Processo número 1662/1998
Ação Civil Pública
Autor: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Ré: PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO
Juízo de Direito da 10ª Vara da Fazenda Pública – Capital
Vistos.
- RELATÓRIO
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por meio de sua Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo desta Capital, ajuizou contra a PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, ente de direito público, a presente ação civil pública, objetivando, em bosquejo, que se imponha à ré obrigação de fazer, consubstanciada em dar efetiva consecução à ordem de fechamento administrativo de estabelecimentos instalados irregularmente na área da Administração Regional de Pinheiros, de sorte que para tanto, valha-se — “motu proprio” e como decorrência do exercício da atividade de poder de polícia e da auto-executoriedade a ela inerente –, das medidas administrativas necessárias, como a remoção de objetos e lacração das entradas do imóvel, sob pena de em caso de recalcitrância, suportar a incidência de multa diária.
A robustecer sua pretensão, aferra o MINISTÉRIO PÚBLICO, em sinopse, que a despeito de a Lei Municipal de São Paulo autorizar a atuação pronta e concreta do Poder Público no que toca à disciplina e fiscalização do cumprimento das normas que regulam o zoneamento — impedindo, destarte, que se instalem estabelecimentos e mantenham-se eles em funcionamento em área imprópria na Cidade de São Paulo –, ainda assim a ré tem obstaculizado a efetiva atuação desse comando legal, na medida em que se circunscreve a lavrar termo de fechamento administrativo, cuja eficácia, entrementes, tem resultado infrutuosa, nomeadamente porque tem a ré olvidado de se utilizar da força, autorizada por Lei como adveniente da auto-executoriedade da atividade relativa ao poder de polícia. Daí porque, diante desse contexto, sustentando o MINISTÉRIO PÚBLICO que à ré, como decorrência do poder de polícia que a Lei lhe confere, tem o dever de fiscalizar o cumprimento da Legislação de zoneamento, para o que dispõe de poderes adequados para diretamente executar suas determinações, não podendo por isso limitar-se a lavratura de um mero auto de fechamento, do qual não decorre nenhuma conseqüência prática, objetiva, à vista disso, que se imponha à ré ordem para que dê efetivo cumprimento aos atos administrativos de fechamento, de modo que atue com as medidas consentâneas a tanto, tais como a apreensão de mercadorias, móveis e equipamentos, tudo com o fito de fazer cessar a ocupação irregular.
Fez-se a peça inicial instruída com a documentação que se acha as folhas 18/352-verso.
Citação efetuada em forma regular (folha 355), ofertou a ré contestação, alegando, de primeiro, a ocorrência de falta de interesse processual e de possibilidade jurídica do pedido. Insurgiu-se, ademais, contra o mérito da pretensão, aduzindo, no particular, que é de atribuição exclusiva da Administração Municipal o fechamento de estabelecimentos comerciais que violem a Lei de zoneamento, de modo que é ao Poder Público, por força da autonomia municipal que a Lei lhe dá, que compete o exame da conveniência de se efetuarem medidas dessa ordem, reprochando assim a conduta do MINISTÉRIO PÚBLICO de interferir no exercício dessa atividade. Enfatizou de igual modo que em caso de recalcitrância do particular, impõe a Lei ao Poder Público a propositura da ação judicial adequada, do que tem a ré se desincumbido (folhas 357/378, com documentos as folhas 379/668-verso).
Réplica as folhas 672/688, com novos documentos as folhas 689/710.
- FUNDAMENTAÇÃO
“Sub examine” matéria tão somente de direito, o que permite, nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil (aplicação subsidiária autorizada pelo artigo 19 da Lei Federal número 7347/1985), o julgamento antecipado da lide. Por isso que resultaria inócua a realização de perícia de engenharia, requerida pela ré a folha 670.
Cuida-se, a como se fez referência, de ação civil pública por meio da qual objetiva o MINISTÉRIO PÚBLICO a imposição à ré, PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, de obrigação de fazer, consubstanciada em dar efetiva consecução à ordem de fechamento administrativo de estabelecimentos instalados irregularmente na área da Administração Regional de Pinheiros, de sorte que para tanto, valha-se — “motu proprio” e como decorrência do exercício da atividade de poder de polícia e da auto-executoriedade a ela inerente –, das medidas administrativas necessárias, como a remoção de objetos e lacração das entradas do imóvel, sob pena de em caso de recalcitrância, suportar a incidência de multa diária.
Ao contestar, fez a ré veicular matéria de ordem preliminar, afirmando a ocorrência da falta de interesse processual e de possibilidade jurídica do pedido. Cabe, portanto, conhecer desse arrazoado.
Malgrado a ré não tenha explicitado em que teria se esteado para afirmar a ocorrência da falta de interesse processual (como anotou o MINISTÉRIO PÚBLICO em réplica a folha 674), supõe-se que o seja em decorrência da alegação de cumprimento da Lei de zoneamento, o que afastaria a necessidade de o autor socorrer-se da tutela jurisdicional. Não se lhe assiste razão, contudo.
Com efeito, como é cediço, o interesse processual, examinado “in statu assertionis”, resulta de um trinômio: adequação instrumental, utilidade e necessidade. No caso presente, está o autor a se utilizar do instrumento processual adequado à sua pretensão material, a qual, se procedente, ser-lhe-á (e assim à coletividade como um todo, em face do direito difuso objeto da lide) útil, afigurando-se de igual sorte necessário que tivesse se socorrido da tutela jurisdicional, à vista do evidente contraste entre seu posicionamento e aquele defendido pela ré, em especial quanto à questão que envolve o exame da necessidade de o Poder Público valer-se de modo irresistível da ação judicial para a efetivação do poder de polícia diante da resistência do particular.
Também não medra a alegação acerca da falta de possibilidade jurídica do pedido, também examinada “in statu assertionis”. Com efeito, a possibilidade jurídica do pedido, como ensina MONIZ DE ARAGÃO, é a previsão no Ordenamento Jurídico da tutela pretendida, ou a inexistência de vedação. E a tutela pretendida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO é perfeitamente admissível em face do Ordenamento Jurídico Brasileiro em vigor.
Configurada, pois, a existência das condições da ação, o que permite a análise da pretensão.
Não objeta a ré quanto ao fato de ter lavrado vários termos de fechamento administrativo em relação a estabelecimentos irregularmente instalados em zona estritamente residencial em área de atuação da Administração Regional de Pinheiros, nesta Capital. Também não infirma a assertiva expendida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO na peça inicial quanto à inocuidade dessa providência de ordem administrativa, tendo na contestação reconhecido de forma expressa que são significativos os casos em que o particular simplesmente desconsidera a ordem que se lhe impõe.
Assim, o que impende analisar, à vista desse quadro, é a justificativa (e se válida, pois) apresentada pela ré para a falta de eficácia do ato administrativo do qual deveria resultar, no plano fático, o fechamento administrativo dos estabelecimentos que estão a violar, como a ré reconhecer, a Lei de zoneamento.
Invocando, com efeito, a autonomia municipal e a partir dela, a conveniência quanto ao modo e momento de se executar o que a Lei determina, afirma a ré que seria vedado ao MINISTÉRIO PÚBLICO propugnar a concretização de medidas judiciais que, em última instância, acarretariam uma invasão na esfera de competência do Poder Executivo; e ainda, que com referência à violação da Lei de zoneamento, foram adotadas as providências exigidas em Lei, lavrados, destarte, os respectivos termos de fechamento, e que em face de sua não-observância pelo particular, cabe agora ao Poder Público tão-só valer-se da ação judicial, uma vez que o poder de polícia — e a auto-executoriedade inerente ao ato administrativo dele decursivo –, não pode contrastar com o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Cabe examinar a eventual validez dessa justificação. Comecemos, assim, por considerar acerca da segunda questão suscitada, a que diz respeito à alegação da indispensável propositura de ação pelo Poder Público em face do descumprimento pelo particular do ato administrativo.
De fato, não se pode olvidar que o Código de Processo Civil em vigor, ao estatuir acerca das medidas denominadas de “provisionais”, cuidou de prever, em seu artigo 888, inciso VIII, o cabimento desse tipo de ação para “a interdição ou a demolição de prédio para resguardar a saúde, a segurança ou outro interesse público”. Aliás, oportuno destacar que no Anteprojeto do Código de Processo Civil, elaborado pelo insigne processualista ALFREDO BUZAID, não se havia contemplado esse tipo de medida provisional. Foi por meio da Emenda de número 80, da autoria do Deputado JOSÉ BONIFÁCIO NETO, que se a fez introduzida. Justificou o ilustre Deputado a pretendida inserção, fazendo-o com os seguintes termos:
“Extinguindo a ação cominatória, não contém o Projeto regra assimilável à do art. 305 do Código atual, que permita a execução urgente, imediata, de providências como a demolição de prédio em estado de ruína iminente e outras análogas. A sede própria para a disciplina da matéria é o artigo 908, que prevê medidas provisionais, de natureza cautelar, determináveis na pendência da ação principal ou mesmo antes da sua propositura. Entre essas medidas não pode deixar de figurar as que ora se recordam, destinadas a proteger a saúde, a segurança e outros relevantes interesses públicos.
“Sublinhe-se que a matéria do inciso VIII, ora sugerido, não se confunde com a versada nos artes. 892 e segs., que só dizem respeito à obra em construção”. (“Código de Processo Civil – Histórico da Lei”, volume I, tomo I, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas).
Com efeito, no regime do Código de Processo Civil de 1939, ao Poder Público permitia-se a propositura da ação cominatória para pedir: (…) a suspensão ou demolição da obra que contravenha a lei, regulamento ou postura. (…)”. É o que dispunha o artigo 302, inciso XI, daquele Diploma Legal.
Perscrutando o alcance desse dispositivo legal, defendia o ilustre processualista MOACYR AMARAL SANTOS a posição de “que os atos de polícia edilícia ou sanitária, no sistema brasileiro, não são executáveis diretamente e por força da própria administração de que provêm, mas sujeitos a controle preventivo do órgão jurisdicional”, e que assim tais atos só revestiriam-se de auto-executoriedade quando “tendo em atenção à natureza do interesse público ameaçado, disponham sobre providência manifestamente urgente, hipótese em que a administração poderá, por força própria, dar-lhes execução por via administrativa”. (“Ações Cominatórias, 2º tomo, página 687, editora Max Limonad, 1958). (E é com esse fundamento que a ré constrói sua defesa.)
Mas, se sob o regime do Código de Processo Civil de 1939 — que, a como se fez referência, previa a existência da ação cominatória expressa para tal situação –, podia-se, em certa medida, obtemperar, acolhendo a lição esposada por MOACYR AMARAL SANTOS, que o Poder Público, fora dos casos de urgência, deveria se socorrer da tutela jurisdicional para implementar providência decursiva do poder de polícia diante da resistência do particular, pode-se agora, em face do Código de Processo Civil de 1973, em vigor — que aboliu a ação cominatória (pelo menos nos moldes em que prevista estava no Código de 1939) –, afirmar-se o mesmo? Ou, por outras palavras: o Poder Público, no regime atual, em caso que não se configure a urgência, tem o direito de, ele próprio, “Manu militare”, concretizar o efeito prático do ato administrativo dotado de auto-executoriedade, ou terá, como sustenta a ré, que se socorrer antes da medida provisional ou de outra medida processual? E se o tiver, que tipo de interesse público está albergado dentre desse direito? E a urgência, seria ela, de fato, a pedra de toque a discrepar as situações em que o Poder Público poderia concretizar o efeito prático do ato administrativo dotado de auto-executoriedade daquela em que não o poderia? E ainda: em caso de urgência, ainda assim teria o Poder Público de se valer da medida provisional, ou então, poderia se valer da tutela específica da obrigação de fazer, prevista no artigo 461 do Código de Processo Civil (com a nova redação que lhe foi dada pela Lei Federal número 8952/1994)? São questões que exsurgem diante do novo Código de Processo Civil.
De relevo anotar que a ação cominatória, no regime do Código de 1939, comportava a concessão de medida liminar para a situação de urgência. Dispunha o artigo 305 que: “Se na inicial ou no curso de ação cominatória que intentar, a União ou o Estado ou o Município alegar urgência, verificada por perito, executar-se-á incontinenti a providência requerida, ressalvando-se ao réu, na sentença final, o direito a indenização”. Mas, para a situação de urgência, como enfatizava MOACYR AMARAL SANTOS, não havia, no sistema do Código de Processo Civil de 1939 (com a ação cominatória) necessidade de o Poder Público socorrer-se do processo para dar consecução prática a ato de poder de polícia. Aliás, curioso observar também que a Emenda que fez introduzir o inciso VIII ao artigo 888 do Código de 1973 (no Projeto, artigo 908, inciso VIII) esteava sua argumentação exatamente na necessidade de se dotar o Poder Público de um instrumento processual consentâneo a situações de urgência.
Dessa situação deflui um evidente paradoxo, na medida em que o Poder Público, em caso de urgência, não precisaria, segundo parte da doutrina processual, socorrer-se da tutela jurisdicional para dar execução a ato administrativo decorrente do poder de polícia, mas, ao mesmo tempo, o Ordenamento Processual contemplava a possibilidade de concessão de medida liminar para a hipótese de urgência.
Donde resulta a conclusão de que a urgência, portanto, não pode ser a pedra de toque a diferenciar as situações. Há de ser outro o critério.
Como é cediço, no Estado de Direito todos se subordinam ao império da Lei; assim também o Estado, que, por isso sofre limitações ou restrições de ordem legal, impedindo a auto-execução de determinados atos e funções. Em razão dessas limitações ou restrições, o Estado, da mesma forma como sucede com o cidadão, deve valer-se do direito de ação processual para buscar a implementação de certos atos. A respeito, diz FREDERICO MARQUES com a segurança habitual:
“Esse direito à prestação jurisdicional do Estado, que o texto constitucional garante ao indivíduo, estende-se também ao próprio Estado, sempre que restrições a atividades de ordem administrativa que se realizam no interesse geral não permitam a auto-execução de determinados atos e funções, limitando, destarte, o poder de autodefesa que lhe é inerente. (…)”. (“Instituições de Direito Processual Civil”, volume II, página 23, editora Forense, 4ª edição).
Dentre os poderes administrativos, há o poder de polícia, que, segundo a definição de HELY LOPES MEIRELLES, é a “faculdade de que dispõe a Administração para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”. (“Direito Administrativo Brasileiro”, página 110, editora Revista dos Tribunais, 15ª edição).
É por meio do poder de polícia que o Estado condiciona, restringe ou impede a atividade dos particulares que se revele contrária à Lei, nociva ou inconveniente ao interesse público.
O ordenamento jurídico, como é de sobejo conhecido, não regula todas as condutas dos particulares. Há uma espaço de liberdade que é deixado sem regulamentação. É o que KELSEN chama de “mínimo de liberdade”:
“A liberdade que, pela ordem jurídica, é negativamente deixada aos indivíduos pelo simples fato de aquela não lhes proibir uma determinada conduta, deve ser distinguida da liberdade que a ordem jurídica positivamente lhes garante. A liberdade de uma pessoa que assenta no fato de uma determinada conduta lhe ser permitida, por não ser proibida, é garantida pela ordem jurídica apenas na medida em que esta prescreve às outras pessoas o respeito desta liberdade, isto é, proíbe a conduta pela qual alguém é impedido de realizar uma conduta que lhe não é interdita e, neste sentido, lhe é permitida. Somente então pode a conduta não proibida – e, neste sentido negativo, permitida — valer como direito, isto é, como conteúdo de um direito que é o reflexo de uma obrigação que lhe corresponde.” (“Teoria Pura do Direito”, página 46, editora Martins Fontes).
A conduta praticada pelo indivíduo dentro desse “mínimo de liberdade” não é contrária à Lei; ela é permitida negativamente, ainda segundo a denominação de KELSEN. Destarte, porque a ordem jurídica não proíbe, a conduta do particular é livre nesses casos.
Mas, em face de uma conduta negativamente permitida é possível a existência de um conflito de interesses. Mais uma vez o insuperável KELSEN:
“Se não é proibida (e, neste sentido, é permitida) a conduta de um indivíduo que é contrária à conduta de um outro indivíduo também não proibida (e, neste sentido, permitida), é possível um conflito face ao qual a ordem jurídica não toma qualquer disposição. Esta não procura evitá-lo, como o faz relativamente a outros conflitos, proibindo a conduta de um indivíduo que é contrária à do outro – ou, por outras palavras, proibindo a realização do interesse de um que é contrário ao interesse de um outro. A ordem jurídica não pode, de forma alguma, procurar impedir todos os conflitos possíveis. O que pelas modernas ordens jurídicas é — pode afirmar-se — proibido sem exceção é o obstar a conduta não proibida de outrem pelo recurso à força física. Na verdade, o emprego da força física, isto é, a realização de um ato coercitivo, é em princípio proibida, exceto quando seja positivamente consentida a determinadas pessoas, exceto quando a determinadas pessoas se confira poder ou competência para tal”. (obra mencionada, páginas 46/48).
Ao condicionar ou restringir uma determinada atividade, poderá o Estado estar diante de uma conduta negativamente permitida ao particular pelo ordenamento jurídico. Surgindo aí um conflito, deverá este ser resolvido pelo Poder Judiciário, sendo vedado à Administração, “in casu”, utilizar-se da auto-executoriedade do ato administrativo. É que a conduta do particular em si não é ilícita. Imagine-se um exemplo: a poda de árvores que estejam em área próxima a um aeroporto, e que estejam, em face da altura que atingiram, criando problema de segurança de vôo. Se o particular obstaculizar a ação da Administração, impedindo assim o corte dessas árvores, o Estado não poderá executar por si a poda, devendo nesse caso socorrer-se do Poder Judiciário. É que a conduta de plantar árvores em propriedade particular não é em si ilícita; e como a Lei não a proíbe, essa conduta é tida como permitida (negativamente regulamentada).
Mas, a situação é diversa se o ordenamento jurídico regula determinada conduta do particular, proibindo-a num sentido positivo; o Estado, então, poderá, exercendo o poder de polícia, impedi-la. Nesse caso, a Lei garante ao Estado a autodefesa, nomeadamente em face do interesse público.
É certo que a reação ao ato ilícito é centralizada cada vez mais na atuação do Poder Judiciário, como órgão dotado do poder para compor os conflitos, atuando o direito objetivo. Mas ainda assim subsiste, inevitavelmente, um mínimo de autodefesa, como sucede com2 o cidadão em geral, por exemplo com a legítima defesa e com o poder de correção do pai em relação ao filho.
Ao Estado, mormente em face do interesse público, também deve-se assegurar um mínimo de autodefesa. Daí porque se justifica a auto-executoriedade, que, segundo HELY LOPES MEIRELLES, é “faculdade de a Administração decidir e executar diretamente a sua decisão por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário”, — como atributo do poder de polícia.
O critério, portanto, que deve nortear a possibilidade de auto-executoriedade dos atos administrativos é a conduta do particular, se lícita (negativa ou positivamente regulamentada) ou ilícita. Diante de uma conduta lícita, surgindo o conflito, o Estado terá que se socorrer do direito de ação para buscar do Poder Judiciário a tutela que lhe permitirá condicionar, restringir ou impedir a atividade (lícita do particular). Entretanto, se a conduta for ilícita, a autodefesa garante-lhe a auto-executoriedade do ato administrativo.
Como pontifica o insuperável HELY LOPES MEIRELLES em sua famosa obra “Direito de Construir”:
“A auto-executoriedade do ato de polícia administrativa é hoje reconhecida uniformemente pela doutrina. Quando se diz que o ato de polícia é auto-executório, pretende-se significar que ele traz em si mesmo a possibilidade de execução direta e imediata pela Administração. Em regra, para a prática do ato de polícia administrativa não há necessidade de prévia apreciação e decisão judiciária. A Administração fá-lo executar com seus próprios meios, garantida pela força pública, se necessário, ainda que o ato importe em apreensão ou destruição de coisas, embargo de construção, demolição de obras, interdição de atividade e o que mais se contiver na competência da autoridade administrativa que o determina.
“A propósito decidiu o Tribunal de Justiça de S. Paulo, em Sessão Plenária, que, em se tratando de ato de polícia administrativa, nenhuma procedência tem a objeção de que a execução sumária pela Administração Pública pode lesar o indivíduo na sua liberdade ou no seu patrimônio. E o mesmo acórdão rematou: ‘Exigir-se prévia autorização do Poder Judiciário equivale a negar-se o próprio poder de polícia administrativa, cujo ato tem de ser sumário, direto e imediato, sem as delongas e complicações de um processo judiciário prévio’.
“Nem se opõe a essa conclusão o disposto nos arts. 287, 934 e 936 do Código de Processo Civil, uma vez que o pedido cominatório concedido ao Município é simples faculdade para acertamento judicial prévio das relações entre o particular e o Poder Público, se assim o desejar a Administração. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal, concluindo que no exercício regular da autotutela administrativa, pode a Administração executar diretamente os atos emanados de seu poder de polícia, sem utilizar-se de pedido cominatório que é posto à sua disposição em caráter facultativo”. (“Direito de Construir, páginas 91/92, 3ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1979).
Com efeito, diante de uma conduta ilícita, inverte-se a posição: é ao eventual prejudicado em decorrência da auto-executoriedade do ato administrativo que competirá socorrer-se do processo judicial. Ainda HELY, cuidando de explicitar — com a costumeira acuidade — a gênese e a essência que dão azo à diversidade de regimes:
“Ao particular que se sentir ofendido pelo ato de polícia da Administração é que cabe recorrer ao Judiciário, uma vez que não pode fazer justiça por suas próprias mãos. E sobejam razões para essa diversidade de tratamento entre o particular e o Poder Público, porque aquele cuida egoisticamente de seus direitos e este tutela ou deve tutelar, altruisticamente o interesse da coletividade. Daí a judiciosa ponderação de Seabra Fagundes de que ‘a atividade administrativa resultaria inútil, às mais das vezes, e interesses dos mais relevantes seriam preteridos irremediavelmente, se, à simples oposição do sujeito passivo das obrigações públicas, carecesse o administrador de meios coercitivos imediatos para removê-lo. O próprio conceito de Poder Público leva à explicação dessa excepcional faculdade de exigir coativamente, por ato próprio e diretamente do administrado, o cumprimento sumário das prestações de que seja devedor”. (obra mencionada, página 92).
O Estado, portanto, em decorrência do mínimo de autodefesa que o Ordenamento Jurídico lhe assegura, pode executar diretamente o ato administrativo decorrente do poder de polícia, sobretudo agora entre nós, em face do que dispõe o artigo 37, “caput”, da Constituição da República, com a nova redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de número 19, enfatizando a eficiência pela qual deve se conduzir a Administração Público no exercício das atividades que a Lei lhe confere. Eficiência que pode ser interpretada sob dois sentidos: um, que se liga à qualidade da atividade exigida do Poder Público (e que envolve também a presteza), e outro, no sentido de custo econômico (que será evitado, na medida em que os custos do processo não existirão).
A outra tese da qual se vale a ré para entravar a pretensão do MINISTÉRIO PÚBLICO, a de que prevalecente a autonomia municipal, também não medra. Com efeito, não se pode cogitar de conveniência em face do dever legal que se impõe ao Estado de coibir atividade ilícita. Dos respeitáveis Arestos trazidos à colação pela ré em sua defesa (folhas 379/389), vê-se que nenhum se referia a uma situação de ilicitude, o que, por si só, afasta a pretendida similaridade com a situação trazida a exame nesta sede.
O que o MINISTÉRIO PÚBLICO pretende aqui, e validamente, é obrigar a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO a cumprir a Lei, coibindo a conduta ilícita dos particulares que, violando a Lei de zoneamento, fizeram instalar estabelecimento com destinação vedada para a área da Administração Regional de Pinheiros. Daí porque se acolhe a pretensão (que envolve direito difuso, à evidência), impondo-se à ré a obrigação, nos moldes da peça inicial, consubstanciada essa obrigação em dar efetiva consecução à ordem de fechamento administrativo de estabelecimentos instalados irregularmente na área da Administração Regional de Pinheiros, de sorte que para tanto, valha-se — “motu proprio” e como decorrência do exercício da atividade de poder de polícia e da auto-executoriedade a ela inerente –, das medidas administrativas necessárias, como a remoção de objetos e lacração das entradas do imóvel, sob pena de em caso de recalcitrância, suportar a incidência de multa diária.
Prazo para cumprimento da obrigação, de 60 (sessenta dias), razoável em face da quantidade de estabelecimentos instalados indevidamente, suportando a ré, em caso de recalcitrância, multa diária fixada em R$1.000,00 (mil reais), lembrando que a multa é meio coativo e que tem por isso a finalidade de obter do devedor o efetivo cumprimento da obrigação.
- DISPOSITIVO
POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE a pretensão, impondo à ré, PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, a obrigação de fazer, assinalando-lhe, assim, o prazo de 60 (sessenta) dias (prazo razoável, em face da grande quantidade de imóveis relacionados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO), para que cumpra o que ora se lhe determina, dando efetiva consecução à ordem de fechamento administrativo de estabelecimentos instalados irregularmente na área da Administração Regional de Pinheiros, de sorte que para tanto, valha-se — “motu proprio” e como decorrência do exercício da atividade de poder de polícia e da auto-executoriedade a ela inerente –, das medidas administrativas necessárias, como a remoção de objetos e lacração das entradas do imóvel, sob pena de em caso de recalcitrância, suportar a incidência de multa diária. Declaro a extinção do processo, com julgamento do mérito, na forma do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil.
Não há custas (Lei Estadual número 4952/1985). Condeno a ré no pagamento de despesas processuais, estas com atualização monetária a partir do desembolso. Sem condenação em honorários advocatícios, como o próprio MINISTÉRIO PÚBLICO requereu a folha 16 (item III).
Sentença sujeita a reexame necessário, como condição de eficácia da sentença.
Publique-se, registre-se e intimem-se as partes. O MINISTÉRIO PÚBLICO, pessoalmente.