A DESATENÇÃO AO “PERICULUM IN MORA”
Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito
Não são em pequeno em número, nem são singelos os desacertos do Código de Processo Civil de 2015. Mas merece destaque aquele que tem causa direta na supressão do processo cautelar e na indevida aglutinação da técnica cautelar às tutelas antecipada e preventiva.
Refiro-me ao acentuado grau de desatenção dos juízes e tribunais ao “periculum in mora”, a ponto de se poder afirmar que esse requisito acabou suprimido na prática, depois da entrada em vigor do novo CPC.
Com efeito, são inúmeros os casos em que a tutela provisória de urgência é concedida sem que exista uma situação de risco concreto e atual, ou que o juiz tenha considerado necessário descrevê-la em sua decisão, ainda que sumariamente. A preocupação passou a ser unicamente com a “probabilidade do direito”, conceito compósito adotado no artigo 300 do CPC/2015, que abarca a plausibilidade e a verossimilhança jurídica, de modo que hoje não se pode mais diferenciar a plausibilidade da verossimilhança, tratados no novo código como se fossem idênticos graus de cognição provisória.
Diuturnamente, deparamo-nos com decisões que concedem, sob a forma de uma tutela provisória de urgência, vantagem pecuniária a um servidor público, reconhecem isenção tributária, dispensam o sujeito passivo do pagamento de uma exação, afastam um político do exercício de seu cargo, entre muitas outras situações para as quais os juízes e tribunais que concederam a tutela provisória de urgência não cuidaram aferir se havia ou não “periculum in mora”, e sequer consideraram que a isso estivessem obrigados.
Quando se tinha um processo cautelar autônomo, dotado de uma estrutura própria, com requisitos bem delineados, como acontecia no CPC/1973, não era comum que os juízes ou tribunais desconsiderassem a existência do “periculum in mora”. Esse cuidado, aliás, tornou-se mais intenso quando foram adotadas, naquele código, outras técnicas de tutela provisória (tutelas antecipada e preventiva).
Exatamente porque havia no regime do CPC/1973 uma distinção ontológica, conceitual e de finalidade entre o processo cautelar e essas técnicas, isso gerava nos juízes e tribunais uma maior preocupação em detalhar a situação material subjacente, buscando nela identificar o que efetivamente constituía o risco, e em que medida esse risco era concreto e atual, de modo que o “periculum in mora”, embora presente tanto no processo cautelar como nas tutelas antecipada e preventiva, ou precisamente porque estava presente em todas elas, impunha uma rigorosa preocupação com o “periculum in mora”, considerado como um requisito autônomo, no sentido de que não era suficiente que a argumentação do autor se revelasse plausível ou verossímil, porque era sempre indispensável que existisse e se comprovasse o “periculum in mora”.
Há, é certo, juízes e tribunais que continuam a aferir o “periculum in mora”, quando estão a analisar se é caso de concessão de uma tutela provisória de urgência (cautelar, antecipada ou preventiva). Mas se pode constatar na prática que diminuiu sensivelmente o número de decisões em que a análise do “periculum in mora” terá sido feita, e eu não estou me referindo ao aspecto da fundamentação da decisão.
Parece-me que há uma explicação de natureza jurídica e sociológica para esse fenômeno.
O CPC/2015 é um código preocupado apenas com a efetividade, como é de se concluir se considerarmos o número de vezes em que a palavra “efetividade” aparece no texto da sua exposição de motivos, e ainda se tivermos em conta as razões que deram origem à criação de incidentes que têm por objetivo a produção de decisões judiciais padronizadas (caso do incidente de resolução de demandas repetitivas), teremos bem nítido que a única preocupação do CPC/2015 é com efetividade.
É natural, pois, que em face de um código que se preocupa intensamente com a efetividade, sejam os juízes e tribunais levados a se preocuparem também com ela, mas com o risco de que a superestimem, quando, em nome da efetividade, analisam apenas se há ou não a probabilidade do direito subjetivo invocado, desprezando se existe o “periculum in mora”. Poder-se-ia dizer, adaptando-se um conhecido provérbio, que o juiz, quando se preocupa com a efetividade além de uma justa medida, está sendo mais realista que o legislador.
Essa preocupação desmedida com a efetividade também tem um fundo sociológico, pois que a nossa sociedade reclama uma justiça que seja efetiva, e que para ser efetiva, deve ser célere, o que conduz a que o juiz assuma um comportamento esperado pela sociedade. Esse aspecto sociológico explica a desatenção ao “periculum in mora”, como se esse requisito pudesse ser um entrave à efetividade da tutela jurisdicional.
Como adverte CALAMANDREI, o “periculum in mora” é a base das medidas cautelares (rectius, de todas as medidas que envolvem uma tutela provisória de urgência, cautelar, antecipada ou preventiva), de modo que não é suficiente que exista um “genérico perigo de dano jurídico”. É indispensável, enfatiza o autor da obra de referência, “Introdução ao Estudo Sistemáticos dos Procedimentos Cautelares”, que o autor demonstre existir uma “impossibilidade prática de acelerar a prolação do procedimento definitivo que faz surgir o interesse na emanação de uma medida provisória; é a mora desse procedimento definitivo, considerada em si mesma como a possível causa de ulterior ano, que se provê a tornar preventivamente inócua como uma medida cautelar que antecipa provisoriamente os efeitos do procedimento definitivo”.
Pois como enfatiza CALAMANDREI, utilizando-se de uma expressão cunhada por outro processualista italiano (ENRICO FINZI), é necessário que se revele bem delineado no processo a possibilidade de haver um “dano marginal”, caracterizado no risco de que o atraso da tutela jurisdicional possa gerar um prejuízo irreparável. Daí a importância de se aferir se há ou não o “periculum in mora”, sem o qual nenhuma tutela provisória de urgência pode ser concedida.