AS TUTELAS DE URGÊNCIA NO SISTEMA DO JUIZADO ESPECIAL DE FAZENDA PÚBLICA – MODIFICAÇÕES PROVOCADAS PELO CPC/2015

AS TUTELAS DE URGÊNCIA NO SISTEMA DO JUIZADO ESPECIAL DE FAZENDA PÚBLICA – MODIFICAÇÕES PROVOCADAS PELO CPC/2015.

Valentino Aparecido de Andrade

Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

 

 

 

  • A QUEBRA DO SISTEMA.  

 

(“retirar, ou modificar, ou deslocar uma peça do sistema é correr o risco de pô-lo abaixo” – DESCARTES). 

 

Ao tempo em que surgia o código de processo civil italiano de 1940, Piero Calamandrei enfatizava que, diante de uma nova legislação, os operadores do Direito devem lançar mão de um método imediato e de efeitos mais concretos, estudando-a de modo exegético apenas para poder compreender seu funcionamento prático, condição necessária a que um estudo sistemático possa desenvolver-se ao longo do tempo. Pois será com esse espírito que analisaremos as modificações provocadas pelo código de processo civil de 2015 no regime das tutelas de urgência que integram o sistema do juizado especial de fazenda pública, instituído pela lei federal de número 12.153/2009, que em seu artigo 3º. prevê: 

 

O juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir quaisquer providências cautelares e antecipatórias no curso do processo, para evitar dano de difícil ou de incerta reparação”.

 

O código de processo civil de 1973, aperfeiçoado por algumas reformas, havia alcançado um elevado nível de precisão conceitual, sobretudo no regime das tutelas de urgência, ao dotar de autonomia o processo cautelar, prevendo também que  o juiz poderia, diretamente no processo de conhecimento e quando estritamente necessário ao controle de uma situação de risco, conceder excepcionalmente a tutela cautelar.

 

Assim, o nosso sistema processual civil estava adequadamente estruturado para o controle das situações de risco,  contando com o processo cautelar autônomo (com as ações cautelares nominadas e aquelas nas quais o poder geral de cautela podia ser utilizado pelo juiz),  e também integrado com a técnica da tutela de urgência no processo de conhecimento.

 

Sistemas processuais específicos (caso do sistema do juizado especial de fazenda pública) beneficiavam-se, pois, do rigor conceitual que o código de processo civil de 1973 havia alcançado, com regras perfeitamente ajustadas às variadas necessidades do controle do tempo no processo.

 

Constatara-se na prática que o código de 1973 propiciava aos juízes certa facilidade na identificação da tutela de urgência mais condizente ao controle de uma situação de risco, permitindo uma diferenciação, relativamente objetiva, entre a tutela cautelar e a não cautelar, muito embora a sempre cambiante realidade material (realidade, ademais, que em sua concretude está para além daquela que é descrita no processo), pudesse nalgumas situações provocar uma maior dificuldade na definição da tutela de urgência mais apropriada. Na medida do possível, o Código de 1973 enfrentara com vantagem as dificuldades conaturais à tutela cautelar. 

 

Tínhamos alcançado, pois,   um sistema processual que, na maioria das vezes com eficiência, impedia que os juízes fizessem um equivocado uso das medidas cautelares, antecipando por meio delas efeitos que apenas com a decisão definitiva e de mérito devem surgir –  risco que está sempre presente no terreno das medidas cautelares, e em face do qual o legislador deve dotar a legislação processual de institutos bem demarcados, o que passa, por óbvio, pela necessidade de bem diferenciar a tutela cautelar daquelas tutelas que, embora urgentes, não possuem essa  mesma natureza (caso das tutelas antecipatória, preventiva e de evidência). Sobre haver entre as tutelas de urgência uma essência que as particulariza, a finalidade de cada uma delas constitui um aspecto de importância prática de que o juiz não deve olvidar.  

 

Daí que a existência de um processo cautelar, com sua estrutura própria, tem por finalidade estabelecer e explicitar uma demarcação objetiva entre as tutelas de urgência, como  a alertar ao juiz deva sempre considerar que a tutela cautelar não pode substituir a sentença de mérito, pois, conforme sublinha Calamandrei:

 

Os procedimentos cautelares representam uma conciliação entre as duas exigências, frequentemente contrastantes, da justiça, aquela da celeridade e aquela da ponderação: entre o fazer depressa mas mal, e o fazer bem feito mas devagar, os procedimentos cautelares objetivam antes de tudo a celeridade, deixando que o problema do bem e do mal, isto é, da justiça intrínseca do procedimento, seja resolvido sucessivamente com a necessária ponderação nas repousadas formas do processo ordinário. Estas permitem de tal modo ao processo ordinário funcionar com calma, enquanto preventivamente asseguram os meios idôneos que fazem com que o procedimento definitivo possa ter, quando for emanado, a mesma eficácia e o mesmo rendimento prático que ele teria se fosse emanado imediatamente”. 

 

Destarte, quando se suprime o processo cautelar,  concentrando-se no processo de conhecimento todas as técnicas de urgência (cautelares e não cautelares), desvanece-se sensivelmente a  diferenciação entre essas técnicas, sobretudo quanto aos requisitos inerentes a cada uma – ensejando que o juiz, preocupado apenas com a celeridade – e o que é pior, levado a isso pelo legislador – desconsidere a distinção ontológica e de finalidade que existe entre as tutelas de urgência, passando a utilizar  indiscriminadamente a tutela cautelar como a única forma pela qual a justiça possa ser rápida, deixando de dar a devida importância ao que a segurança jurídica exige. 

 

E quando conflitam a segurança jurídica e a celeridade, esta deve ceder passo, ou ao menos não deve prevalecer a ponto que  anule completamente a segurança jurídica, sem a qual, importante frisar, nenhum sistema processual pode funcionar adequadamente em um estado democrático de direito.   

 

A propriedade essencial da tutela cautelar é assegurar o resultado útil do processo principal, ao qual a tutela cautelar liga-se por uma relação que Calamandrei chamou de “instrumentalidade hipotética”, no sentido de constituir  um instrumento de proteção a um suposto direito subjetivo, que a existir, será como tal reconhecido apenas no processo principal. 

 

Os antigos judeus espanhóis diziam que se o tempo pode, a razão também pode, como registrou o filósofo e historiador alemão, Gershom Scholem, Daí ter o Direito, a partir da jurisprudência e com base nas necessidades impostas pela realidade material, criado a tutela cautelar como meio (racional) de controle do tempo envolvido na solução do litígio. A importância da tutela cautelar está exatamente na possibilidade de o Direito controlar, tanto quanto possível, o tempo, o que o tradicional processo de conhecimento (que, como dizia Carnelutti, é um juízo em câmera lenta) não consegue fazer, não ao menos para a precisa finalidade da tutela cautelar, que é a de assegurar o resultado útil do processo principal. Como disse o poeta e crítico francês, Nicolas Boileau (1636-1711), “Le vrai quelquefois n’être pas vraisemblable”, ou como se diz em nosso vernáculo, “O verdadeiro pode algumas vezes não ser verossímil” – e é por isso que o Direito utiliza-se do processo cautelar, com o qual coloca sob eficaz proteção um suposto direito subjetivo, que embora não possa, em determinado momento,  ser reconhecido como verossímil, pode ao menos ser tido como juridicamente plausível.

 

   Já a tutela provisória de urgência de natureza não cautelar (a tutela antecipada, sobretudo), por constituir uma técnica pela qual o juiz adianta no tempo efeitos que a rigor somente poderiam aparecer com a sentença de mérito, não tem por objetivo  assegurar um hipotético direito subjetivo, senão que a implementá-lo como um direito que, reconhecido como subsistente, deve ser imediatamente efetivo, quando uma situação de risco o possa tornar ineficaz, se implementado mais adiante. 

 

Daí a significativa diferença entre antecipar para proteger, como sucede na tutela provisória de urgência de natureza cautelar, e antecipar para satisfazer, a que se destinam as tutelas provisórias de urgência que não são cautelares. Desse modo,  se as circunstâncias que entendam com o risco demonstram que a tutela jurisdicional, se concedida mais adiante, podem tornar ineficaz, no todo ou em parte considerável,  um suposto direito subjetivo, então nesse caso a tutela provisória de urgência de natureza cautelar é a tutela azada ao controle da situação de risco, porque não se tem nada mais do que um hipotético direito subjetivo que está colocado sob uma situação de risco.   

 

A origem da confusão entre a tutela cautelar e a tutela antecipada radica em grande medida no verbo “antecipar”, também empregado quando se fala da tutela cautelar. Um emprego que, aliás, é legítimo, dado corresponder à realidade do objeto  enunciado, pois que ao proteger um suposto direito subjetivo por meio da tutela cautelar, o juiz está a antecipar efeitos que haveriam de vir mais adiante, o que significa que esses efeitos estão a ser antecipados, mas com a necessária ressalva de que essa antecipação possui a finalidade única de conferir proteção jurídica a um suposto direito subjetivo (que pode ou não existir, conforme se definir no processo principal).  Esse é o aspecto mencionado por Ramiro Podetti, quando sublinha que a antecipação que ocorre por meio da tutela cautelar funda-se em “motivos de precaución y a la vez da uma certa ideal de interinidade”. 

 

Com efeito, a nota que distingue a tutela cautelar das demais tutelas de urgência radica no aspecto da sua finalidade. Se considerarmos, pois,  o que busca o juiz obter quando concede uma tutela de urgência de natureza cautelar, veremos que essa antecipação tem por objetivo assegurar (proteger, acautelar) a eficácia de um direito hipotético, porque o juiz  não o pode reconhecer como um direito subjetivo subsistente naquele momento, conquanto reconheça haver uma situação de risco que envolve a sua eficácia futura – o que obriga o juiz a proteger essa eficácia, antecipando alguns dos efeitos que envolvem o hipotético direito subjetivo, concedendo para essa finalidade a tutela cautelar. 

 

Diversamente, portanto, do que sucede quando o juiz concede a tutela de urgência de natureza não cautelar (a tutela antecipada, por exemplo). Nessa hipótese, não se antecipam apenas os efeitos do direito subjetivo, senão que mais propriamente se antecipa o reconhecimento da existência do direito subjetivo como tal. De modo que a finalidade a ser alcançada aí sobre-excede a de uma mera proteção, porque o direito subjetivo, ele próprio, é desde logo reconhecido como prevalecente, e que deve se tornar imediatamente efetivo, porque submetido a uma situação de risco quanto à sua eficácia futura. 

 

Tanto na tutela de urgência de natureza cautelar, quanto nas tutelas de urgência de outra natureza (caso da tutela antecipada), embora  o juiz esteja a antecipar efeitos que deveriam surgir apenas com a sentença de mérito (e por isso a utilização do verbo “antecipar” é legítima, inclusive no terreno da tutela cautelar), há que se ter em conta a específica finalidade que será atendida conforme se trate de uma tutela cautelar ou de uma tutela antecipada, preventiva ou de evidência.  É o aspecto da finalidade, portanto, que permite distinguir a tutela de urgência de natureza cautelar das tutelas que não possuem essa natureza, e há mister que o juiz atenha-se à precisa finalidade de cada uma delas.

 

Portanto, a existência de um processo cautelar com estrutura própria colabora significativamente para demarcar a finalidade desse tipo de tutela, para a bem distinguir das tutelas de urgência que não possuem a natureza (e a finalidade) cautelar. Destarte, quando o legislador decide suprimir o processo cautelar, para no processo de conhecimento concentrar, desordenada,  desarrazoada e assistematicamente, todas as tutelas de urgência (cautelares e não cautelares), faz com que a distinção conceitual que a doutrina ao longo do tempo engendrou e alicerçou – que essa distinção conceitual desapareça, ensejando que o juiz não mais considere necessário aferir os requisitos que são próprios a cada espécie de tutela provisória de urgência, passando a considerar equivalentes a  plausibilidade, a verossimilhança e a certeza jurídica. 

 

Sobre desnaturar a essência e a finalidade da tutela cautelar, a concentração no processo de conhecimento de todas as tutelas de urgência, sem o cuidado do legislador em fixar, com precisão, os requisitos específicos a cada uma delas, produz o que Liebman identificou como um “grave fenômeno degenerativo”, decorrente de se ampliar, além de uma justa medida, o poder discricionário dos juízes.  É o que ocorreu na Itália, quando, em determinado momento, alguns juízes passaram a conceder a tutela satisfativa como se estivessem a exercer um poder geral de cautela, em consequência de terem extraído do artigo 700 do código de processo civil italiano um conteúdo e alcance totalmente dissociados de seu verdadeiro sentido. A propósito, observou   OVÍDIO BATISTA:

 

O que surpreende, e poderá causar perplexidade às pessoas desatentas, é o exagerado crescimento da denominada ‘tutela cautelar inominada’, paralelamente ao decréscimo verificado nas formas típicas e tradicionais de tutela cautelar. Um relatório elaborado pelo Professor Picardi mostra que, na Itália, a utilização dos provvedimenti d’urgenza, em geral com função antecipatória da futura sentença de mérito, cresce constantemente, a ponto de fazer acreditar na tese de que eles acabarão por transformar-se numa espécie de giustizia octroyée, sem previsão legal, outorgada segundo critérios puramente discricionais do próprio juiz, enquanto as estatísticas indicam um pronunciado declínio das formas tradicionais de tutela cautelar”.

 

É certo que ao longo do tempo em que esteve em vigor o nosso código de 1973 vez por outra sucedeu fenômeno semelhante ao que Liebman identificou na Itália, com o desvirtuamento da tutela cautelar, utilizada  para indevidamente antecipar a tutela definitiva. Um importante episódio dessa natureza ocorreu em 1990, quando o governo federal havia lançado mão de uma esdrúxula medida, bloqueando ativos financeiros, inclusive depósitos em conta-corrente, criando um verdadeiro caos social, político e jurídico. Os operadores do Direito depararam-se naquele momento com uma situação criada pela realidade e que escapava a tudo quanto o direito positivo brasileiro poderia ter engendrado em termos de tutela processual. Como registrou Barbosa Moreira, a imaginação dos advogados então atinou  com uma solução que passava pela aplicação do poder geral de cautela previsto no artigo 797 do código de 1973, que assim foi utilizado pelos juízes para autorizarem, por meio de uma tutela cautelar “satisfativa”, a liberação dos ativos financeiros.  Àquela ocasião, importante observar, o nosso código de processo civil não contava com a técnica da tutela antecipada (que somente surgiria em 1994), de modo que a tutela cautelar constituía de fato, naquele momento histórico, o único mecanismo processual adequado  ao controle de uma grave situação de risco.

 

Ao ensejo daquele triste episódio de nossa realidade política,  muito se discutiu quanto à necessidade de a legislação processual civil ser modificada para que pudesse contar com instrumentos que concedessem ao juiz o poder de antecipar, diretamente no processo de conhecimento, a tutela definitiva,  ou parte de seus efeitos. Pode-se afirmar que a radical mudança implementada pelo código de processo civil 2015 no regime das tutelas de urgência, sobretudo com a supressão do processo cautelar, teve origem naquele episódio, que, contudo, foi indevidamente dimensionado pelo legislador. 

 

Assim é que aos olhos do novo código de 2015 o processo cautelar transformou-se na metáfora de um processo que não pode ser, ele próprio, efetivo, como se o processo cautelar constituísse o principal obstáculo a essa efetividade. Mas como sempre ocorre, as metáforas possuem o poder de transformar uma coisa em algo diverso do que ela é, criando um descompasso entre a realidade e a imagem que dela se faz. Com efeito, a imagem que o legislador do código de 2015  indevidamente considerou é a de que o processo cautelar não pode ser apto a controlar o tempo, ele – o processo cautelar – que foi criado exatamente para que esse controle pudesse ser adequadamente implementado, como escreveu Calamandrei ao lembrar que, em um ordenamento processual puramente ideal, em que o provimento definitivo pudesse ser instantâneo, tanto que permitisse ao juiz prontamente identificar, reconhecer e declarar o direito subjetivo, então nesse caso não haveria mesmo a necessidade do processo cautelar. 

 

Ocorreu, portanto, uma verdadeira quebra de sistema, quando o código de processo civil de 2015, sem qualquer razão técnica que pudesse legitimar essa escolha,  suprime o processo cautelar, afetando diretamente todos os sistemas processuais que encontravam no código de 1973 uma segura precisão conceitual na diferenciação de requisitos e de finalidade das tutelas provisórias de urgência. 

 

No Brasil, e nomeadamente no campo legislativo,  há uma tendência por tudo modificar, mas não no sentido de se atingir um aperfeiçoamento, senão que apenas com a finalidade de substituir o que existe por algo novo, como se a substituição pudesse, só por si, trazer melhorias. Códigos que constituíam um verdadeiro monumento legislativo, caso, por exemplo, do código civil de 1916, da lavra de um dos nossos maiores civilistas (Clóvis Bevilacqua), foram, sem mais, substituídos por diplomas de qualidade técnica inegavelmente menor e elaborados com evidente açodamento, e em muitas das vezes  apenas para atenderem a certos interesses inconfessos. Com essas frequentes e drásticas alterações legislativas, a dizer, com a substituição integral de um código por outro, opera-se uma violenta quebra na tradição jurídica, gerando confusão àqueles que operam com essas leis, como sucede com os juízes, que familiarizados com um determinado sistema legal, apoiados em uma jurisprudência já consolidada, são surpreendidos com a inopinada extinção do sistema e a sua substituição por outro – e de qualidade técnica consideravelmente menor. A insegurança jurídica, como é fácil verificar, instala-se com todos os momentosos efeitos que dela decorrem, sendo essa  uma das principais causas que explicam o descrédito em nosso Poder Judiciário.  

 

Tínhamos, pois,  um código de processo civil adequadamente estruturado para controlar as diversas situações de risco que podem existir no processo civil; um código que, em vigor desde janeiro de 1974, havia sido objeto de estudos consistentes de parte da doutrina, e acerca do qual a jurisprudência extraíra algumas posições que ao longo do tempo tornaram-se consolidadas e que serviam de baliza segura aos juízes. De forma que ainda não se possa olvidar que a nossa época tem exigido de fato uma celeridade cada vez maior ao processo civil, isso não pode significar que um código seja, sem mais, substituído por outro, apenas por se constatar que alguns de seus institutos não mais correspondem às exigências da vida prática. As reformas pelas quais o Código de 1973 passou, com o  aperfeiçoamento de seu texto, comprovaram que é possível, válido e adequado que se mantenha, tanto quanto possível, um código, reformando-o apenas em aspectos pontuais. 

 

Portanto, se tínhamos um código de processo civil que havia  alcançado um destacado rigor conceitual, elaborado pela mão firme e conscienciosa de um dos nossos maiores processualistas, Alfredo Buzaid, que seguira de perto os ensinamentos do genial processualista italiano, Enrico Tullio Liebman, que então vivia no Brasil, o fato é que esse Código foi inteiramente revogado e substituído por um outro (o de 2015), cujas vicissitudes  tornam-se já patentes, quando sequer um lustro de vigência completou-se.

 

Pois bem, quando o legislador  resolve, sem justa razão ou mesmo contra ela,  abandonar toda as conquistas alcançadas por uma sedimentada doutrina processual, fazendo tábua rasa da precisa finalidade que é atendida pelo processo cautelar, decidindo aglutinar no processo de conhecimento todas as tutelas de urgência, cautelar, antecipatória, preventiva e de evidência, criando uma verdadeira  mixórdia entre elas, não há dúvida de que aquele rigor conceitual que a nossa legislação processual civil havia conquistado no código de 1973 terá sido perdido – como perdidos estarão os juízes e advogados ao operarem no regime das tutelas provisórias de urgência tal como o estruturou (ou melhor, desestruturou) o código de processo civil de 2015. 

 

Que efeitos sobre um sistema processual específico, como é o sistema que rege as ações do juizado especial de fazenda pública, surgirão em decorrência das acentuadas modificações trazidas com o novo código de processo civil de 2015 no regime das tutelas de urgência? É do que trataremos a seguir. 

 

  • AS TUTELAS DE URGÊNCIA NO SISTEMA DO JUIZADO ESPECIAL DE FAZENDA PÚBLICA. 

 

 

Para tentar dar respostas adequadas em termos de tutela jurisdicional a litígios com menor expressão econômica, dentro de um fenômeno socio-jurídico que foi denominado de “litigiosidade contida”, o legislador brasileiro criou, a partir de 1984,  microssistemas processuais, os quais, contudo, andando o tempo, tornaram-se cada vez mais numerosos e complexos, a ponto de hoje constituírem cada qual um sistema processual específico, como é o caso do sistema instituído pela lei federal de número 12.153/2009, conhecido como o “sistema do juizado especial de fazenda pública”. 

 

O Direito, tal como a sociedade,  estrutura-se sob a forma de sistemas que buscam atender a determinados níveis de complexidade, impostos pela realidade social.  Assim, para lidar com uma complexidade cada vez mais crescente e com realidades específicas, o Direito, por meio de sua estrutura e de seus sistemas,  opera dentro de um modelo de sistemas abertos, em que o esquema tradicional do “input/output”, do qual o Direito utilizou-se em larga escala enquanto esteve baseado apenas em uma concepção dogmática,  não mais pode produzir resultados eficientes, pois como observa Niklas Luhmann,o bom jurista se orienta para o limite output, na medida em que deve ter em conta as consequências derivadas de uma interpretação determinada da lei”, o que significa dizer, como conclui Luhmann, que o jurista, ele próprio, contribui de modo significativo para que o modelo do Direito se torne incalculável, ou seja, que o Direito esteja aberto a todas as possibilidades impostas pela realidade social, com a análise das consequências que a interpretação e aplicação da lei podem produzir em termos de justiça e  eficiência. 

 

Por sua importância, e por se tratar de uma obra que não é de fácil acesso no Brasil,  entendo indispensável citar textualmente o que escreveu LUHMANN, ao tratar especificamente de como ao Direito se aplica a “Teoria dos Sistemas”:

 

“Em cada caso, as consequências de uma decisão de direito são distintas e se condicionam por situações empíricas diferentes, podendo-se considerar o sistema de direito como uma máquina. Além disso, quando se analisa o dogmatismo histórico do direito, no decorrer deste século, é visível como o direito foi levando em conta os interesses das pessoas ou grupos, enquanto fatores de aplicação da justiça: quais interesses estão representados, que oportunidades de realização manifestam, e que conflitos surgiriam quando se decide de uma determinada maneira em uma sentença.

A consideração desses interesses tem se incrementado na medida em que o direito público se converte em um meio para obter benefícios no Estado de bem-estar social, em que o direito constitucional tem cada vez mais assumido a tarefa de levantar demandas de tipo social, transformando-se em uma interferência significativa para o sistema político”.

 

Esse fenômeno está  ocorrer também no campo do processo civil, que para fazer face a uma complexidade crescente das demandas,  cria específicos sistemas, baseados em determinadas características das lides, como, por exemplo, o valor econômico, a  complexidade fática ou jurídica, o tipo de cognição, ou outros aspectos que o legislador considere relevantes para a criação de um sistema processual específico. 

 

Assim,  ao legislador pareceu conveniente criar um sistema processual específico para o processamento das demandas que envolvem a fazenda pública em geral, ou seja, Estados-membros, Distrito Federal, Territórios e Municípios, contra os quais estejam a litigar a pessoa física, as microempresas e as empresas de pequeno porte, quando  o valor da causa não supere sessenta salários mínimos, e quando a demanda, sobre não apresentar significativa complexidade fático-jurídica, não verse sobre aquelas específicas matérias ou tipos de ação que estão taxativamente previstos no artigo 2º., parágrafo 1º., da lei 12.153/2009. 

 

Esse específico sistema processual tem na simplicidade, na oralidade e na concentração dos atos do procedimento as suas mais importantes características, o que justifica que o legislador, ao tratar das tutelas de urgência, tenha previsto no artigo 3º., que, de ofício ou a requerimento das partes, o juiz possa “deferir quaisquer providências cautelares e antecipatórias no curso do processo, para evitar dano de difícil ou de incerta reparação”, concentrando, em um mesmo procedimento (aliás, no único procedimento previsto para esse sistema processual),  as tutelas de urgência de natureza cautelar e antecipada.

 

Conforme esperamos ter demonstrado ao longo deste ensaio, o rigor conceitual que o código de processo civil de 1973 havia alcançado na regulação do regime das tutelas de urgência beneficiava também  sistemas processuais específicos, do que se valeu, por exemplo, a Lei 12.153/2009. Pode-se assim explicar a razão de o artigo 3º. desse diploma ter se referido apenas ao “periculum in mora”, a indicar intencionalmente ao intérprete devesse considerar o regime geral das tutelas de urgência tal como estava fixado no código de processo civil de 1973, em vigor ao tempo em que surge a lei federal 12.153/2009. 

 

Desse modo,  o juiz, no específico sistema processual do juizado especial de fazenda pública, para que pudesse conceder a tutela de urgência, cautelar ou antecipada, deveria necessariamente utilizar-se da conformação dada a essas tutelas pelo código de processo civil de 1973 quanto aos requisitos específicos e finalidade inerentes a cada uma dessas tutelas, observando, outrossim, como particularidade daquele específico sistema processual, que a tutela provisória de urgência poderia ser concedida também em favor do réu, ou seja, da fazenda pública, medida prevista pela lei com o manifesto objetivo de salvaguardar o interesse público. 

 

Mas o fato de  a lei 12.153/2009 ter concentrado, em um só procedimento, as tutelas de urgência, cautelar e antecipada, não ensejará ao leitor indagar se essa forma não constituía já uma tendência de nossa legislação processual que, mais preocupada com a celeridade  que com a segurança jurídica, considerava mais adequado aglutinar no processo de conhecimento todas as técnicas de urgência, suprimindo o processo cautelar, tendência que viria a tornar-se regra geral no código de processo civil de 2015? “Caveat lector”. 

 

Sem dúvida que, em 2009, já havia uma clara tendência da nossa doutrina processual em defender a simplificação dos procedimentos e das técnicas processuais, como se pode confirmar pela posição de Cândido Rangel Dinamarco exposta em 2007, quando o ilustre autor de “A Instrumentalidade do Processo”, para se contrapor ao que então pensava  outro ilustre processualista, Calmon de Passos, afirma que a ordem processual não pode ser feita apenas de segurança e de certezas do juiz, porque: “Onde houver razões para decidir ou para atuar com apoio em meras probabilidades, sendo estas razoavelmente suficientes, que se renuncie à obsessão pela certeza, correndo algum risco de errar, desde que se disponha de meios aptos a corrigir os efeitos de possíveis erros”. 

 

Cuido observar ao leitor, entretanto,  que há mister leve em conta que a lei 12.153 instituiu um  sistema processual baseado no critério da simplicidade, a ponto de ter previsto um único procedimento para as ações a serem processadas no juizado especial de fazenda pública, com a prevalência dos métodos da oralidade e da concentração de atos nesse procedimento, de modo que para se manter fiel ao espírito que norteou a criação daquele específico sistema processual, o legislador não poderia mesmo ter previsto a necessidade de se instaurar o processo cautelar, preparatório ou incidenta.  Destarte, a prevalência do princípio da simplicidade é que justifica a concentração das tutelas de urgência, cautelar e antecipada, em um só procedimento no sistema do juizado especial de fazenda pública.  

 

Assim, quando o código de 2015 destrói o sistema que fora engendrado e solidificado no código de 1973, ensejando ao juiz a tendência a valer-se da tutela cautelar como única forma de fazer justiça com rapidez, pode-se concluir que isso acabará por contaminar outros sistemas, como o sistema do juizado especial de fazenda pública, porque o juiz não terá mais como fonte segura o rigor conceitual que o código de 1973 alcançara ao regular as tutelas de urgência, e não será incomum que a tutela provisória de urgência cautelar venha a ocupar o lugar da sentença de mérito, tornando esta praticamente inócua, tal como certamente sucederá nas ações diretamente reguladas pelo código de processo civil de 2015. Quiçá será cada vez mais necessário lembrar aos operadores do Direito o que OVÍDIO BAPTISTA alertara de há muito: 

 

Os que, com certa ingenuidade, veem no processo cautelar esse sonhado mecanismo milagroso, em virtude do qual as partes poderiam obter uma justiça rápida e eficiente, esquecem que o juiz, infelizmente, não pode oferecer qualquer vantagem processual a um dos litigantes senão à custa do outro; e que a liminar não surge espontaneamente do nada, como um fenômeno de geração espontânea, sendo, ao contrário, determinada mediante a imposição de um correspondente sacrifício processual, como justamente observa Verde e como dissera Calamandrei. (…). As liminares manejadas por juízes desatentos, ou insuficientemente preparados para o exercício dessa forma delicada de tutela processual, poderão ser campo aberto a toda sorte de desvios de poder e abusos contra interesses respeitáveis do outro litigante que, eventualmente, pode sofrer as consequências irremediáveis dessas provisões satisfativas, de cunho irreversível”.