A FOTOGRAFIA E SEU IMPACTO NO PROCESSO CIVIL
Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito
“A natureza que fala à câmara é diferente da que fala aos olhos. Diferente sobretudo porque a um espaço conscientemente explorado pelo homem se substitui um espaço em que ele penetrou inconscientemente”. (WALTER BENJAMIM).
São ainda hoje raros os processualistas que, escrevendo sobre o capítulo das provas no processo civil, dedicam-se a examinar com alguma profundidade a fotografia, limitando-se, quando muito, a uma referência genérica inserida no contexto dos instrumentos particulares como meios de prova documental. MOACYR AMARAL SANTOS, nosso maior tratadista do tema das provas no processo civil, ao escrever sua monumental obra, “Prova Judiciária no Cível e no Comercial”, esmiuçando e detalhando em alentados cinco tomos toda a doutrina e casuística das provas no processo civil, referiu-se à fotografia de modo bastante singelo e quase imperceptível, por meio de uma nota em que se refere a ela apenas como uma das formas de reprodução mecânica, ao lado do desenho.
Importante assinalar que essa importante obra foi escrita na década de cinquenta, e essa referência temporal explica a total desimportância com que a imagem fotográfica era então tratada no campo do processo civil, porque de fato àquela altura a fotografia não tinha alcançado o status que a Filosofia e em especial a Semiologia viriam a lhe conferir, sobretudo a partir dos ensaios produzidos na década de setenta pela ensaísta e filósofa norte-americana, SUSAN SONTAG, e pelo filósofo e semiólogo francês, ROLAND BARTHES.
Antes deles, o maior filósofo de nossa modernidade, o alemão WALTER BENJAMIM, havia escrito, em 1931, o ensaio “Pequena História da Fotografia”, que se tornaria um verdadeiro clássico, publicando quatro anos depois um estudo que o complementaria, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, criando a estrutura necessária para que a Filosofia começasse a compreender e a estudar a fotografia como signo e linguagem.
Nesses dois ensaios, BENJAMIM despertava a atenção dos filósofos (e também dos fotógrafos) para algo presente na fotografia, mas que está para além de sua técnica, utilizando-se de um conceito que se tornaria uma nuclear referência nos estudos filosóficos da Fotografia: o conceito de “aura”, definindo-o como uma estranha trama de espaço e tempo, em que ocorre “o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja”, explicando como se revela esse importante fenômeno linguístico:
“Seguir com o olhar uma cadeia de montanhas no horizonte ou um ramo de árvore que deita sobre o observador a sua sombra, até que o instante ou a hora participem do seu desaparecimento – isto é respirar a aura dessas montanhas, desse ramo. Ora, aproximar as coisas de si, ou melhor, das massas, representa tanto um desejo apaixonado do presente como a sua tendência para ultrapassar a existência única de cada situação através da sua reprodução”. (Pequena História da Fotografia).
A propósito, quando se fala em técnica e em superação dela, recordemos de HEIDEGGER quando enfatiza que a técnica não é igual à essência da técnica, e que indagar da essência de alguma coisa aquilo que ela é ocorreu no campo da Fotografia, quando seus estudos filosóficos buscaram compreender o que a fotografia é em sua essência.
A partir da elaboração do conceito de “aura”, e de como ele foi magistralmente desenvolvido particularmente por SUSAN SONTAG e ROLAND BARTHES, pode-se dizer que a fotografia havia perdido a sua ingenuidade, quando se a compreendia como uma mera reprodução da realidade, como se lhe coubesse, ou fosse seu limite, o de transpor o que é o real para uma imagem fotográfica. A fotografia seria apenas uma cópia da realidade, o que, de resto, quadrava com a utilização que dela fazia (e ainda faz) o processo civil, tratando-a como um meio de comprovação de um fato real acontecido. Produz-se uma fotografia no processo como uma forma de transpor ao processo o que é a realidade.
Natural portanto que, diante de estudos ainda hoje muito recentes, não pudesse a ciência do processo civil considerar a fotografia senão como um meio de prova documental, e não como portadora de signos e, em sua essência, como uma linguagem. Isso explica a razão pela qual a fotografia, nas raras vezes em que é utilizada no processo civil, é considerada tão somente como um meio de prova cujo objetivo é comprovar ou verificar a ocorrência de um fato, o que significa dizer que a ciência do processo civil permanece ainda hoje na proto-história da fotografia, quando se a tomava, em seu uso mais primitivo e ingênuo, como uma cópia fiel da realidade, como sucedeu, por exemplo, no século XIX, quando a polícia francesa fotografava os suspeitos como forma de os fichar e identificar.
Essa é a única perspectiva sob a qual os processualistas trataram e ainda tratam a imagem fotográfica: como um meio de prova.
A perspectiva de análise que adotaremos aqui é totalmente distinta, e quiçá inédita. Com efeito, não trataremos a fotografia como meio de prova documental, e sequer como meio de prova. Consideraremos a fotografia, pois, como uma linguagem que, portadora de signos e de variados sentidos (muitos dos quais não evidentes), pode ser utilizada como elemento de narrativa no processo civil, tanto quanto são as peças escritas que as partes produzem e que levam ao conhecimento do juiz com o objetivo de gerarem persuasão quanto ao que afirmam em suas posições processuais.
Se a fotografia é, em essência, o testemunho de uma escolha humana (porque é o fotógrafo que escolhe entre fotografar “x” ou “y”,), também há uma escolha no ato de inserir em um processo civil uma ou outra foto, e essa escolha pode ou não se revelar como a melhor escolha no contexto da narrativa, conforme consiga, ou não consiga criar na consciência do juiz o significado que a parte queira ver alcançado. E uma fotografia será tanto mais poderosa como elemento de narrativa em um processo quanto mais a sua mensagem não for evidente em relação à realidade. A sua força como linguagem está exatamente aí, no sentido de apreender algo da realidade, tornando-o único, como observa SUSAN SONTAG:
“(…) uma fotografia não é apenas semelhante a seu tema, uma homenagem ao tema. É uma parte, uma extensão desse tema, e um meio poderoso para o apreender, para o dominar. (…) A fotografia é, em várias formas, uma apreensão. Na sua forma mais simples, ela proporciona-nos a posse substituta de um objeto ou de uma pessoa querida, uma posse que fornece às fotografias algum do caráter de objetos únicos”. (“O Mundo-Imagem).
Quando uma imagem fotográfica é produzida no processo civil, o juiz, tornando-se seu espectador, submete-se, sem se dar conta disso, a uma relação com acontecimentos da realidade que, fotografados, penetram em sua experiência (na experiência do juiz) de um modo sensivelmente diferente do que ocorre quando ele toma conhecimento da mesma realidade por meio do que lê nos textos escritos apresentados pelas partes. O objeto fotografado, como sublinha WALTER BENJAMIM, torna-se algo único, destacado, o que, por óbvio, ganha uma potência considerável em termos de narrativa.
O juiz, como todo espectador de uma imagem fotográfica, é levado a atribuir aos objetos reais as qualidades de uma imagem, como se efetivamente assim pudesse ser. Como observa SUSAN SONTAG: “A noção primitiva da eficácia das imagens pressupõe que estas possuam as qualidades dos objetos reais, mas a nossa inclinação vai no sentido de atribuir aos objetos reais as qualidades de uma imagem”. Assim, portanto, sucede com o juiz enquanto espectador de uma imagem fotográfica quando produzida no processo: sua inclinação é no sentido de atribuir à realidade as mesmas qualidades ou atributos que ele vê na fotografia. É levado a supor que é a realidade que deve corresponder àquilo que ele vê na imagem fotográfica, ocorrendo aí uma inversão na lógica que, muitas vezes, torna-se imperceptível, mas muito poderosa em termos de efeitos no campo da persuasão.
A realidade que surge no processo civil é, ela própria, uma imagem construída pelos litigantes. O poder da fotografia como linguagem radica exatamente nesse ponto. A narrativa que pode ser adotada como prevalecente pelo juiz pode ser aquela que ele terá identificado nos sentidos que a fotografia, como linguagem e como mensagem, transmitiu-lhe, muitas vezes inconscientemente.
Importante observar que a fotografia, quando produzida no processo civil, pode ser assemelhada àquela que é utilizada no mundo da publicidade, porque em ambos os usos está presente o elemento intencional. É a imagem fotográfica produzindo mensagens com seus signos. Dada uma relação de identidade entre a fotografia publicitária e aquela produzida no processo civil, podemos assim nos valer das percucientes observações de ROLAND BARTHES, para quem é fundamental perguntar por que modo o sentido entra em uma imagem fotográfica, e no que termina esse sentido; e se termina, o que existe para além desse sentido. São essas as mesmas questões com os quais o processualista lidará a partir do momento em que deixar de considerar ingenuamente a fotografia como um meio de prova, quando passar a considerá-la como um elemento da narrativa das partes, atuando, assim, como material hermenêutico, de resto como se dá com qualquer signo.
Mas o que é a narrativa no processo civil? É a linguagem que se revela presente no processo civil, formando o material hermenêutico com base no qual o juiz busca encontrar “uma verdade” (não necessariamente a verdade “verdadeira”). Essa linguagem pode ser expressa por palavras escritas e orais, como também pela imagem fotográfica – e como qualquer forma de linguagem, à fotografia é imanente uma acepção de uma suposta realidade, no que, aliás, está presente a armadilha sempre colocada ao espectador da imagem fotográfica.