IDEOLOGIA E AÇÃO JUDICIAL

 

Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

 

 

Recentemente, a imprensa deu destaque ao julgamento de uma ação popular, extinta sob o argumento de que o autor da ação agira com a finalidade de exercer um “patrulhamento ideológico”, e que essa intenção, segundo o magistrado, não podia ser analisada pelo Poder Judiciário.

 

O tema é interessante e nos leva a KANT, para quem a distinção entre Direito e Moral concentrava em um aspecto determinante: é que o Direito somente se preocupa com o aspecto exterior da conduta, não lhe sendo dado perquirir da intenção do agente, ao contrário da Moral, em que a intenção é decisiva e por isso deve ser analisada. Assim, se o credor paga a dívida, não analisa o Direito o motivo que o levou a isso. Apenas a conduta exterior – o pagamento – é considerado pelo Direito.

 

Kant, em sua “Doutrina do Direito”, que compõe a primeira parte da “Metafísica dos Costumes”, de 1797, cuidou analisar com a sua habitual profundidade,  um tema com o qual a Ciência do Direito e a Filosofia do Direito de há muito lidava: a diferenciação entre o Direito e a Moral:

 

(…) uma legislação pode diferir de outra por seus motivos (assemelhando-se com respeito à ação que converte em dever; por exemplo, as ações podem ser sempre externas). A legislação que de uma ação faz um dever e que ao mesmo tempo dá tal dever por motivo, é a legislação moral. No entanto, aquela que não faz entrar o motivo na lei, que, consequentemente, permite outro motivo à ideia do próprio dever, é a legislação jurídica. Considerando esta última legislação observa-se facilmente que seus motivos, diferentes da ideia do dever, devem ser buscados entre os motivos interessados do arbítrio, isto é, entre as inclinações e aversões, porém especialmente entre as aversões, porque uma legislação deve ser coativa a e não como um engodo que atraia.

“A conformação ou a não-confirmada pura e simples de uma ação com a lei, em ter em conta os seus motivos, chama-se legalidade ou ilegalidade. Porém, essa conformidade, na qual a ideia do dever deduzida da lei é ao mesmo tempo um móvel de ação é a moralidade da ação.

“Na legislação jurídica os deveres não podem ser mais que externos porque essa legislação não exige que a ideia desses deveres, que é interna, seja por si mesma o princípio determinante do arbítrio do agente; e como, todavia, necessita motivos apropriados a uma lei, tem de buscar os externos. A legislação moral, ao contrário, erigindo em deveres os atos internos, não exclui os externos e sim, ao contrário, reivindica tudo que é dever em geral. (…)”.

 

                                    De modo que não cabe ao Direito analisar a finalidade pela qual alguém questiona em Juízo determinada conduta ou fato, porque, como diz KANT, ao Direito não interessa a inclinação do agente, senão aquilo  que, exteriormente,  ocorre no mundo fenomênico (a ação).

 

A Lei federal 4.717/1965, a lei que regula a ação popular, enumera, em seu artigo 2o., que matérias podem ser discutidas naquele tipo de ação, e o número de hipóteses é amplo e abarca uma série de condutas acerca das quais a inclinação do autor da ação pode ser ideológica – e além sempre o será. Mas essa inclinação não pode e não deve ser aferida pelo juiz, que deve se limitar à análise da conduta exterior, subsumindo-a aos tipos legais.

 

De resto, o que é ideologia? Se formos à Enciclopédia Mirador Internacional, encontraremos tantas definições e sentidos que não se pode formar um núcleo central acerca da ideia desse termo.

 

Criada durante a Revolução Francesa, a palavra “ideologia” foi incorporada por diversas correntes políticas, inclusive pelo Marxismo. Assim, em qualquer ação judicial é possível encontrar uma ideologia, até mesmo em uma simples ação de despejo, visto que o autor afirma o direito de propriedade, direito que Proudhon afirma ser um roubo.

 

Aliás, se há em nosso ordenamento jurídico uma ação cuja essência é marcadamente política, no sentido que os gregos davam a esse termo, fundado na participação de todos na gestão da coisa pública – essa ação é a ação popular, bastando considerar que, nos termos do artigo 5º., inciso LXXIII, da Constituição de 1988,  a sua legitimação ativa é dada ao cidadão, ou seja, aquele que  está no gozo regular de seus direitos políticos.

 

Por fim, importante registrar que a Constituição de 1988 alargou consideravelmente o objeto da ação popular, de modo que a moralidade administrativa pode ser questionada nessa ação, cuja feição política harmoniza-se com seu objeto.