COERÊNCIA NO DIREITO
Valentino Aparecido de Andrade
KANT descobriu algo que até hoje incomoda os juristas: as normas jurídicas distinguem-se das normas morais, porque estas exigem uma inclinação do agente, o que significa dizer que a norma moral erige em deveres os atos internos, diversamente, pois, do que sucede com as normas jurídicas, as quais não exigem que o agente tenha a ideia do dever, senão que é suficiente que pratique a conduta que corresponde a à norma. Diz KANT:
“A legislação que de uma ação faz um dever e que ao mesmo tempo dá tal dever por motivo, é a legislação moral. No entanto, aquela que não faz entrar o motivo na lei, que, consequentemente, permite outro motivo à ideia do próprio dever, é a legislação jurídica. (…). Na legislação jurídica os deveres não podem ser mais que externos porque essa legislação não exige mais que a ideia desses deveres, que é interna, seja por si mesmo o princípio determinante do arbítrio do agente; e como, todavia, necessita motivos apropriados a uma lei, tem de buscar os externos. A legislação moral, ao contrário, erigindo em deveres os atos internos, não exclui os externos e sim, ao contrário, reivindica tudo que é dever em geral. (…)”. (“Doutrina do Direito”).
Um prosaico exemplo: alguém, caminhando, olha para trás e vê seu vizinho, e esse aspecto é o que determina a ação que ele vai praticar logo em seguida, a de esmolar a um pobre, ação que foi praticada apenas pelo interesse em mostrar ao vizinho aquela “bondosa” ação. A norma moral não foi cumprida nesse caso, observa KANT. Já o devedor que, demandado judicialmente paga a dívida, cumpriu a norma legal que o obrigava ao pagamento, ainda que, intimamente, o que menos o devedor queria fazer era o pagamento.
Essa preciosa descoberta de KANT não agrada aos juristas pela simples razão de que ela expõe, com crueza, o que é forma a real essência da norma jurídica, em que os deveres internos não possuem nenhuma significação.
Basta, pois, que a conduta corresponda ao enunciado da norma legal, o que implica dizer que a noção de “virtude”, também enfatizada por KANT no sentido de se tratar de uma “perfeição interior”, está ausente da norma legal. Como afirma JOSÉ GUILHERME MERQUIOR em sua obra “O Marxismo Ocidental”, esse importante aspecto foi observado pelo filósofo GYÖRGY VON LUKÁCS, ao destacar que KANT distingue entre “deveres legais externos”, de natureza essencialmente instrumental, e a “legislação interna”, a dizer, a Moral, composta por normas impostas pelo próprio eu, e ditadas pelos mais altos motivos, ensejando o que MAX WEBER viria a denominar de “ética da convicção”.
Devemos sobretudo à jurisprudência alemã a percepção de que, no conteúdo do princípio da igualdade, entendido até então em sua concepção original de que se deveria tratar “igualmente” os iguais, e “desigualmente” os desiguais, estava também um outro princípio: o da coerência, segundo o qual duas situações iguais deveriam receber o mesmo tratamento, o que tinha especial aplicação no campo das decisões judiciais. Mas o princípio da coerência exige mais do que isso, e apenas a Moral lhe pode dar.
É que a coerência exige do magistrado tenha a perfeita consciência da ideia de Justiça e que faça constituir essa ideia como um dever “interno”, e que tenha, pois, a inclinação a querer fazer justiça, seja para dar ao caso uma solução igual àquela adotada para outro caso, seja para considerar que determinadas especificidades podem justificar que a coerência seja adotada para dar ao caso uma solução diversa, desde que se atenda ao dever “interno” e determinante de fazer justiça para além de qualquer outro dever. Segundo KANT, “A Ciência do Direito e da moral diferem (…) muito menos em termos da própria diferença dos deveres que lhe são próprios do que pela diversidade do motivo que uma e outra legislação consignam na lei”.