O MARCO TEMPORAL E AS TEORIAS DE SAVIGNY, IHERING E GANS
Valentino Aparecido de Andrade
Poucos se deram conta de que no bojo da discussão que envolve o marco temporal está o ressurgimento de uma antiga polêmica travada entre SAVIGNY e IHERING, dois genais juristas alemães. Relembremos o que cada um deles pensava acerca da posse, mas acrescentaremos um autor nessa polêmica, EDUARD GANS, outro jurista alemão e que é injustamente esquecido quando se trata dessa polêmica.
Para SAVINGY, a posse é o poder que a pessoa possui de livremente dispor de uma coisa, seja para dela se utilizar, seja para defender a sua posse de quem a queira desrespeitar. Trata-se de um poder físico (o “corpus”), associado a uma vontade (“animus”, que é a vontade materializada no comportar-se como se proprietário da coisa fosse. Sem esses dois elementos, não haveria posse segundo SAVIGNY, que, aliás, foi ministro da justiça nos anos 1840 na Prússia.
Perceba o leitor que SAVIGNY compreendia a posse como um fato, e não como um direito, o que dava espaço (e poder) aos senhores feudais da época para manter suas propriedades, já que tinham sobre essas áreas o poder físico, tanto quanto se comportavam como seus donos.
O primeiro a atacar a posição de SAVIGNY foi EDUARD GANS, professor na Universidade de Berlin e, aliás, amigo de HEGEL. GANS afirmava que SAVIGNY incidia em uma confusão entre um fato natural e um fato legal, e que o fato da posse, enquanto puro fato, não se transformava em um direito, senão no momento em que o direito positivo assim o estabelecia.
Foi nesse contexto que surgiu a posição de IHERING, para quem bastava o “corpus” para que se caracterizasse a existência da posse, porque lhe parecia que o elemento intencional (o querer ser dono da coisa) seria imanente ao exercício da posse. Mas faltava algo, que GANS havia percebido. Com efeito, não basta que alguém exerça um poder físico sobre uma coisa, ou mesmo que se comporte como dolo. É indispensável que o direito qualifique esse fato como um “fato legal”. É o direito, portanto, que faz surgir a posse enquanto um fato legal, dizia GANS com razão.
Muitas civilistas brasileiros e de escol não mencionam a teoria de GANS, como se a polêmica sobre a natureza jurídica da posse pudesse ser analisada apenas com as ideias de SAVIGNY e de IHERING, olvidando das preciosas e indispensáveis ideias de GANS. Em seu livro “Direitos Reais”, ORLANDO GOMES, escreve: “Duas teorias de larga repercussão na doutrina e nas legislações, originadas do esforço de seus autores para uma interpretação exata dos textos romanos, procuraram fixar a noção de posse através de meticulosa análise dos elementos que consideram essenciais à sua conceituação. De um lado, a teoria subjetiva, que se deve a Savigny. Do outro, a teoria objetiva, de autoria de R. von Ihering. Tão diferentes são as ideias expostas por esses eminentes romanistas, que somente após o conhecimento, ainda que em síntese apertada, das construções doutrinárias que erguerem imperecivelmente, é que se poderá esclarecer o essencial a respeito desse fenômeno complexo e controvertido”.
Compreende-se a razão pela qual os civilistas brasileiros em geral refiram-se apenas às ideias de SAVIGNY e de IHERING, porque EDUARD GANS, embora atuando como professor no Departamento de Direito da Universidade de Berlin, não era um civilista, mas sim um professor de Filosofia geral e cuja influência de HEGEL, de quem aliás era amigo próximo, levara-o à Filosofia do Direito e ao estudo científico do desenvolvimento do Direito, assim como à percepção de que o Direito e o fato histórico não haviam se desenvolvido em separado, tese que alicerçava a Escola Histórica de SAVIGNY. Também é importante observar que SAVIGNY não estava inicialmente interessado na posse quando buscou compreender como havia se dado o desenvolvimento de ideias no direito positivo romano, mas que havia encontrado precisamente no estudo da posse o material que viria a formar a linha nuclear de sua Escola Histórica, combatida por GANS, que assim também fez seus estudos avançarem até a posse. De maneira que se pode entender melhor a polêmica acerca da natureza jurídica da posse quando se conhecem das ideias de GANS e do contexto em que essas ideias surgiram.
Podemos assim compreender o que decidiu o STF acerca do marco temporal, quando rejeitou a tese (baseada na posição de SAVIGNY) de que a demarcação das terras indígenas somente poderia se dar em face daquelas terras que estivessem, em 5 de outubro de 1988, a ser ocupadas pelas comunidades indígenas. Esse mero fato não é um “fato legal”, como decidiu o STF, baseando-se, pois, na construção de IHERING acerca da posse, mas sobretudo naquilo que defendeu GANS, no sentido de que é o Direito que cria a posse, e se a Constituição de 1988 estabelece que são terras indígenas, é isso que deve prevalecer, e não o mero fato da ocupação dessas áreas. Como dizia GANS, o fato da posse, só por si, não possui status legal, senão quando a lei lhe confere esse status.