos, p. 43, editora Almedina, Coimbra, setembro de 2000.

2 Cf. Eric J. Hobsbawm, A Revolução Francesa, coleção Leitura, editora Paz e Terra, 1996.

3 Os bares morrem numa quarta-feira, p. 22, Círculo do Livro, 1980, São Paulo.

4 De acordo com o artigo 150, IV, da CF/1988, é vedado utilizar tributo com efeito de confisco, autorizando a conclusão de que o Texto Constitucional adotou expressamente o princípio da proporcionalidade no campo tributário. A jurisprudência brasileira, todavia, ainda não extraiu desse importante princípio constitucional todo seu potencial, receosa, com certeza, da acentuada carga subjetiva que está envolvida em sua aplicação, como observou, com razão, Daniel Sarmento em sua obra “A Ponderação de Interesses na Constituição Federal”, p. 171-172, 1ª edição, editora Lumen Juris, 2002.

5 Para a Crítica da Economia Política, in Obras Escolhidas, volume 1, p. 530, edições Avante, Lisboa, 1982.

6 Cf. Teoría General del Derecho, p. 37, Editorial Revista de Derecho Privado, Madrid, 1955.

7 Cf. Norberto Bobbio, Teoría General del Derecho (tradução por Eduardo Rozo Acuña), p. 9, (Editorial Debate, Madrid, 1991.

8 Cf. Eduardo Giannetti, O Valor do Amanhã, p. 274, Companhia das Letras, 2005, São Paulo.

9 Metodologia da Ciência do Direito, p. 443-444 (tradução por José Lamego), 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, Lisboa.

10 Introdução à Ciência do Direito, p. 220, Martins Fontes, 1999, São Paulo.

11 Cf. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, 1994, São Paulo.

12 Cf. Robert Alex, El Concepto y la validez del derecho, p. 172-177, 2ª edição, Gedisa editorial, Barcelona, 1997.

13 Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1126, 4ª edição, Almedina, Coimbra..

14 Cf. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de Legislação Tributária, p. 38, Edições Financeiras S/A, 1960, Rio de Janeiro.

15 Apud Alfredo Augusto Becker, Teoria Geral do Direito Tributário, p. 4, Saraiva, 1963, São Paulo.

16 Cf. Curso de Direito Tributário Brasileiro, v. I, p. 204, Ibet – Editora Resenha Tributária, 1980, 4ª edição, São Paulo.

17 Jônatas Milhomens, Hermenêutica do Direito Processual Civil, p. 10, Forense, Rio de Janeiro

18 Cf. José de Oliveira Ascensão, Introdução à Ciência do Direito, p. 372-373, 3ª edição, Renovar, Rio de Janeiro.

19 Direito Tributário Brasileiro, p. 444-445, 10ª edição, 1990, Forense, Rio de Janeiro.

20 Cf. Eusebio González, Interpretación de las Normas Tributarias, in Revista de Direito Tributário, v. 76, Malheiros Editores, São Paulo.

21 Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 2-3, Librairie du Recueil Sirey, 1933, Paris.

22 Achille Donato Giannini, Instituzioni di Diritto Tributario, p. 12, Giuffrè, 1965, Milão.

23 Compêndio de Legislação Tributária, p. 40, 3ª edição, Edições Financeiras S.ª, Rio de Janeiro, 1960.

24 Cf. Interpretação no Direito Tributário, notas da 3ª assembléia (28/8/71), p. 105-106, Educ/Saraiva, 1975, São Paulo.

25 Cf. Legitimação pelo Procedimento (tradução por Maria da Conceição Côrte-Real), editora Universidade de Brasília, 1980.

26 Cf. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, p. 29, Depalma, 1973, Buenos Aires.

27 Luciano Amaro, Direito Tributário Brasileiro, p. 93, 11ª edição, Saraiva, 2005, São Paulo.

28 Cf. Sacha Calmon Navarro Coêlho, in Curso de Direito Tributário Brasileiro, p. 219, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2005.

29 Compêndio de Legislação Tributária, p. 46-47.

30 Cf. Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, p. 444, 10ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1990.

31 RE. 116.121-3 – SP, DJU, 25.5.2001.

32 Lei Complementar Federal de número 56, de 15 de dezembro de 1987.

33 Cf. Razões dos Vetos à Lei Complementar nº 116, de 31.07.2003, Mensagem nº 362, de 31/7/2003, DOU 01.08.2003.

34 Ao contrário, pois, do que pretextara o senhor Presidente da República no veto que apresentou ao item 3.1, quando assinala que o RE no. 116.121-3 recebeu votação unânime no STF para, assim, afastar-se a incidência do ISS sobre a locação de bem móvel (guindaste). A unanimidade, com efeito, ficou circunscrita ao cabimento do recurso extraordinário (aspecto formal), não ao conteúdo da matéria nele debatida, em que se demonstrou toda a polêmica acerca do tema, como revela o resultado desse julgamento: 6 a 5, favorável à exclusão da incidência.

35 Cf. RMS 4288, rel. Min. Luis Gallotti, j. 28/8/1957, 1ª Turma.

36 Nesse sentido: . Confira-se: STF – RE 112.947.6 – 2ª T. – Rel. Min. Carlos Madeira – DJU 07.08.1987. Idêntica posição, vale registrar, foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, como se lhe colhe de sua súmula de número 138.

37 O ISS foi introduzido em nosso sistema normativo com a Emenda Constitucional de número 18/1965.

38 Sobre a Questão das Leis, in Narrativas do Espólio, p. 123, tradução de Modesto Carone, Companhia das Letras, São Paulo, 2002.’

39 Como afirma KANT, o proceder de toda jovem ciência é a princípio de caráter dogmático, porquanto não se lhe permite examinar a capacidade ou incapacidade do material, in Crítica da Razão Pura, tradução por Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, p. 40, Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, Lisboa, 2001.

40 Direito Tributário Brasileiro, p. 450.

41 Trataremos do tema no item IV deste estudo.

42 L’Obbligazione (La Parte Generale delle Obbligazioni”), Giuffré Editore, 1968, Milano.

43 Cf. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de Legislação Tributária, p. 41.

44 O Município de São Paulo, por exemplo, editou Lei que obriga as empresas sediadas noutro município a cadastrarem-se perante seu Fisco, quando prestam serviços nesta Capital. A validez dessa Lei está sendo questionada na Justiça.

45 Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços, p. 85, RT, São Paulo, 1975

46 Obrigação Tributária – Uma introdução metodológica, p. 32-33, Saraiva, 1984, São Paulo.

47 Teoria delle Obbligazioni, v. I, p. 259-260, Casa Editrice Libraria Fratelli Cammelli, Firenze, 1924.

48 Lodovico Barassi, La Teoria Generale delle Obbligazioni, v. I (La Struttura), p. 98, Giuffrè Editore, 1946, Milano.

49 Das Modalidades de Obrigações, p. 58, Dissertação par concurso à cátedra da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1959.

50 Cf. Rudolf von Ihering, O Espírito do Direito Romano (tradução por Rafael Benaion), v. III, p. 44, Alba editora, Rio de Janeiro, 1943.

51 Princípios da Filosofia do Direito, p. 6, Martins Fontes.

52 Cf. Ruggero Luzzato, Le Obbligazioni nel Diritto Italiano, G. Giappichelli editor, Torino, 1950

53 Cf. Processo de Execução, p. 25, 3a edição, Saraiva, 1968, São Paulo.

54 A propósito, registre-se interessante caso que correu perante a Justiça Paulista. Uma empresa aérea estrangeira contratara com um famoso hotel a hospedagem da tripulação de suas aeronaves, quando pousadas em território paulista. Ajustou-se um número mínimo de quartos. Mas a empresa aérea, depois de algum tempo, resolveu diminuir o número de quartos utilizados, descumprindo a avença, o que ensejou a propositura pelo hotel de ação cominatória, em que sustentava a violação pela ré do cumprimento de obrigação de fazer (hospedar sua tripulação). Em contestação, a ré alegara a inexistência de uma obrigação de fazer subjacente ao contrato, pretextando que a obrigação ajustada era de dar dinheiro, consubstanciada no pagamento da hospedagem, tese que, se acolhida, inviabilizaria a utilização da tutela cominatória. A controvérsia sobre a natureza jurídica da obrigação contratada (se de fazer ou de dar), além de questão fundamental no processo, ensejou um conflito de competência recursal entre o Tribunal de Justiça e o então existente Primeiro Tribunal de Alçada Civil. Em verdade, tratava-se de uma obrigação mista.

55 Cf. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo XL, p. 5 e 15, RT, São Paulo, 1984.

56 Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, v. I, p. 182, Forense, Rio de Janeiro, 1956.

57 Cf. Bernardo Ribeiro de Moraes, Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços, p. 373-374.